sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

AS LÁGRIMAS DE KAYONGONA

- Ndombwa yetu iye! Ndombwa yetu iye!
Mulheres vestidas a rigor, como manda a tradição ovimbundu, cantavam eufóricas. Era a família do noivo que fora à busca do enxoval da jovem recém-casada.
- Gilera yacio lo fogão vye!
(Venha a geleira e o fogão!)
- Lombia vye!
(Venham as panelas!)
- Mala iye! Lonanga vye!
(Venha a mala! Venham os panos!)

Tias, primas e duas irmãs, um grupo de nove ou dez senhoras de meia e alta idade, todas elas parentes de Maurício Sandonga, eram as mandatadas do patrono da família para irem à casa dos país de Kayongona, acabada de casar. Aliás, kayongona estava ainda em acto matrimonial, pois o casamento só termina oficialmente quando ela estiver já senhora e mandona de sua casa. É preciso que se desligue dos seus parentes consanguíneos e se una aos Sandonga que a aguardam como nova filha.

Kayongona, que é do Moxico, estava a viver um momento único. É jovem como Maurício e com apenas um filho na barriga. Ambos estão ainda na casa dos vinte anos, embora Kayongona tenha dois cacimbos a mais do que ele. Porém, alto, barbudo e com a calvície a espreitar-lhe a cabeça, ninguém dá conta da menoridade em relação à mulher. Nem mesmo os pais de ambos. Casamento inter-étnico é o primeiro em sua vida. Nem mesmo os cinco anos de sociologia rural puderam dar-lhe este lado cultural, e vai, de minuto em minuto, vivendo com expectativa cada acontecimento, cada detalhe destas últimas vinte e quatro horas de insónia continuada.

- Come, minha filha! – Ordenou Ernestina, a sogra. – Casamento é alegria mas é também sacrifício. Amanhã ainda vais receber visita e os direitos particulares do Maurício só começam mesmo depois da última tia se dispersar.

- Está bem mamã, obrigada. - Agradeceu. – A mamã pode me dizer o que ainda está por acontecer? - Indagou Kayongona expectante.

- Minha filha, eu embora tua sogra, perante a família do Sandonga - Ernestina apontava para o grupo de Alzira, a cunhada mais velha – também sou nora como tu. Tens de perguntar àquela tia de lenço às riscas. É a tia Alzira Sandonga, tia mais velha do Maurício. É a ela que cabe ditar os teus passos até terminar o casamento e fazer cumprir a tradição.

Kayongona engoliu o discurso em seco. - Não vou estragar as coisas agora que estão no fim. - Pensou ela sem no entanto o dizer.

O pedido de noivado, feito no mesmo dia do casamento civil, tinha sido para muitos jovens uma autêntica aula de cultura bantu. Sandonga e Ernestina, visitantes em casa de Marcos Ekumbi e Cacilda Ekumbi, pais de Kayongona, deixaram que a tradição cokwe fosse cumprida. Ambos casais queriam mostrar a seus filhos nubentes, embora doutores, que a cultura tem peso e é para preservar. Cumpriram, por isso, com todos os preceitos dos tucokwe e dos ovimbundu em termos de rituais matriciais.

Longe da estranha moda citadina onde até terrenos e inertes fazem parte da lista de incumbências que o noivo leva ao acto pré-matricial, Marcos Ekumbi em concordância com Jones Kambango, tio mais velho de Kayongona, fez questão de enumerar a lista do impreterível e inadiável. Aliás, foi mais ideia de Kambango que queria pesar quanto os Sandonga são zeladores da cultura e cumpridores de promessas, do que Ekumbi que nessas circunstâncias perde o poder de decisão a favor do tio[1].


E a carta-lista começava assim.


“Queridos compadres,


Apesar de alguma instrução, que a escola e a convivência citadina nos proporcionaram, o mais fácil tem sido tirar o indivíduo do seu meio natural do que a cultura da sua vida.


É neste contexto que vimos remeter-vos as incumbências sem alternativa que esperamos, para o bem-estar emocional da nova família que desejamos todos criar, haja respeito escrupuloso.

Não se preocupem com o que a moda dita. Somos kacokwe com orgulho, o mesmo orgulho que notamos nas conversas havidas com os compadres que não abdicam da cultura ovimbundu que vos está no sangue e estará no sangue de nossos netos comuns que nos brindarão o já nosso filho Mauro e vossa filha kayongona.


1-                Longa lya huma[2]


2-                Njimbu[3]


3-                Katemu[4]


4-                Mufulu[5]


5-                O que gostariam que levássemos caso os papéis fossem invertidos.


Elevada estima e consideração,


Mwata Kambango (tio de Kayongona)


Marcos Ekumbi (pai de Kayongonona, vossa nora escolhida)”


Marcos EKumbi e soma Katokola, co-irmão[6] de Ernestina, precisaram de viajar ao Congo para encontrar um obreiro para as encomendas. Os Luvale de Angola há muito tinham abandonado o trabalho artesanal do ferro, mas era tão elevado o seu ânimo em cumprir com as exigências da família Ekumbi que conseguiram a enxadinha, o kanjaviti[7] e os super wax[8] em tempo record. Mês e meio, apesar de terem recorrido ao estrangeiro para encontrar o prato do oleiro e a enxada e o machadinho fundidos por um artesão. Um boi, uma cabra, vinhos, cachimbo e tabaco e um isqueiro de corda foram acrescentados ao dote.

Sandonga, respeitado e conhecido entre os seus como homem de posses e boas maneiras,             queria também mostrar o peso e honra da sua família e juntou ao tradicional uma nesga do modernismo. Dir-se-ia mesmo que Sandonga juntou a fome à vontade de comer. Precisaram de recrutar jovens fortes para carregar e esvaziar a camioneta Daimler que gemia nos saltos devido ao peso.

Na tarde do pedido, os momentos que antecederam a abertura e aferição da carta-lista constituíram-se num jogral de adágios criteriosamente escolhidos para a ocasião, sendo intervenientes mwata Kambango, tio de Kayongona e soma Katokola, que se afirmava como o legítimo representante legal de Maurício Sandonga, de quem dizia ter elevado orgulho.

Maurício era um jovem hábil e que enfrentava com estoicismo as adversidades que cruzavam a sua vida. Na cerimónia de Evamba[9], que frequentou em tempo certo, foi um destacado aluno, durante as férias dos dez anos. Assim também foi na Faculdade de Economia onde se doutorou com apenas vinte e quatro anos, mesmo vivendo tentações e privações ligadas ao seu noviciado na capital do país que tem uma vida bem mais agressiva do que a vila de Kamakupa[10].

Maurício destaca-se em quase tudo, o que orgulha ainda mais o tio.

- É melhor do que os irmãos todos! - Costuma gabar-se Katokola, sobretudo quando acompanhado de amigos. – O meu sobrinho não se compara aos vossos que entraram na Evamba em noite sem luar[11]. Ele é diferente. É único! – Afirma sem receio, sempre que discute o sucesso e insucesso dos jovens de Kamakupa.

Soba na sua embala, Katokola não se coíbe e nem perde oportunidade de se gabar do seu herdeiro predilecto[12].

- Ele é caçula, é o primeiro doutor, é o primeiro casado entre os onze filhos do meu cunhado Sandonga e único que está mais ligado a mim por laços afectivos. – Assim descreve o sobrinho.
Semanas antes do acto, kayongona, noiva avisada, tinha feito uma pesquisa junto a família de Mauricio sobre os gostos alimentares dos Sandonga e, com empenho, aprendeu com as cunhadas a confeccionar os pratos tradicionais do Bié.

Na hora do repasto, depois de conversas arrumadas, que no fundo era mais o cumprir de um formalismo do que a busca de verdades incógnitas, a mesa estava recheada: do lado ovimbundu havia pirão de fuba de milho e feijão, losate[13], peixe seco assado e outras iguarias. Xima nyi ifo[14], ixi ya mulwiji[15], matamba[16], macoso[17], entre outros acompanhantes, do lado kacokwe.

No centro da enorme mesa, uma tábua de contraplacado com uns três metros de largura e metade de comprimento, estava a água, os refrigerantes, os vinhos, as cervejas, a garapa[18], a hidromel, o whisky e outras aguardentes.

Até dança kafundeji[19] houve para animar os compadres. O grupo Zango Lyeza[20], do Kakolo, tinha sido propositadamente convidado para animar a festa e mostrar aos luandeses e bienos a homogenidade da cultura lunda-cokwe.
À chegada, à casa que Maurício preparou para si e mulher e onde a restante família aguarda pela inquilina, outra canção. As tias de Maurício são incansáveis no cancioneiro. Flores junto a porta do quintal, lenços brancos imitando bandeiras e anunciando a paz perpétua para aquele lar, bocas regadas de kisângua, senhoras de todas idades vocalizam:

- Ndombwa twa yongwile yeya!
(A noiva desejada chegou!)
- Ndombwa yetu ya fina!
(A nossa noiva/nora é linda!)
- Sekulu wa sola cywa!
(O senhor/noivo fez boa escolha!)
- Vitima vya sanjuka enene!
(Os corações estão muito alegres!)

A canção entoada com pausas fez com que Kayongona, que entendia um pouco daquela letra, se emocionasse, banhando-se em lágrimas, ao que alguns assistentes, alheios à simbologia das lágrimas, entendessem como sinónimo de tristeza e indisposição por parte da noiva.

- Estás a chorar, linda cunhada? - Interrogou um dos amigos de Maurício.

- É só alegria, Carvalho. É difícil de conter a emoção! - Respondeu-lhe Kayongona com um sorriso rasgado entre os lábios sedentos.







[1]- Contrariamente a cultura ocidental, na tradição bantu o tio é depositário de poder e autoridade sobre os filhos da irmã, cabendo-lhe a decisão quanto ao seu futuro.
[2] - Prato de argila, símbolo de aliança entre duas famílias.
[3] -Machado; peça de ferro fundida por ferreiro artesanal, simbolizando o trabalho masculino.
[4] - Enxada; peça de metal fundida por ferreiro artesanal, simbolizando o trabalho feminino ou a lavoura.
[5] - Muda de panos, normalmente para a mãe da noiva.
[6] - Primos de primeiro grau. Os ovimbundu tratam-se por irmãos, sendo primo apenas o filho do irmão da mãe ou o filho da irmã do pai.
[7] - O mesmo que pequeno machado (do umbundu njaviti).
[8] - Marca de panos muito usados em cerimónias de alembamento ou pedido de noivado (Angola).
[9]- Cerimónia de circuncisão (termo ovimbundu). Pode ler também REDINHA, José, “Etnossociologia dos povos do nordeste de Angola”, pgs. 74-80.
[10]- Município do Bié (centro de Angola).
[11]- Assim são designados aqueles que não se destacam na sociedade.
[12]- Na tradição dos ovimbundu e dos bantu, em geral, o sobrinho está na primeira linha de sucessão ou herança, secundado pelo filho do tio finado.
[13]- Beringela (termo umbundu).
[14]- Funje com carne (termo cokwe).
[15]- Peixe do rio/de água doce (termo cokwe).
[16]- Kisaka; alimento confeccionado com folhas de mandioqueira (termo Cokwe).
[17]- O mesmo que Katatu em Kimbundu; lagarta; insecto em estádio intermédio da metamorfose das borboletas (termo cokwe).
[18]- Bebida feita a base de milho e mbundi (espécie de raiz com propriedade adoçante e fermentadora).
[19]- Espécie de dança do ventre apreciada e executada pelos tucokwe e que retrata as relações pré-sexuais. É exercitada pelas raparigas em idade núbil procedentes da escola de iniciação feminina “mukanda wa pwo”.
[20]- Do cokwe alegria chegou.