segunda-feira, 1 de novembro de 2010

OLH'O MALUCO

Era no mês de Outubro. As aulas na primária tinham começado a um mês. Alunos e professores procuravam ganhar tempo naqueles dias de relativa acalmia. Já que há três meses que não se ouviam disparos, nem boatos sobre kitotas . Até mesmo o Kissongo, terra predilecta da guerrilha, parecia pacificado.

-Clovis!

- Camá pressor!

Que pretendes ser quando fores grande?

O menino meneia a cabeça. A pergunta foi-lhe colocada em contra-mão e não tem a resposta formada. Nunca, nos seus oito anos, tinha pensado no que seria quando fosse grande.

- Qual é a profissão que queres seguir quando fores mais velho?- Endireitou o professor Lotário.

- Quero ser pai, camá pressor!

- Pai?

- Sim, camá pressor!

- Mas porquê?

- Porque os pai “comeum” bué!

A resposta despreconceituosa do aluno deixou a turma e o professor em alta pressão. Risadas e risos controlados nos quatro cantos da sala. Lotário teve mesmo de sair para buscar concentração e inspirar ar puro. A aula de ciências integradas, da terceira classe, tinha chegado ao fim, cinco minutos depois da motivação. Clovis, agora jovem, nunca se esquece do episódio que lhe custou a alcunha de “Os pai comeum bué”. Era por este nome que todos os meninos da escola número três de Calulo o tratavam sempre que o objectivo fosse zombaria . Assim foi até chegar à quinta classe e mudar de escola.

A frequentar a preparatória no Instituto Kwame Nkrumah e a trabalhar de tipógrafo numa cerâmica, Clovis está agora decidido em ter um nome e uma profissão que dignifiquem a família e a sua vila amada.

“O pão, ainda que mal amassado, exige sacrifícios”! Era esta a lição que Clovis carregava e distribuía por onde quer que fosse, por isso, fazia-se manhã cedo à estrada acompanhando a música dos militares.

“Ngongoé, ngongoé

yá, yá, yá

Ngongo ya mon’âdiala !

Ya, yá yá”!

O jovem aprendera com os pais, já finados, a fazer armadilhas para animais de pequeno e médio porte e a cultivar numa pequena horta que visitava ao raiar do sol, já que tinha de voltar à vila para o trabalho administrativo na cerâmica do Sô Miguel.

Na estrada, negra e encurvada como serpente, que faz deslizar os carros para Luanda, uma fila de noventa jovens mancebos corre ainda despreocupada com o devir. Muitos tinham sido retirados à força do colo de suas mães e outros, poucos, eram vuluntários cansados das rusgas e maus-tratos familiares. Qualquer um podia ainda ir para à casa pernoitar junto da família e apresentar-se à unidade no dia seguinte, pois só no fim da recruta é que seriam distribuídos pelas frentes que o LCB tinha nas comunas. Aí sim. Seria a vida dura dum militar.

O sol apresentava-se ainda como uma bolinha amarela e envergonhada, sem força para aquecer. Embora transcorresse o mês de Outubro, era mesmo o frio que ainda dominava. Homens, uns já nas ruas com samarras soviéticas, acordados pela companhia de instruendos das FAPLA’s, e outros ainda debaixo das mantas, sugando o último calor de suas amadas.

Clovis estava entre os madrugadores, buscando inspiração nos homens de sucesso que conhecia, no chilrear dos passarinhos e até no zunir dos ventos. O jovem queria ser escritor de fama e por isso usava de tudo para escrever, mesmo quando lhe faltasse o papel.

- Clovis! Estás sempre a levar lapiseira no bolso mas nunca levas papel para escrever. - Disse-lhe certa vez Peregrina, a irmã.

- Sim. Se não tiver papel há sempre um trazido pelo vento ou sirvo-me de uma folha de árvore. Há muitas por aí.

- E por que escreves tanta coisa que não é da escola, nem é do serviço e nem é carta?

- Um dia saberás, minha maninha.

- Hum… Um dia… Ainda te chamam de maluco…- Resmungou insatisfeita. A útima frase foi, porém, pronunciada já em surdina.

Peregrina não estava enganada. Devido ao seu hábito de parar em qualquer esquina para apanhar papéis, quando lhe soprasse a inspiração, muitos já o tinham como demente.

- Olh’o maluco!- Gritavam os miúdos da rua sempre que o vissem passar.

- Maluco é… Cuidado miúdo... Um dia parto-te as fuças!

Ele sabia do que fazia, como também sabia do que dele se dizia. Mas dava tempo ao tempo para mostrar quem mais estava próximo da demência. Se ele ou os que assim o tratavam.

Às sete, hora de regresso à vila, Clovis cruzou novamente com a mizangala da tropa. Os mancebos cantavam, já sem a mesma forças das cinco da manhã, a predilecta canção:

“Oh fantoche,

oh fantoche tunda kó !

oh fantoche,

oh fantoche tunda ko, ko Kissongo”!

Na fila estava também uma moça de poucos anos e seios ainda duros como laranjas. A jovem recruta era muito mais do que linda. Também era desejável tê-la onde quer que fosse. Era um poço de carne tenra que se expunha num vai-e-vem seguindo em passos preguiçosos.

- Sucuama! – Suspirou Clovis ao ver a “máquina” a passar, enfiada num camuflado que mal cobria as nádegas.

- Mas quê que essa moça, tão boa, está aí a fazer no meio destes marmanjos todos? - Questionou um dos traunseuntes.

- Deve ser para “desencravar” as armas dos chefes! - Respondeu outro. Era Salviano Margoso, um agricultor biscateiro .

A estrada estava dividida em duas filas: Uma era dos mancebos que corriam a passos curtos. Curtinhos mesmo. Pareciam andar em vez de correr. A outra era dos civis, que também eram muitos, que se dirigiam às lavras, aos kadiengues , aos empregos e mesmo às aldeias distantes. Todos aproveitavam o sol ainda manso e preguiçoso para ganhar terreno. Clovis seguia-os a todos ao pormenor, embora tivesse os olhos fixos no corpo daquela musa metida naquela farda verde-oliverira.

- Xê mano, não olha assim para a mulher do outro. – Ironizou Salviano, também ele atento ao passar do primeiro pelotão. O homem tinha na boca um cigarro de kangonha que acabara de enrolar.

- E quem te disse que é do outro? – Interrogou Clovis. - Mulher com dono não anda nessa vida, nem fica a puxar as calças para cima e para baixo de metro em metro. Já pensou no que seria essa mana se estivesse na vida civi?

- Mano, elas estão a levar a moda também à vida militar. É já assim mesmo. O mano não anda a ver as meninas na rua? É só já olhar e fechar a boca.- Respondeu-lhe o lavrador.

O primeiro pelotão estava já a subir a montanha da Pedra Santa e o terceiro fazia-se à baixa do rio Kambuco. A moça perdia terreno para os segundos e parecia estar no mesmo lugar em que Clovis e Salviano ensaiavam a prosa matinal.

- Moda tem limites. Quem se expõe é porque quer ser vista e o belo é para ser contemplado - Disse Clovis.

- E desejado também, né mano?- Emendou o lavrador.

A moça que ainda pôde ouvir a sentença do lavrador, largou uma estrondosa gargalhada que assustou os colegas menos atentos.

- kiá-kiá-kia-kia…

- Quê isso Marinete?

- É esse moço aí.- Apontava ela para Clovis já meio distante.

- Que te fez o homem?- Perguntou um dos instrutores.

- Chefe, o moço é bué! Só o que me falou?

- Que foi que te disse o refractário- Interrogou o tenente em tom ameaçador.

- Te conto na hora do descanso, chefe.

Luis Garrincha, o instrutor, era dos que mais guarida dava a Marinete, procurando tirar alguns loros duarante aquele período de aprendizagem. Aliás, Marinete era benquista de todos. Era a única mulher da companhia de instruendos e todos a tinham como mascote.


Um dia, daqueles em que toda a população era chamada a enclinar-se ao som tosco do Toshiba para ouvir as notícias do país, Clovis tinha sido informado sobre a constituição obrigatória de Brigadas Populares de Literatura e tinha gostado da ideia. Procurou pelo patrão, Miguel Serafim, que o insentivou a escrever e a ler. O branco de Trás-os-Montes, que na revolução ficou do lado dos patrícios, tinha colocado à disposição do jovem empregado um “José Maria Relvas” e vários outros livros de autores tugas do século dezanove.

- Olha, seu patrício, podes ler este ”libro” mas nunca o levas daqui, está bem?

-Está bem Sô Miguel, obrigado.

- E quando amadureceres, vê lá se não te esqueces de me consultar, porque não é com decretos e nem com duas cantigas que se fazem escritores, está bem? - Voltou a recomendar o branco.

- Sim Sô Miguel. Mas assim, Sô Miguel, vou começar mesmo por onde então?

- Olha! Tens de “escreber” muito e rasgar sempre – orientou - até conseguires a forma.

- Mas isso não demora muito?

- Pois é, seu Clovis. Ser escritor é paciência. Tens de “escrebinhar” em quase tudo e sobre quase tudo. Também tens de engolir este “libro” aí. Ensaia a Olivetti e depois a forma e a fama vêm a seguir.- Recomendou.

O homem deu volta e meia e meteu-se pelo fundo do quintal onde os mecânicos consertavam uma empilhadeira avariada a um par de anos. Havia encomendas atrasadas por falta de máquina e de força braçal para o carregamento de tijolos.

No pequeno escritório, onde repousava o livro de ponto e as facturas, a máquina de escrever, cansada de tanto uso e pouca atenção, parecia uma velhota vergastada pelo tempo. O tic-tac do movimento das teclas já era audível a mais de trezentos metros de distância, mesmo com o barulho das máquinas da cerâmica. Foi nela que Clovis aprendeu a dactilografar os rabiscos que trazia de casa em folhas arrancadas de cadernos escolares, outras apanhadas na rua e outras ainda arrancadas de árvores, quando papel lhe faltasse.

Já de longe, o patrão ainda voltou a adverti-lo: -Oh Clovis!

- Sô Miguel!

- Vê se não me partes as teclas que eu te parto a ti também, ouviste?

- Sim patrão!

- Patrão não, Sô Miguel, ok?- Corrigiu o transmontano.

-Sim Sô Miguel.

- Vê lá! Ainda me confundem com os contra-revolucionários e pequeno-burgueses que andam por aí a pôr pânico no “goberno”… Eu, por cá, não quero encrencas, está bem?

- Não Sô Miguel,me desculpa já.

- Ok. Vê lá então se não partes a Olivetti. - Voltou a recomendar.

- Não Sô Miguel, os ossos da “Oliveira” é que já estão sem ”sangue”. – Ironizou o aprendiz.


No quartel, a tarde estava reservada à educação patriótica e revolucionária, a aula do tenente Garrincha. Marinete estava, como sempre, no centro das atenções.

- Camaradas! - Gritou ele à companhia em parada.

- Prontos comandante!

- Olhem para a moça! – ordenou. – Têm dois minutos para descrevê-la em função do nosso tema.

- Escrever, comandante? Eu só cheguei até à primeira classe. – Disse Claudomiro.

- Cala a boca seu ignorante. Dá dois passos à frente e vinte cambalhotas já. – Ordenou o instrutor.

O Jovem, dezoito anos por fazer, desconhecia a gramática e escrever ou descrever para ele eram a mesma coisa.

- O chefe está a me castigar só à toa. - Resmungou, mas sem deixar de cumprir.

- Mateus! – Voltou a gritar, olhando para o meio da companhia.

- Pronto comandante!

- Então, que dizes da Marinete, pá?

- Sim comandante. Ela é um pedaço que não serve na minha boca, chefe!

- De joelhos já! - Sentenciou transtornado pela resposta que acabara de ouvir.

- E tu Gregório?

- Bem, “prontos”, comandante, como disse o camarada Clo, eu também “num” lhe conheço bem.

- Outro ignorante. Cambada de mentecaptos. Vinte cangurús – Ordenou.

- Satula!

- Pronto, maior!

- Salva-me a tarde, meu guerrilheiro.

Satula estava a ser sondado para o curso de sargentos na Gomes Spencer, no Huambo, tão logo terminasse a recruta. O jovem, estaura acima da média, deu dois passos à frente e, pés ligeiramente afastados, postura frontal e vertical, expôs:

- Permita-me maior. Ela é uma heroina viva nos dias de hoje em que as mulheres apenas servem o exército como voluntárias ou assalariadas civis.

A turma nem esperou pela aprovação do instrutor e rápidamente gritou vivas ao colega pela brilhante descrição. O homem tinha visto qualidades onde os outros apenas viam sexo. Garrincha bateu palmas e os instruendos seguiram-lhe o exemplo.

- E tu Marinete que dizes dos camaradas aqui em parada?

-Chefe, tirando uns, são todos uns buezezas . Apenas me comem com os olhos e nunca me dizem nada!

A resposta da jovem criou um espanto total, até ao instrutor que passava a vida a planificar a melhor altura para lhe cantar o fado. Garrincha deu meia volta, ergueu a boina, e marchou uns poucos metros para buscar postura e mudar de tema. A companhia de instruendos falaria sobre os feitos de Che, Deolinda, Henda e do Guia Imortal.


Na Olaria Moderna de Miguel & Filhos, o jovem dactilógrafo vivia em regime voluntário de enclausuramento. As saídas estavam restingidas à escola e ao cuidado da horta que muito prezava. Alcunhava-se como “o feitor da natureza”. Os convivios sociais tinham sido embargados para o pós livro.

- Então, jovem Clovis, já não te vejo nas farras, que se passa contigo?

- Estou em processo de fecundação intelectual. - Respondeu ele ao professor Lotário que o procurara para ver umas facturas de compra de tijolos.

- Olha, dizem que vêm ai os kassav e o Mamborrô. – Insistiu.

Clovis começava a ganhar a fama de novo intelectual, dada a sua nova forma refinada de se expressar em público e a limitação das suas saídas, algo que Lotário queria confirmar.

- Camarada professor, adiei tudo parta o futuro. O meu presente é o cumprimento do meu sonho. Não foi o senhor que me tinha questionado sobre o que seria no futuro? Pois que é chegado o futuro.

Lotário, apesar dos vinte cacimbos que tinha a cima do Clovis não escondia a admiração que criava e a amizade que pretendia construir. O menino que queria ser pai era na verdade uma outra criatura.

- Sim rapaz, mas quê isso de fecundação intelectual?

-É um processo de elevação espiritual e de criação estético-literária. Estou a escrever uma obra-prima que vai elevar a nossa municipalidade aos areópagos da intelectualidade artístico-literária.

O profesor, que até fazia parte da nata intelectual da vila, ficou buambo . Tinha ouvido tudo ao pormenor, mas pouco tinha entendido. Tão fortes eram o português que o ex-pupilo losava .

- Puthu ya diuabela, mas kimbundu kota .- Atirou, rendendo-se à preparação verbal de Clovis.

- Mas onde é que eparendeste tudo isso em tão pouco tempo?

- Professor, é tão somente a elvação que me proporciona a auto-superação possível através do “ndunda” do Zé Maria Relvas que o Sô Miguel me emprestou. Ele tem sido também o meu guia nesta travessia irrecusável e necessária.

- Uaué, mon’âmié? Então te estás a cultivar na língua de Camões…

- Sim Professor Lotário. Foi o senhor que certo dia me perguntou o que seria quando fosse grande. Eis agora o meu futuro. Quero ser escritor.

- Ok. Bravo, meu rapaz. E quando é que te leio de verdade?

- Dentro em breve, senhor professor, dentro em breve. O Sô Miguel e os filhos dele, lá na metrópole, estão a ver quem vai editar o livro. É só uma questão de escolha e de tempo porque valor já disseram que tem.

- E o livro vai chegar até aqui?

- De facto, senhor professor. Depois do Sô Miguel, o senhor professor vai receber o primeiro autógrafo por ter sido a pessoa que me ensinou a pensar no futuro…


Terminada a recruta, Marinete foi enviada à escola Fadário Muteka para cursar comunicações. O comandante queria voltar a tê-la sempre ao seu lado e como pessoa de confiança.

- Jovem mulher!

- Pronta chefe! – respondeu.

- Vais fazer três meses no Fadário e quando voltares vais pegar as máquinas do Manda-Boca que vai subir .- Ordenou o comandante em parada.

Seria a primeira vez que sairia da sua terra natal e que ficaria sem a protecção do seu amante, mas Marinete tinha consciência de que na tropa não se podia negar uma ordem.

- Sim chefe. Aceito.

- Então prepara a mochila poque o eleicóptero chega mesmo já amanhã. Hoje à noite falo com o camarada Garrincha que, pelo que sei, anda contigo...

Marinete apenas sorriu e dirigiu-se à caserna do Garrincha que já dominava o assunto.

No Huambo, Marinete e Vutuka eram as únicas meninas que eram militares de verdade, sendo complementadas em número por umas seis senhoras já de idade que trabalhavam como cozinheiras e lavadeiras da unidade-escola.

Txakumuena Vutuka era procedente de Muatxibundo, no nordeste, e orfã de pai e mãe. Melhor, como ela mesma dizia, era orfã de tudo. Era sobrevivente única de uma família que fora dizimada pela guerrilha.

- Mana, nem imaginas o que me aconteceu para cá estar no meio dos homens… - Abriu-se ela certa vez à companheira quando falavam do seu percurso para a vida militar.

- Conta-me mana. Que foi que te trouxe à tropa. Estás cansada dos abusos dos homens na tua aldeias?

- Yame ká !

- Como assim?

- Quem me dera. Fui ao município representar a OPA num concurso de Cianda e os meus pais foram todos “matados” pelos fantches do imperialismo.

- Aié? Qiue pena. Temos mesmo de fazer força para ver se lhes damos o troco que merecem… - Respondeu comovida a colega, evitando outros comentários que a podessem transtornar.

Vutuka, apesar de mulher coragiosa e libertária, tinha um lado bastante sencível. A colega queria evitar ressuscitar as dores que ainda inundavam a sua alma e limitou-se na conversa, buscando outros motivos.

- xtás a ver aquele gajo do Sakaiossa? O gajo é um gentio…

- É teu tio?

- Não, gentio. Pessoa sem consideração. Um matumbo de primeira. Como é que lhe dou um geito e fica aí a me espalhar?

- Se fizeram?

- Não. Eu com ele? Só se fosse o único à superfície da terra. Encontrou-me em baixa e trocamos apenas um beijo.

- E que te fez mais?

- Nada mais. Não é que o gajo anda aí a tratar-me por Vareta do comandante só porque lhe neguei o “bife”?

Aié? E tu já apresentaste queixa ao comandante da escola? – Questionou Vutuka que se apresentava mais experiente no campo dos amores sem rodeios.

Marinete tinha tido algumas experiências durante a recruta com o agora aspirante a sargento Satula e com o instrutor Garrincha. Mas foram todas entregas afectivas e nada de fazer por fazer.

- Sabes, aqui não tenho protecção e esses gajos são sempre mal intencionados. Ainda me suja só e já sabes que o boato anda mais depressa do que as pessoas.

- Nada de medo, somos todos tropas. Se lhe deixas te sujar ele te come até as espinhas. Ou então lhe aceitas já ou queixas “no” comandante.- Aconselhou.


No Fádário Muteka, Satula levava já mês e meio carregando sêmen. As idas às aldeias próximas do acampamento militar tinham sido proibidas devido ao “mi gosta” que fazia os homens até fugir da unidade militar para se juntarem às moças das aldeias vizinhas.


- Oh, Chipalavela!- Chamou o comandante da escola, o capitão Cara Podre, ao ajudante de campo.

- Sim comandante, ordene!

- Avisa a tropa. Todos. Homens e mulheres que vestem farda. Estão proibidos de hoje em dia a irem na buala . Há muito abuso na formatura por causa do “mi gosta”.

- Sim chefe. Mas, se comandante me autoriza…

- Podes falar. Quê que queres contestar já?

- Sim chefe. O comandante sabe da principal carência daqui na unidade. Água e comida temos em “ambundâncha”, mas que não há mesmo é só “curtição” e chefe sabe que o “mi gosta” vem mesmo do tempo do kaprandanda e a tropa sempre combateu contra o Kaputu .

Cara Podre, assim apelidado por gostar de franzir o rosto, endireitou a boina e olho-no-olho colocou-se à frente da tropa.

- Se vocês me disserem que aceitam castigo severo de quem falhar na formatura eu retiro o que disse. Mas fica compromisso militar mesmo.

A tropa, em coro, emitiu um barulhento “Viva comandante!” em sinal de aprovação. Satula, na primeira fila, era dos que mais satisfeitos se mostravam ante a pequena abertura do camandante.

(continua)