quarta-feira, 17 de março de 2010

Capítulo I: MARIA KATUMBO

ARIAEra no tempo da guerra e, na aldeia de Rimbe, no Libolo, Maria tem muitas preocupações sendo a maior delas o marido que está muito doente. O filho mais velho estava na casa-de-água e não pode manter contacto com o mundo exterior que é a sua comunidade. As meninas eram três e a caçula tinha apenas dois anos.

Maria vive os problemas mas nada a desarma, nem desiste. Acompanha o marido ao hospital de Calulo e, de lá, consegue que ele seja transferido para o Sumbe. Na capital kuanza-sulina não tem familiares e ela nem dinheiro possui. Como a saúde do marido se degrada a cada hora que passa receia o pior e decide levá-lo a Luanda onde tem um irmão empregado bancário e uma sobrinha no hospital sanatório. Para viajar só vê uma solução: destilar e vender makiakia cuja receita serviria para pagar a passagem num machimbombo.

Em busca de soluções, outro entrave se atravessa o caminho: um primo do marido, depois de embriagado entorna o tambor da makiakia em destilação, complicando ainda mais os planos da Maria, mas nem assim ela desiste. Obtém um empréstimo e chegam a Luanda, onde o marido viria a falecer uma semana depois do internamento.

Feito o funeral às custas do irmão, a viúva regressa desamparada, sem dinheiro, com dívidas por saldar e quatro filhos menores por cuidar. O mais velho, ainda na casa-de-água, tem oito anos e a menina mais nova tem dois. A tradição exige novo funeral, apesar de ser de faz-de-conta. E, passado um ano, o sacrifício de um bode para tirar o luto.

Mesmo sem armas, Maria não se sente desarmada e nunca desiste. Trabalha nas lavras, trabalha onde pode, tudo fazendo para manter a família e a cabeça erguida de quem pagou o que devia.

Entretanto chega o ano de 1984. A guerra apertava dias sim semanas sempre. Mais noites eram passadas nas matas, sob intensa chuva, expostos aos mosquitos e outros inimigos do homem, do que no casebre de pau-a-pique coberto de velhas chapas de zinco. Fartos da situação, mãe e filhos começam o “exílio”.

Refugiam-se na sede comunal da Munenga e é nesse mesmo dia, 15 de Fevereiro, que a rebelião armada ataca com toda a força e impiedade. O que restava dos haveres foi levado pelos guerrilheiros e a família refugia-se noutra aldeia, Samba Caringe, onde por um mês vive graças ao trabalho prestado nas lavras de aldeões locais.

Com tudo perdido, regressa, com as “mãos na cabeça” à aldeia de origem, a mais de 60Km. Junta, contudo, os trapos e as forças, até o limite extremo, arriscando a viagem para Luanda, com os filhos, onde o irmão mais velho de novo os receberia.

Falela Nganga, já na casa dos setenta, era pai de três filhos. O primogénito varão estava perdido na cangonha e bebedice. Vivia da pesca e das aldrabices num lugar qualquer da Ilha de Luanda e só em momentos de apuros visitava o pai. A menina estava casada com um militar da força aérea e tinha já vida feita. O caçula estava em local incerto no extenso Libolo. Para ser sincero nunca o tinha visto, pois a mãe partiu grávida e nunca mais voltou. Sabia apenas de ouvir dizer que tinha um terceiro filho sem nome atribuído nem registo. Casado em quartas núpcias e sem rebentos, via nos sobrinhos recém-chegados a consolação que lhe fugia desde 1978, quando se juntou a Nzamba-a-Lumingo.

A esposa, apesar da inquietude que lhe provocava a traquinice e imperícia à vida urbana dos visitantes, preferia fechar os olhos aos desmandos e desabafar à distância, nas conversas com as amigas do chafariz ou nas caminhadas para o cultivo na honga que ficava atrás do quartel da polícia montada do Kapolo.

Aos olhos do irmão, se não fosse o exíguo espaço daquela libata de madeira, Maria e os filhos teriam aí ficado por muito tempo, sem grandes incómodos, mas Falela decidiu conferir maior comodidade às famílias, a sua e a da irmã, e maior espaço para os sobrinhos que precisavam de estudar e brincar. Ao primeiro anúncio do inquilino dum anexo que possuía na rua do Kalissangue, Falela não vacilou e numa noite de sexta-feira, depois do culto metodista, anunciou à irmã:

– Katumbo! – era assim chamava a irmã – o Kitongo vai sair da casa pequena. Vocês vão mudar para lá e eu vos vou ajudar na comida e noutros gastos do miúdo que anda na escola.

Foi um misto de alegria e tristeza. A distância era mínima mas deixariam os sobrinhos de beijar ao tio na hora da saída para o trabalho e deixariam também de receber, em primeira mão, os figos que trazia dos jardins da casa do governador do banco nacional onde fazia jardinagem. Quem transbordava de alegria, apesar de contida, era mesmo Nzamba-a-Lumingo farta de ver a sua loiça quebrada pelos sobrinhos do marido. Mas no seu íntimo nunca se desfez a amizade e carinho pelos miúdos que também a ajudavam no acarretamento da água e lavagem da loiça.

Para Maria, sair do ninho obrigar-lhe-ia a aprender a esgravatar e a defender-se com as armas que ainda não possuía na grande cidade. No mato onde vivera até aos quarenta a principal actividade restringia-se à agricultura e ao cuidar dos filhos. Luanda tinha outros desafios. Era o comércio informal que mantinha os fogões acesos e as panelas em actividade diária. Maria começou por acompanhar a cunhada e as novas vizinhas nos negócios até se estabelecer como peixe na água, embora ainda em baixa profundidade.

Começou com uma venda de pequeno valor. Comprava no Mercado das Corridas quiabos, gindungo, sal e outras iguarias que revendia à porta de casa, no Kalissangue.

Com o decorrer dos meses o leque dos produtos foi aumentando e concomitantemente os valores empregues. Comprava milho e massambala para deles obter a farinha que tinha uma grande procura naqueles dias de fome. Os sábados eram reservados à honga, um pequeno retalho de terra cedido pela cunhada, onde brotavam abóboras para a mingueleka , os quiabos e a mandioqueira para a quizaca . Era dessa forma que os hábitos campestres também contribuíam para a melhoria da dieta e o equilíbrio da vida urbana.

Em seis meses Maria se adaptou na totalidade e já mantinha, sem recurso permanente ao irmão, o sustento dos quatro menores. Ajuda o irmão mais novo, um desertor do exército governamental, então com a designação de FAPLA, e os sobrinhos abrangidos para a vida militar.

Apesar de mulher carente não pensa no prazer de ter outro homem. Abdica de amores por amor aos filhos e esmera-se nos negócios da fuba de milho, peixe miúdo e outros bens de primeira necessidade, comprados e revendidos na candonga . Com a poupança, melhora as condições do casebre e junta dinheiro para recomeçar a vida destruída no campo.

Amenizada a guerra, em 1987, regressa à terra natal e recomeça a vida campestre, dividindo-se entre o campo e a cidade capital onde ficaram os filhos.

O mais velho afina a caneta e apruma-se nos mais variados ofícios: aprende a costurar e cedo se livra da compra de vestuário; aprende electricidade e resolve os problemas da casa e da vizinhança que agradece; monta uma turma de superação de dúvidas aos filhos dos vizinhos que recompensam. E a vida segue remendada.

Phande-a-Umba tinha bem guardada a lição do Ti-Chico. Era em surdina que a recitava de vez em quando para nunca a esquecer.

Ele era trabalhador agrícola na fazenda Israel. Em tempos livres, aqueles que seriam os do seu repouso, dedicava-se à lavra familiar de onde vinha o sustento diário. Do salário pouco se gastava. Era tão ínfimo que só ele o suportava. Mas tinha algo de bom: atribuía aos filhos o correspondente abono de família. Com os Kz 120,00 que cada um dos filhos cadastrados tinha por direito, comprava o vestuário escolar. Naquele tempo da formação do “homem novo”, os cadernos e os livros eram da responsabilidade da escola.

António Dambi, filho mais velho de um desafogado cafeicultor e curandeiro tradicional, tinha a mania de não depender do esforço do pai. Detestava a herança e trabalhava com as suas forças aquilo que seria o seu sustento e a herança para a sua prole de sete. Foi assim que em 1978 negou a fazenda do pai, a carrinha Land Rover de caixa curta e dinheiro vivo. Apesar da pouca instrução académica era bastante polido. António Chico, para os seus amigos de infância, tinha uma visão global muito rica para o seu tempo. Formação académica e profissional eram, a seu ver, os caminhos para o sucesso, como não se cansava de afirmar, quando se resolvia a chamar-me:

- Phande!

- Pai!

- Ouve! Um homem nascido numa família como a nossa tem dois caminhos para ser homem de verdade: a escola que te dará formação académica ou seguir uma profissão.

- ‘stá bem pai! Mas assim vou ser então o quê?

- Estuda! Quero que sejas professor para dar aulas também "nos" teus irmãos (nas aldeias todos os miúdos são tratados como irmãos) e se um dia faltar professor p’ra ti ponho-te na profissão!

Assim foi, vezes sem conta, com Phande-a-Umba, seu quarto filho, primeiro de segundas núpcias, e depois com o afilhado Kaúia, até expirar o último fôlego da vida. Esperava ele que a lição fosse aprendida.


Ti-Chico queria deixar uma herança espiritual que se reproduzisse de geração em geração e que o recordassem em cada sucesso e insucesso. Não muito feliz ainda, morreu Ti-Chico, numa altura em que a vida estava entre chamas ateadas pela guerra e marchas empreendidas pela população fugitiva. E tudo ficaria para traz; os conselhos, os pertences, a terra herdada e dos sonhos e a vida também.