sábado, 1 de dezembro de 2012

A FUGA DE NEHONE


Este texto é parte do livro "O Colecionador de Pirilampos"

Nehone está entre a alegria e a tristeza. Não sabe ainda ao certo o que lhe vai acontecer durante três meses de isolamento da sua família e amigas, as mais novas e as mais velhas. Vai entrar no acampamento, em local também ainda desconhecido por ela. Apenas as mais velhas da aldeia, um círculo muito restrito, sabe onde se vai fixar o acampamento feminino e o tempo em que vai durar o retiro.


Nehone já riu de alegria e também já chorou de tristeza. A menina, doze anos completados, sete classes feitas na escola pública, tem a consciência em guerra. Sempre que lhe falam do aproximar do dia lembra-se da aula de MGF que a escola e as madres condenam. Lembra-se também das lições que vem aprendendo desde criança, ainda no colo materno: “uma mulher Kwanyama só o é depois de sair da efundula[1]”.
- Mas, mamã, até eu que estudo também vou no acampamento?
- Nehone, minha filha, olha à tua volta. Todas as tuas amigas vão, és única que queres ficar? – A resposta-pergunta de Nanditemwa deixou a menina mais confusa ainda que correu ao seu quarto para descarregar a fúria contra os cadernos e os livros. Nehome abriu a mochila, despejou o material e jogou, um a um, contra a parede. O seu íntimo lhe dizia que algo estava errado. Só não encontrava palavras para esgrimir o que lhe vinha na alma. Trancou a porta, chorou por alguns instantes e adormeceu até ao cantar do galo.
Tudo o que sabe, de ouvir dizer, sobre efundula são estórias desencontradas de pessoas que elogiam e outras que condenam o rito tradicional. São mais de dez meninas que, no dizer das mais velhas da embala de Kambyote, já estão prontas para transitar de grupo etário. Todas as meninas que viram o fluxo menstrual este ano de 4791 vão engrossar o número reduzido de moças. As últimas saídas do último efundula já estão casadas, algumas com dois filhos às costas.
- Mamã, eu não quero fazer a infibulação. Na escola já disseram que é crime. Disse Nehone à mãe tão logo raiou o sol.
- Infibulação[2] é quê, minha filha?
- É aquilo que andam chamar acampamento das meninas. Que querem organizar para mim e as outras miúdas da embala. Eu não vou, mamã.
- Minha filha, estás a me ver com cara de poder ficar mais aqui se falhares nesse efundula? O quê que as mais-velhas vão pensar de mim e da família toda? Que eu eduquei mal a minha única menina?
- E porquê que a mãe não diz ao papá para mudarmos para a cidade?
Enquanto Nanditemwa e Nehone trocavam argumentos, mais ao estilo urbano do que noutras casas onde as meninas também reclamavam da participação no acto de iniciação feminina, ouviu-se um tocar do sino.
- Mamã! Parece que são eles. Tocaram já o sino. Assim há uma coisa que vai acontecer. Lhes diz que estou doente ou que fui ver minha madrinha em Pereira D´Eça[3].
Nehone tinha razão. Era dum pressentimento certeiro. Naxilupa, a mulher-mãe da embala de Kambyote, em Namakunde[4], tinha convocado todas as adolescentes que aguardavam pelo dia D para a cerimónia pré-acantonamento que consistia na feitura do dongwena[5]especial. Seriam vistas durante uma semana e partiriam depois para três meses de aulas num sítio onde podiam ser visitadas apenas por mulheres viúvas e sem contacto sexual. A puberdade que lhes tinha batido à porta seria celebrada com este ritual onde aprenderiam as danças milenares do povo, a cuidar da casa, da família, do futuro esposo, da lavoura, da ordenha das vacas, do mahini[6], do desfarelamento e trituração da masambala[7], da feitura do pirão[8]e, sobretudo, das técnicas nocturnas. A inteligência que Nehone evidencia na escola dá garantias a Nanditemwa de que a sua única filha venha a destacar-se no grupo, pressuposto importante para ser mulher dum osimanaya[9] ou um doutor da cidade.
Não tardou a chegada da mulher-conselheira da aldeia. Naxilupa passava de casa em casa fazer a convocatória oral. Nenhuma mão devia reclamar do desconhecimento dos preparativos da cerimónia. Já lá vão mais de doze anos desde que Naxilupa herdou a pulseira que a identifica como a mulher-mãe de Kambyote, a depositária dos ritos femininos do seu povo que pretende perpetuar a todo custo a quem respire o ar kwanyama.
- Com licença nesta casa de Nda Mufayo[10]! – A voz de Naxilupa é única e inconfundível.
- Salve, rainha-mãe, herdeira e depositária da nossa identidade! - Respondeu Nanditemwa.
- Filha amada, vim convocar a menina Nehone para a ndongwena da efundula que é na semana que vem - Disse Naxilupa num Kwanyama rebuscado.
- Mamã, não sei o que lhe dizer. Parece que a menina só vai entrar no ano que vem com as meninas mais novas.
 
- Como assim se ela está na embala e o acampamento é já no começo do frio? - Questionou intrigada Naxilupa.
- A mamã viu ontem aquela carrinha da missão que saiu na Ombanja[11]? Era a madrinha dela que veio buscá-la para uma semana no Oyohle[12].
A peregrinação ao local que acolhe o corpo hirto do rei dos Kwanyamas é o que mais se espera de um ovambo[13]. Agora dividida entre o dever de Nehone frequentar a escola de iniciação feminina e o outro, também sagrado, de visitar Oyole, Naxilupa abandona a casa abanando a cabeça. E vai indo levada pelo vento que sopra do sul ao norte. Precisará de encontrar argumentos para as outras mães da aldeia cujas filhas vão a efundula e evitar que haja outras desistências.
Preocupada está também Nanditemwa que precisa de esconder a menina até conseguir fazê-la sair da aldeia, lançada que está a mentira.
- Filha! Estou quase a cumprir o teu desejo, mas tens que fazer coragem e aguentar até que as madres venham. O teu pai já foi ao encontro delas e vão passar aqui numa hora em que ninguém está na embala. Vais à missão estudar até passar o tempo da efumbula.
Entre sóis ardentes e noites luarentas, Nehone suportou dezassete dias no minúsculo cubículo até a chegada da Land Cuiser da missão Católica. Exactamente no dia da partida das noviças da embala para o acampamento. As mulheres entretidas na organização da cerimónia e os homens cuidando da transumância[14] do gado que carecia de pastos e de água nas proximidades. Kambyote estava às moscas. As madres pararam a carrinha cobrindo a entrada da casa. Uma delas meteu-se porta adentro com um saco contendo um hábito e a habitual cabaça em que levam mahini.
Nehone pôde sair em segurança e levada ao internato feminino onde estudou enfermagem, tornando-se na mais conhecida activista contra a clitoritomia[15]entre os povos da sua região. É hoje uma médica casada com um rico fazendeiro e investigador da cultura Ovambo.


[1]- Cerimónia de iniciação feminina (do kwanyama).
[2]- Excisão genital; retirada total ou parcial do clítoris.
[3]- Antiga designação de Ndjiva, capital da província angolana do Kunene.
[4]- Município do Kunene.
[5]- Penteado tradicional Kwanyama (cada tipo de ndongwena tem um significado especial).
[6]- Leite fermentado em cabaças (termo kwanyama).
[7]- Milho-miúdo.
[8]- Pasta feita a base de farinha de milho ou masambala, bastante apreciado entre os povos do centro e sul de Angola.
[9]- Ferreiro; arte de siderurgia (termo kwanyama).
[10]- Alusão a Mandume Ya Ndemufayo, rei dos Kwanyama.
[11]- Capital do reino (termo kwanyama).
[12]- Local onde se encontra o monumento que homenageia Mandume, o lendário rei dos Kwanyama.
[13]- Povo que habita o sul de Angola e norte da Namíbia; o mesmo que Kwanyama.
[14] - Deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições de pasto durante uma parte do ano.
[15]- Excisão; ablação do órgão genital feminino.