quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A COBRA DO HOSPITAL

Este texto é parte do livro "O Coleccionador de Pirilampos"
Naquela sexta-feira de Maio de 1790 a aldeia de Wanga Kalunga tinha despertado com um grande alvoroço. O sino das más notícias tinha tocado à madrugada, sinónimo de alguma praga à volta ou despedida de um dos notáveis da aldeia ou do reino de Tata Ngunji.
E, como as más notícias correm o mundo, até os reinos vizinhos do Além-Monte estavam de olhos em Tata Ngunji e, particularmente, no seu Estado Livre de Wanga Kalunga que tem os aldeões estacionados à volta da grande mulemba[1] das reuniões.

O sol, ainda sem força, marcava envergonhado os primeiros passos. Apressados para o Jango das boas e más notícias estavam todos os aldeões: mulheres grávidas e outras por engravidar, homens válidos e inválidos (também chamados de homens sem sombra), crianças sãs e doentias, velhos trôpegos e moribundos, todos. Nus e vestidos às pressas. Ninguém queria que “o céu lhe desabasse a casa” ou ouvir de bocas terceiras as más novas que tinham acontecido ou que estavam por acontecer. Tamanha era a preocupação motivada por aquele madrugador sino dos maus agoiros.
- Nessa aldeia, onde quem conta um conto lhe acrescente dois pontos e quem reconta lhe acrescente cinco, não é bom ficar em casa e esperar que te contem. – Disse Ngan´Oxiki, noventa anos às costas.

O idoso, que com coragem e últimas forças puxou do casaco e bengala, era o conselheiro geral da aldeia e do Soba Xisa Wanga e gozava, por isso, do benefício de receber em sua libata[2], para consulta ou prestação de informação sobre as últimas ocorrências na aldeia, no reino e até mesmo nos Estados vizinhos. Mas Ngan´Oxiki  foi também.

Para os demais aldeões de Wanga Kalunga a ausência em reuniões colectivas era punida com admoestações simples, trabalhos sociais na aldeia e ou na lavra comunitária.
Mais o sol caminhava para o centro, mas subia a apreensão do povo. Pior ainda porque apesar de todos estarem no local das reuniões não se fazia presente o soba Xisa Wanga.

- Mas, porquê que o ngana soba ainda não está aqui? - Questionavam-se os mais críticos da aldeia, numa altura em que a impaciência dos mais idosos acelerava as cachimbadas e o avolumar do fumo que pulverizava o ambiente.

Lá dentro, na Zemba[3] do Soba, Kabezo e Kixindo, mulher e filho do soberano, tudo faziam para reanimar o soba que estava moribundo e poderem apresentá-lo aos seus súbditos, como era de costume secular. O soba não pode viajar, nem que seja para a morte, sem despedir-se do seu povo e a excepção à regra não era de admitir.
Xisa Wanga, com uma temperatura de assar kabwenha[4], tremia de fio que nem galinha no frigorífico. Na tarde anterior, quando revistava as suas armadilhas à volta da lavra, sentiu um ligeiro pico no calcanhar direito. Corajoso como é, o soba não deu muita importância. Tomou o seu banho vespertino e segui para casa sem sequer olhar para o local afectado. Julgou que se tratasse de um pico qualquer, daqueles normais que se sentem quando se anda mal calçado pela mata. Porém, o frio que lhe congela o sangue e lhe assa a carne ainda viva, faz da família desconfiar de outra coisa. Uma mordedura perigosa, um envenenamento, se calhar…

- Meu povo! Por favor arranjem transporte porque o velho está mal. - Irrompeu da libata o jovem Kixindo, num tom trémulo e dirigindo-se ao grosso da população que aguardava ansiosa pelo soba e pelas más notícias.

- Chamem o Kimbanda, chamem o Enfermeiro e chamem também o catequista. Cada um vai fazer o que sabe e o que pode. – Emendou o ancião Ngan´Oxiki, sábio como ninguém naquelas paragens.
De imediato, o comerciante compareceu com a carrinha. O kimbanda com as suas mahambas[5] e raízes medicinais; o enfermeiro com os seus utensílios: medidor de pressão arterial, estetoscópio, mala de primeiros socorros, entre outras ferramentas; o catequista com a sua bíblia, kamba-dya-mwenho[6], terço e miniatura de santos. Cada um apelava à eficiência da sua ciência, dos seus santos e arcanjos para poder salvar o soba que gozava de grande aceitação do povo, devido à sua abertura ao diálogo e negociação e solução comparticipada dos problemas do povo.

- Avó Grande, assim era tratado o velho Ngan´Oxiqui, já temos a carrinha do Sô Marques com um colchão de espuma e um lençol novo. – Disse Pascoal Kaquarta, um jovem estimado pelo seu dinamismo e perfeccionismo.
- Vamos levar o papá soba ao hospital da Vila de Tala Boxi. É perto. São apenas vinte quilómetros. - Disse o motorista Sabalo Kaphonde que, sem mais demora, partiu a caminho da Vila, transpondo a serra que servia de cortina visual com outros povos do Além-Montes.

Durante a viagem, a carrinha ocupada pelo doente, enfermeiro, kimbanda[7] e o catequista era um mundo à parte. Um mundo novo que permitiu coabitar, pela primeira vez, três ritos antes incompatíveis. O kimbanda, Kidady Wenji, com os seus amuletos evocava a memória dos antepassados para que dessem mais tempo de vida ao Soba. Mukwa-Kusanza, o enfermeiro, buscava os sinais vitais do seu paciente e fazia pensos húmidos para poder fazê-lo chegar ainda com vida ao Médico que já os aguardava no hospital de Tala Boxi. O catequista, Ngunga Ngele, evocava nomes de todos santos conhecidos e outros desconhecidos para que protelassem a chamada do soba… assim foi durante os vinte quilómetros. E todos fizeram-no com dedicação e sabedoria o que permitiu que, embora moribundo, sem fala e nem tacto, Xisa Wanga mantivesse a visão e enxergasse tão bem que ao ser descarregado da carrinha, como caixa de ovos cujos donos pretendem que não se quebre sequer um, o soba Xisa Wanga deparou-se com o símbolo do hospital que era uma cobra enrolada num pau e deitando veneno num copo.

- Tatê! Outra cobra? - Exclamou, metendo-se a correr num passo e velocidade quem nem mesmo o vento dum fechado cacimbo lhe pôde parar.
Xisa wanga pôde sentir-se curado sem que uma injecção ou comprimido lhe tivesse sido ministrado pelo médico.




[1] Árvore frondosa; borracheira.
[2] Casebre.
[3] Palácio do soba.
[4] Peixe miúdo. Muito apreciado nas aldeias do interior de Angola.
[5] Amuletos.
[6] Livro de hinos e rituais de missa da igreja Católica.
[7] Curandeiro; pessoa que exercita a medicina tradicional; adivinho.