domingo, 1 de julho de 2012

MAKOJI

(Este texto é parte do livro "O Coleccionador de Pirilampos")

- Mutaleno, vem rápido! - Chamou aflita a mãe ao filho que jogava às pedrinhas, depois das aulas na explicação do Sô Jacinto Kudilonga. – vai chamar o teu avô, diz que em casa há problema do pai que lhe “apanharam” makoji”[1]. Vai mesmo a correr. Leva a tua jante e toma cuidado com os carros e kupapatas[2].

Calções rotos a mostrar faróis na parte traseira, Mutaleno imita o roncar de um jeep em inicio de marcha e mete-se à estrada que separa os dois quarteirões do Bairro Zorrô.
- Avô, avô, avô. - Mutaleno cansado nem conseguia suster a respiração para explicar o recado da mãe.

- Hum! - Respondeu Sá Mutale.- Fala seu burro. Assim já esqueceste o que te mandaram, não é?
- Avô, é a mamã que mandou chamar. Disse para ir rápido porque na tia Amélia há lá problema do papá que lhe “pegaram makoji no tio Januário Kabeçada”.

Sá Mutale agarrou a mutopa[3], já sem tabaco, que por um triz lhe caia da boca dado o susto. Endireitou o chapéu que lhe cobria a calva e, com as mãos à ilharga, exclamou: - Ora bola! Que chatice, pá!

- Mutaleno, vai na frente. Diz à mamã que avô está só beber cabucado de água.

Sá Mutale sabia das implicações que um caso desses encerra. É preciso usar diplomacia, juntar ideias, separar as melhores ideias para o debate e escolher os melhores adágios. Já tinha ele mesmo tido experiências dessas no passado, quando ainda jovem e com muito sangue na veia. Tinha sido surpreendido a colher em lavra alheia, como também já bebeu do fel que é ver a lavra arrasada por um intruso.
Há um pico que lhe atravessa a garganta até hoje, pois desconfia que o próprio Tambula Mwana, pai de Mutaleno, tenha sido fruto duma colheita forasteira em sua lavoura. Sá Mutale deixou a aldeia aos 17 anos e alistou-se na Revolução donde apenas saiu aos 23 anos. Embora as duas famílias soubessem do seu namorico com Na Mwana, mulher com quem vive até hoje, não tinha mantido com ela um contacto íntimo mais profundo que resultasse no filho com que foi brindado ao chegar da tropa. Pior ainda é a diferença fisionómica entre ele e Tambula Mwana. Embora ele, Sá Mutale, seja alto de pegar as estrelas, Tambula Mwana é tão baixo que parece “meia cuca” e tão claro que parece filho dum cubano, contrastando com a cor do pai que é duma escuridão que de noite apenas se reconhecem os dentes. É que Tambula Mwana nem olhos, grandes e redondos como goiabas, tirou do pai. Mesmo assim, Sá Mutale aceitou a mulher e o filho e já lá vão 37 anos.

Era preciso endireitar o discurso, avisar alguns amigos comuns com a casa do ofendido, e, sobretudo, encontrar o que se deve prometer como pagamento à família de Januário Kabeçada.

Sá Mutale jogou milho no terreiro para contar quantos galos tinha na capoeira. Acto contínuo, jogou sal no curral para chamar o gado que de imediato apareceu. Calculou qual dos bovinos podia servir de promessa para a multa, consultou a mulher sobre a quantidade de milho no celeiro e partiu. Casaco ao ombro, bengala na mão, cachimbo na boca, dez passo uma baforada, meteu-se a caminho.

Passou pela casa do compadre Lamba Lyeza, iminente negociador de makoji e amigo comum entre os Kabeçada e os Mutale. Eram, segundo se diz do mesmo munhaci[4]. Seguiram directo à casa onde tinha o filho retido, apanhado em flagrante delícia com Amélia Kexi-ko-Nvunda, a mulher de Januário Kabeçada, exímio lutador em brigas de bairro.

- Boa tarde compadres. - Cumprimentou Sá Mutale aos presentes que aguardavam pela família do autor do makoji. Era preciso demonstrar cordialidade e evitar que o assunto fosse levado à ciota[5] do mwene[6] Kavula Ndunge.

- Boa tarde. O que vos traz aqui a esta hora? Perguntou Kexi Mandumbu, tio do ofendido.

- Como o compadre sabe, criei um cão. Esse cão, agora que está grande, tanto me traz carne de caça como também me traz problemas lá onde passa. Fui informado que o meu cão está retido porque prevaricou na vossa casa. E, como quem tem dono aguarda resgate, eis-nos aqui compadres.

Como manda a praxe, Kexi Mandumbo fez também o seu discurso carregado de sabedoria ancestral e pinturas próprias da idade e experiência que carrega.

Desanuviada a tensão, os anfitriões pedem, à entrada, um garrafão de vinho tinto para iniciar a conversa propriamente dita.

- Compadre bate então no chão. Ou viste de mãos a abanar? - Disse Kexi Mandumbo.

- Sá Mutale sorveu forte o seu cachimbo, pulverizou o ar com o fumo branco da sua baforada, sinal que foi rapidamente percebido pelo sobrinho, Wanyanga, que de repente apareceu com um garrafão de vinho e um galo.

- Fiéééé, féééé! – Soaram assobios dos anfitriões ao que Sá Mutale correspondeu com uma vénia, seguida de uma salva de palmas colectiva.
- Compadres, antes de iniciarmos a conversa, quero ver o meu cão. Quero saber se está conforme saiu de casa ou se sofreu algum castigo degradante.

- Compadre Sá Mutale, o seu cão está inteiro só que não está em condições de sair ao público. É preciso chamar uma tia ou esperar pela chegada da noite porque está despelado.

- Está sem pele? – Lamba Lyeza, até então calado, aproveitou a oportunidade e entrou na conversa. - Compadres, se o cão está despelado é preciso saber quais foram as causas do assunto e como é que se chegou à situação.

Há muito, Amélia e Tambula Mwana mantinham um compadrio de deixar qualquer um desconfiado. Para uns eles eram amantes, para outros simplesmente bons vizinhos, até naquela manhã de domingo quando Tambula Mwana se dirigia a caminho da loja do Sô Bernardo. Ao atravessar o quintal da vizinha, foi surpreendido com um balde de água suja. Julgando ser um acto acidental, o jovem acolheu as desculpas da vizinha e aceitou dirigir-se a casa dela para tirar a camisa molhada e enxugar o corpo com a toalha que lhe fora prontamente oferecida para o efeito.

Acto contínuo, Amélia fechou a porta e arreou o pano que lhe cobria o corpo esbelto e bronzeado a preceito, ameaçando chamar por socorro caso Tambula Mwana se negasse a consumar o acto. Foi no mesmo momento em que apareceu Januário Kabeçada, marido da Amélia, que, apercebendo-se do movimento estranho em sua casa, acorrentou a porta com um cadeado, avisando a mulher de Tambula Mwana que tinha surpreendido o seu marido com a Amélia.

A versão de Tambula Mwana, confirmada aos presentes por Amélia Kexi-ko-Nvunda, serviu de alívio àquilo que seria a grande penalização e castigos ao infractor. Tratando-se de um quase mal entendido, as partes entenderam dispensar levar o assunto ao soba. Porém, o facto de ter sido encontrado em lavra alheia fez com que Tambula Mwana passasse a vergonha de ser censurado publicamente e pagar uma multa em dinheiro e bebidas para os mais velhos da aldeia e ao ofendido, Januário Kabeçada, que continuou com a sua mulher com quem tem já quatro filhos menores.













[1] - Adultério (termo Cokwe)
[2] - Motorizadas (termo umbundu)
[3] - Cachimbo (termo Cokwe)
[4] -linhagem familiar (termo Cokwe)
[5] -Tribunal comunitário presidido pelo rei/soba coadjuvado pelos notáveis da corte. Em cokwe pronuncia-se tchiota.
[6] -Título do dententor do poder tradicional entre os Lunda e os Cokwe.