terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Capítulo IV: O CAMINHO DA GÉNESE

António Dambi, também conhecido na sua intimidade por Ti-Chico é o padrinho de Kaúia. Diria mesmo que é o pai de Kaúia já que este perdeu o pai biológico na primeira infância. Nascido na Kibala, Ti-Chico teve a sorte de frequentar a escola do posto onde concluiu com aproveitamento a quarta classe do tempo colonial que fazia dele um homem culto, respeitável e diferente aos olhos do povo da sua aldeia natal. Era a ele que se dirigiam os padres e missionários protestantes em busca de novas ovelhas. Era também à casa dele que se dirigiam aqueles que tinham cartas por ler e outras por escrever. Toda essa experiência era vivida e passada a Kaúia. Ti-Chico via no afilhado a realização do seu sonho de juventude que era o de ter na família um professor que empurrasse os outros meninos para o mundo do conhecimento. Costumava mesmo dizer que, “se tempo lhe sobrasse, aprenderia como se fazia para que a voz dum homem entrasse e saísse da caixinha do rádio Toshiba”. Encantava-lhe com a voz forte dum homem imaginariamente grande, sentando num sofá profundo, de barriga farta e bons ares. Sonhava o mesmo com um dos seus. E Kaúia foi interiorizando estas imagens abstratas de homens bem relacionados e bem posicionados, com carros, casas com muitas luzes e uma lagoa no quintal da casa.


Animado pelas conversas do pai-padrinho, Kaúia questionava-se por que demorava o seu crescimento e por que demoravam tanto terminar os anos lectivos que lhe permitiriam chegar à classe que o levasse à materialização do sonho encomendado pelo pai. Levado, porém, pela morte prematura, Ti-Chico não pôde também ver o afilhado a realizar o sonho. A única coisa que arrancou de Kaúia foi mesmo a promessa de o realizar, custasse o que custasse.

E, foi assim que uma vez posto em definitivo em Luanda, depois da vida militar, daquele baptismo no grande rio sem margens e dos encontros e desencontros com velhos amigos, Kaúia decidiu reafiar o lápis. Enquanto trabalhava como pedreiro entrou para uma escola do ensino de adultos e concluiu o ensino básico que lhe permitia leccionar para a meninada do bairro. Em parte realizado, o jovem realizava o sonho daquele que foi o seu pai, mas no fundo, no fundo, não se sentia ainda no topo da sua ambição. Havia mais caminho por trilhar. Foi então que, numa noite de inspiração, se lembrou das estórias de homens que falavam para muitos homens, sem estarem próximo deles. Lembrou-se do jornalismo e lá se inscreveu. Aplicou-se a fundo nos estudos e ambicionou ser conhecido, falado e comentado como algumas estrelas cintilantes do país. Pelo caminho ainda tropeçou na política que julgava ser a varinha mágica para atingir o altar, mas rápido se aborreceu.

Na altura ele não sabia, mas eram os genes irrequietos que herdara da mãe que faziam com que, de um dissabor avançasse para outro, sem nunca desfalecer. O tempo mostrou-lhe que, apesar da avançada idade, a escola de jornalismo era o sítio certo. No trabalho enfrentou dificuldades e uma-a-uma as foi superando. No exercício do seu novo ofício Kaúia vasculha a cidade em busca de informações como um gato que procura por ratos e estes por comida. Todos fazendo pela vida...

Na sua primeira redacção para a página de crónicas do Jornal Boca Livre, Kaúia escreveu:

> As modas são fáceis de pegar e os miúdos dos musseques, cumprindo as orientações paternais e da TV, na qual muita confiança depositavam, já se tinham habituado a deixar o lixo à porta para, ao primeiro sinal de presença do carro ou do tractor, correrem como lebres com os baldes ou os sacos pretos à cabeça. Porém, no bairro do Rangel, há muito que já não se ouve a buzina aguda de um camião de recolha de lixo ou as toscas acelerações de um tractor agrícola adaptado às crateras “periurbanas” para o saneamento doméstico.

Ao contrário da cadência monótona dos dias, os homens do município primavam pela surpresa. Ora passavam pela manhã, ora à tarde, ora à noite, ora nunca. Depois vieram os dias sim, dias não e semanas nunca. Das semanas passou-se aos meses até que o povo desabituou a esperar por eles.

As portas inundadas de lixo põem agora vergonha aos visitantes de longe e os resíduos ganharam pernas arrastando-se mesmo até à rua. Estão agora na berma, junto ao lancil, e disputam espaços nos passeios e no asfalto já carcomido pela água sem esgotos. Os “Hiaces”, sempre apressados, na vida das travessuras dos seus ocupantes, também ajudam a transformar as estradas em imensos lagos de podridão. Homens, ratos e vermes paridos por insectos diversos disputam soberanias, enquanto a solução vive ainda engavetada nos gabinetes. Tarda libertar-se das garras da burocracia, até lhe ser decretada uma “lei prioritária”.

Os homens que se apresentam na faxina trazem coletes reflectores, fardas multi-cores e cones ensanguentados. Empunham vassouras e mostram-se pouco motivados, carregando por dentro carências várias. Parecem sôfregos, sedentos, mal nutridos e andrajosos até, com calcanhares tostados ao sol. As ruas são poeirentas e a cidade está quase sem nome. Nela poucos encontram as condições duma capital. Abunda a vergonha entre os munícipes e ninguém ousa em pronunciar o nome da urbe. Apenas à noite, se olha para o céu, claro ou escuro, e aí se descobre, na presença ou ausência do astro-príncipe, o nome da cidade. Nome pronunciado com todas as letras apenas tem a empresa a que pertence o tractor MAHINDRA com o atrelado rebentando de lixo e ausência de zelo.

O passa-passa dos homens pelas ruas dá continuidade à fétida e sempre pódrida Avenida onde se aglomera aquela brigada de varredores sem missão de higienizar. O avolumar dos sacos pretos se assemelha a entulho de defuntos no fim duma grande revolta da mãe natureza e a circulação que já não era paradisíaca transforma-se num inferno terreno para os pagadores da taxa rodoviária. Entretanto, o tractor passa e repassa hora e hora sem parar, com os homens nele pendurados a fingirem-se de cegos perante os montes fedorentos que já disputam os Alpes em altitude. Pior ainda, vão deixando cair outros restos trazidos de cadiengues caseiros: esferovites, papelões, vários entulhos e restos de betão inutilizado e inutilizável. Das letras que restavam na memória das crianças, apenas se podia descortinar a palavra Solamber que era o nome da empresa.

Semana após semana mais sacos, mais papelões e mais restos de carros vergastados pelo tempo são depositados ali e na rua Sardão Mariano, ao bairro do Soares. Espera-se pelos homens das pás e pelos camiões de caixas sanitárias, mas o único roncar que se faz presente é duma Hilux de dupla cabina, climatizada e com dois cipaios de luvas sujas. Estes atiram os possíveis sacos, aqueles bem tratados, para dentro da carrinha e seguem o seu caminho. O resto repousará aí mais uns dias, senão mesmo semanas, até que as larvas "fecundem" ratos e estes venham a "comer" os gatos. O povo contempla agastado, regista e comenta:

– É tudo jóia, desde que não nos comam a nós. – Dizia Francisco Kitembo, dando ares filosofais.

– Devem ser da fiscalização. – Responde Carlitos de Catete, tentando dar lógica à amostra da ostentação habitual dos funcionários que velam pela ordem urbana.

– Mas onde estará o grosso da equipa? - Interrogam-se os demais vizinhos e transeuntes.

– Alguém viu a etiqueta dos que passaram por aqui? – Voltou a questionar Kitembo, já meio aborrecido devido ao cheiro nauseabundo daquela lixeira a céu aberto.

Ninguém o respondeu, pois ninguém prestou atenção. Apenas o Lunetas, um zungueiro benguelense que embora distante da carrinha ainda pôde soletrar.

– Manos, parece que é Ki-xi-ar-ras-quem. Essa empresa é bué. Viram? Lixo no carro de luxo não é para quem quer é para quem pode – Ironizou.

– E o que ficou quem o leva? – Perguntaram-se outra vez, mesmo sabendo que apenas o vento se encarregaria pelas palavras. A sorte estava traçada. Sabiam que a espera pela recolha do descartado seria longa, por isso aguardaram sentados.

Mas Kaúia não pára a sua ronda pelos subúrbios. Entendeu passar pelo mercado ambulante das Perninhas, na rua do escravo Lino e notou que o dia era de disputas renhidas. De um lado homens e mulheres famintos e do outro agentes da ordem. O filme parecia-se a um que assistira na TV entre gatos fartos que fingem correr com os ratos, quando afinal se abastecem destes.

Ao raiar do sol aparecem primeiro os verdinhos empurrando barrigas insufladas pelo consumo excessivo de cerveja. Estes tentam sensibilizar que o local não é para nguendas , por isso daí seriam todos retirados. De seguida mandam um emissário, o Zé Pequeno, recolher gorjetas que os vendedeiros trocam por uma paz precária, pois precisam de comprar, vender e fazer as suas vidas. Precisam comer e alimentar as suas famílias. Mas surgem depois os polícias, aos pares e cassetetes. O César fazia parelha com a Ximinha e o André com Marieta. As moças tinham conseguido entrar para a corporação graças a um cadiengue com o comandante. Os homens, já na casa dos quarenta e barba rija tinham sido recrutas de Bartajú no distante Calulo, antes ainda dos acontecimentos sangrentos que marcaram aquela urbe interior.

Aos pares, gato e gata, montaram postos ou posições. Seguiu-se o agitar dos porretes e o povo correr sem nexo nem destino.

Micates, cuecas de fio dental, peixe frito e quissângua, tudo é deitado abaixo quando as circunstâncias não permitem baixar e guardar alguns abandonados na algibeira do camuflado azul. O filme gira vezeiro com bassulas, roubos, atropelamentos e cobranças indevidas. É assim durante o dia. Paga-se e maltrata-se. Até que cansados, os polícias, também conhecidos por “azulinhos” e os “verdinhos” da administração, se retiram para uma tasca ou taberna escondida para sorvem líquidos relaxantes pagos com os valores extorquidos das zungueiras.

Na algazarra, o sargento Samanjata chegou mesmo a agredir a sogra, Joana Xiquita, que vendia quissângua à porta da escola de condução Kudibanguela, custando-lhe uma tremenda reprimenda por parte dos cunhados que não consentiram a ousadia do marido da irmã agredir a mãe, fosse o que fosse.

Reposta a energia, o porrete volta a falar a sua língua predileta. Os aflitos obedecem correndo, deixando para trás o que restou dos seus pertences. Muitos estão ainda atrás do jantar para os filhos já desprovidos do mata-bicho, por isso voltam a reunir-se no mesmo local, com as suas imbambas. Novamente à volta dos gatinhos, também eles desinteressados no filme até que de repente, desponta um homem gordo, de casaco preto, se calhar conseguido numa zunga ou numa cobarde rusga, transportado num Prado cor de cinza, conseguido de graça. O homem exibe ares de chefia e pergunta autoritário aos dois subordinados azulados:

– Estão a dar rebuçados?

– Não chefe Bartajú! – Respondeu o César Kaúia que se achava mais atrevido e menos constrangido à pergunta do chefe trajado à paisana.– E então? – Voltou a questionar o homem, exibindo uma grossa corrente de ouro no pulso direito e dentes amarfinados .

– Chefe, de cada vez que enxotamos, parece que estão a vir mais outras. – Era, desta vez, a resposta da sargento Ximinha, dada entre um sorriso rasgado ao oficial.

Fingindo não ouvir a resposta, Bartajú acenou ao chauffeur para seguir a marcha em velocidade lenta e foi vendo a cena coçando a barbicha algodoada por muitas ordens acolhidas pelo vento. Pelo retrovisor, Bartajú assiste à luta entre os seus e o povo, que também já foi seu, carente de espaço para comercializar. O filme é novamente rodado e os actores se revezam. Uns forçados pelo cumprimento dos turnos e outros, os vendedeiros, pela perda ou ganho do dia.

Depois das corridas do dia-a-dia, o relógio aponta dezanove e cinquenta e nove e é já noite escura, quando na Emissora Nacional toca o ti-rim-rim, rim-rim-rim-rim! Segundos depois é o pioc-pioc-pioc e Carlos Vasculhães vai pegar o comunicado superior e começar com as kuribotas do dia. O povo está atento porque já foi avisado pelo Boca Livre sobre quem entra e quem sai da nguvulação . Desta vez querem “gente que sabe trabalhar”. Gente que vive nos bairros e que sabe como é dormir na mesma cama com o mosquito, com a lama, com o esgoto rebentado, com o rato do lixo não recolhido, com a barata da fossa entupida e a sofrer com a constipação provocada pela poeira da obra suspensa... – Esses sim, merecem a nossa comemoração. – Gritam efusivos os ouvintes, antes mesmo do “boa noite Angola, edita o jornal o Diabo Tramado”.

Em todo o musseque e na zona chique o povo está atento ao noticiário enquanto outros estão daí desligados por estarem conectados à internet café do português magalhães recuperado de uma escola qualquer do Putu... E a lista começa: _ Sua excelência o presidente Baltazar, comandante em chefe e chefe de Estado, usando da faculdade que lhe é conferida nos termos da Alínea X do artigo Y da lei const... e o locutor perdeu-se na contextualização da jurisprudência perante a impaciência da Tia Zefa e clientela da barraca de comes e bebes.

– Pôças! Mas sempre a mesma turma do Salvador Correia? Já não há mais quem tenha estudado aqui no Emídio Navarro ou no Karl Marx-Makarenko?

Mas o radialista não liga à crítica, até porque não os ouve e ainda que os ouvisse continuaria com a sua missão. Mantém-se atento à ordem do papel e atira: _ Dr. Nza Kutimbe nomeado para o cargo de administrador do Corta-Mato... No cabrité vizinho batem-se palmas e entornam-se goles de Primus pela sorte do conterrâneo e a possibilidade de mais umas facilidades na aquisição de terrenos. Na barraca da tia Zefa soltam-se muxoxos e dores de cotovelo por estarem goradas as espectativas.

– Mas esse então onde mora e o quê que faz? Sempre a se puxarem, sacanas de merda! - rabujou a senhora.

O rádio vomita outros nomes e o povo reage quase de forma combinada. Estalidos bocais e assombros nuns, palmas e assobios noutros locais. ... _ Engenheiro Francisco Mala Grande para administrador do Camartelo... Para Via-Norte foi nomeado o camarada Kanga Massa...

Já tonto de nomes desconhecidos, os convivas acompnaham a dona Josefa num malicioso desabafo:

– Sempre os mesmos. Cipaios de anteontem, ximbas de ontem e fiscais de hoje. Nada mais sabem fazer do que andar atrás das nossas mamãs nos mercados do Tira Cuecas e Bota Larga, quando os empregos que surgem, mesmo nas obras, são sempre para os filhos e afilhados deles, passando-se o mesmo em relação às bancadas das praças do povo que são distribuídas às amantes dos governantes e outras rabugentas... A idosa teve mesmo de puxar coragem para não soltar a lágrima que lhe cercava o canto esquerdo do olho direito.

– Tia Zefa, dá-me então a última Soba Catumbela que vou festejar a desgraça do lixo que está sempre a subir! – Desabafou Maria Mulata, uma bêbada assumida com créditos firmados em barracas e maratonas.

A festa continuou para mais e muitos dias. Crateras, cabrités e mercados informais brotavam tambémm dias sempre e com eles novos musseques, novas picadas e novos charcos. Cada vez mais convivas se juntavam à festa, vindos de distâncias incontáveis e exibindo cartazes com discursos puritanas que a prática diária dos próprios anunciantes condenava ao fracasso.

Kaúia termina a sua composição, não sabendo ainda qual seria o parecer do conselho de redacção.


É que o uso do português, segundo a receita encontrada na gramática de José Maria Relvas, está difícil, mesmo para jornalistas com já muita tarimba. E esperou, ansioso no sofá da sala de visitas, até que o vigilante Man-Xaxo que fora transferido pela Njovoli para aquela empresa jornalística o convidou.

_ Sr. Kaúia, o chefe ainda está te chamar. Parece que você vai ficar.

_Sério? – Questionou, num misto de alegria e desconfiança.

_ Sim senhor jornalista. Ouvi lá dentro. Discutiram muito. O director Kitembo a dizer que vale a pena, o Dr. Adão a negar… Mas a Menina que fica alí na frente do director (apontava o lugar da secretária de redação) foi chamada a votar e desempatou…

Kaúia levantou-se, endireitando a gola da camisa para esconder a sujidade provocada pelo suor e apresentou-se ao director Francisco Kitembo que o recebeu com um abraço.

_ Estás entre os nossos. Lemos a tua prosa e o teu esforço nos convenceu. Tens três meses de estágio remunerado, mas já podes assinar. Sentenciou.