- Ndombwa yetu iye! Ndombwa yetu iye!
Mulheres vestidas a rigor, como manda
a tradição ovimbundu, cantavam eufóricas. Era a família do noivo que fora à
busca do enxoval da jovem recém-casada.
- Gilera yacio lo fogão vye!
(Venha a geleira e o fogão!)
- Lombia vye!
(Venham as panelas!)
- Mala iye! Lonanga vye!
(Venha a mala! Venham os panos!)
Tias, primas e duas irmãs, um grupo
de nove ou dez senhoras de meia e alta idade, todas elas parentes de Maurício
Sandonga, eram as mandatadas do patrono da família para irem à casa dos país de
Kayongona, acabada de casar. Aliás, kayongona estava ainda em acto matrimonial,
pois o casamento só termina oficialmente quando ela estiver já senhora e
mandona de sua casa. É preciso que se desligue dos seus parentes consanguíneos
e se una aos Sandonga que a aguardam como nova filha.
Kayongona, que é do Moxico, estava a
viver um momento único. É jovem como Maurício e com apenas um filho na barriga.
Ambos estão ainda na casa dos vinte anos, embora Kayongona tenha dois cacimbos
a mais do que ele. Porém, alto, barbudo e com a calvície a espreitar-lhe a
cabeça, ninguém dá conta da menoridade em relação à mulher. Nem mesmo os pais
de ambos. Casamento inter-étnico é o primeiro em sua vida. Nem mesmo os cinco
anos de sociologia rural puderam dar-lhe este lado cultural, e vai, de minuto
em minuto, vivendo com expectativa cada acontecimento, cada detalhe destas
últimas vinte e quatro horas de insónia continuada.
- Come, minha filha! – Ordenou
Ernestina, a sogra. – Casamento é alegria mas é também sacrifício. Amanhã ainda
vais receber visita e os direitos particulares do Maurício só começam mesmo
depois da última tia se dispersar.
- Está bem mamã, obrigada. -
Agradeceu. – A mamã pode me dizer o que ainda está por acontecer? - Indagou
Kayongona expectante.
- Minha filha, eu embora tua sogra,
perante a família do Sandonga - Ernestina apontava para o grupo de Alzira, a
cunhada mais velha – também sou nora como tu. Tens de perguntar àquela tia de
lenço às riscas. É a tia Alzira Sandonga, tia mais velha do Maurício. É a ela
que cabe ditar os teus passos até terminar o casamento e fazer cumprir a
tradição.
Kayongona engoliu o discurso em seco.
- Não vou estragar as coisas agora que estão no fim. - Pensou ela sem no
entanto o dizer.
O pedido de noivado, feito no mesmo
dia do casamento civil, tinha sido para muitos jovens uma autêntica aula de cultura
bantu. Sandonga e Ernestina, visitantes em casa de Marcos Ekumbi e Cacilda
Ekumbi, pais de Kayongona, deixaram que a tradição cokwe fosse cumprida. Ambos
casais queriam mostrar a seus filhos nubentes, embora doutores, que a cultura
tem peso e é para preservar. Cumpriram, por isso, com todos os preceitos dos
tucokwe e dos ovimbundu em termos de rituais matriciais.
Longe da estranha
moda citadina onde até terrenos e inertes fazem parte da lista de incumbências
que o noivo leva ao acto pré-matricial, Marcos Ekumbi em concordância com Jones
Kambango, tio mais velho de Kayongona, fez questão de enumerar a lista do
impreterível e inadiável. Aliás, foi mais ideia de Kambango que queria pesar quanto os Sandonga são
zeladores da cultura e cumpridores de promessas, do que Ekumbi que nessas
circunstâncias perde o poder de decisão a favor do tio[1].
E a carta-lista
começava assim.
“Queridos compadres,
Apesar de alguma instrução, que a escola e a
convivência citadina nos proporcionaram, o mais fácil tem sido tirar o indivíduo
do seu meio natural do que a cultura da sua vida.
É neste contexto que vimos remeter-vos as
incumbências sem alternativa que esperamos, para o bem-estar emocional da nova
família que desejamos todos criar, haja respeito escrupuloso.
Não se preocupem com o que a moda dita. Somos
kacokwe com orgulho, o mesmo orgulho que notamos nas conversas havidas com os
compadres que não abdicam da cultura ovimbundu que vos está no sangue e estará
no sangue de nossos netos comuns que nos brindarão o já nosso filho Mauro e
vossa filha kayongona.
1-
Longa lya huma[2]
2-
Njimbu[3]
3-
Katemu[4]
4-
Mufulu[5]
5-
O que gostariam que
levássemos caso os papéis fossem invertidos.
Elevada estima e consideração,
Mwata Kambango (tio de Kayongona)
Marcos Ekumbi (pai de Kayongonona, vossa nora
escolhida)”
Marcos EKumbi e soma Katokola, co-irmão[6] de Ernestina, precisaram de viajar ao Congo
para encontrar um obreiro para as encomendas. Os Luvale de Angola há muito
tinham abandonado o trabalho artesanal do ferro, mas era tão elevado o seu
ânimo em cumprir com as exigências da família Ekumbi que conseguiram a
enxadinha, o kanjaviti[7] e os super wax[8] em tempo record. Mês e meio, apesar de terem
recorrido ao estrangeiro para encontrar o prato do oleiro e a enxada e o
machadinho fundidos por um artesão. Um boi, uma cabra, vinhos, cachimbo e
tabaco e um isqueiro de corda foram acrescentados ao dote.
Sandonga, respeitado e conhecido entre os seus
como homem de posses e boas maneiras, queria
também mostrar o peso e honra da sua família e juntou ao tradicional uma nesga
do modernismo. Dir-se-ia mesmo que Sandonga juntou a fome à vontade de comer.
Precisaram de recrutar jovens fortes para carregar e esvaziar a camioneta
Daimler que gemia nos saltos devido ao peso.
Na tarde do pedido, os momentos que antecederam
a abertura e aferição da carta-lista constituíram-se num jogral de adágios
criteriosamente escolhidos para a ocasião, sendo intervenientes mwata Kambango,
tio de Kayongona e soma Katokola, que se afirmava como o legítimo representante
legal de Maurício Sandonga, de quem dizia ter elevado orgulho.
Maurício era um jovem hábil e que enfrentava
com estoicismo as adversidades que cruzavam a sua vida. Na cerimónia de Evamba[9], que frequentou em tempo certo, foi um
destacado aluno, durante as férias dos dez anos. Assim também foi na Faculdade
de Economia onde se doutorou com apenas vinte e quatro anos, mesmo vivendo
tentações e privações ligadas ao seu noviciado na capital do país que tem uma
vida bem mais agressiva do que a vila de Kamakupa[10].
Maurício destaca-se em quase tudo, o que
orgulha ainda mais o tio.
- É melhor do que os irmãos todos! - Costuma
gabar-se Katokola, sobretudo quando acompanhado de amigos. – O meu sobrinho não
se compara aos vossos que entraram na Evamba em noite sem luar[11]. Ele é diferente. É único! – Afirma sem
receio, sempre que discute o sucesso e insucesso dos jovens de Kamakupa.
Soba na sua embala, Katokola não se coíbe e
nem perde oportunidade de se gabar do seu herdeiro predilecto[12].
- Ele é caçula, é o primeiro doutor, é o
primeiro casado entre os onze filhos do meu cunhado Sandonga e único que está
mais ligado a mim por laços afectivos. – Assim descreve o sobrinho.
…
Semanas antes do acto, kayongona, noiva
avisada, tinha feito uma pesquisa junto a família de Mauricio sobre os gostos
alimentares dos Sandonga e, com empenho, aprendeu com as cunhadas a
confeccionar os pratos tradicionais do Bié.
Na hora do repasto, depois de conversas
arrumadas, que no fundo era mais o cumprir de um formalismo do que a busca de
verdades incógnitas, a mesa estava recheada: do lado ovimbundu havia pirão de
fuba de milho e feijão, losate[13], peixe seco assado e outras iguarias. Xima nyi
ifo[14], ixi ya mulwiji[15], matamba[16], macoso[17], entre outros acompanhantes, do lado kacokwe.
No centro da enorme mesa, uma tábua de contraplacado
com uns três metros de largura e metade de comprimento, estava a água, os
refrigerantes, os vinhos, as cervejas, a garapa[18], a hidromel, o whisky e outras aguardentes.
Até dança kafundeji[19] houve para animar os compadres. O grupo Zango
Lyeza[20], do Kakolo, tinha sido propositadamente
convidado para animar a festa e mostrar aos luandeses e bienos a homogenidade
da cultura lunda-cokwe.
…
À chegada, à casa que Maurício preparou para
si e mulher e onde a restante família aguarda pela inquilina, outra canção. As
tias de Maurício são incansáveis no cancioneiro. Flores junto a porta do
quintal, lenços brancos imitando bandeiras e anunciando a paz perpétua para
aquele lar, bocas regadas de kisângua, senhoras de todas idades vocalizam:
- Ndombwa twa yongwile yeya!
(A noiva desejada chegou!)
- Ndombwa yetu ya fina!
(A nossa noiva/nora é linda!)
- Sekulu wa sola cywa!
(O senhor/noivo fez boa escolha!)
- Vitima vya sanjuka enene!
(Os corações estão muito alegres!)
A canção entoada com pausas fez com que
Kayongona, que entendia um pouco daquela letra, se emocionasse, banhando-se em
lágrimas, ao que alguns assistentes, alheios à simbologia das lágrimas,
entendessem como sinónimo de tristeza e indisposição por parte da noiva.
- Estás a chorar, linda cunhada? - Interrogou
um dos amigos de Maurício.
- É só alegria, Carvalho. É difícil de conter
a emoção! - Respondeu-lhe Kayongona com um sorriso rasgado entre os lábios
sedentos.
[1]- Contrariamente a cultura ocidental,
na tradição bantu o tio é depositário de poder e autoridade sobre os filhos da
irmã, cabendo-lhe a decisão quanto ao seu futuro.
[2]
- Prato de argila, símbolo de aliança entre duas famílias.
[3]
-Machado; peça de ferro fundida por ferreiro artesanal, simbolizando o trabalho
masculino.
[4]
- Enxada; peça de metal fundida por ferreiro artesanal, simbolizando o trabalho
feminino ou a lavoura.
[5]
- Muda de panos, normalmente para a mãe da noiva.
[6]
- Primos de primeiro grau. Os ovimbundu tratam-se por irmãos, sendo primo
apenas o filho do irmão da mãe ou o filho da irmã do pai.
[7]
- O mesmo que pequeno machado (do umbundu njaviti).
[8]
- Marca de panos muito usados em cerimónias de alembamento ou pedido de noivado
(Angola).
[9]- Cerimónia de circuncisão (termo ovimbundu). Pode ler
também REDINHA, José, “Etnossociologia dos povos do nordeste de Angola”, pgs.
74-80.
[10]- Município do Bié (centro de Angola).
[11]- Assim são designados aqueles que não se destacam na sociedade.
[12]- Na tradição dos ovimbundu e dos bantu, em geral, o
sobrinho está na primeira linha de sucessão ou herança, secundado pelo filho do
tio finado.
[13]- Beringela (termo umbundu).
[14]- Funje com carne (termo cokwe).
[15]- Peixe do rio/de água doce (termo cokwe).
[16]- Kisaka; alimento confeccionado com folhas de
mandioqueira (termo Cokwe).
[17]- O mesmo que Katatu em Kimbundu; lagarta; insecto em
estádio intermédio da metamorfose das borboletas (termo cokwe).
[18]- Bebida feita a base de milho e
mbundi (espécie de raiz com propriedade adoçante e fermentadora).
[19]- Espécie de dança do ventre apreciada e executada pelos tucokwe e que
retrata as relações pré-sexuais. É exercitada pelas raparigas em idade núbil
procedentes da escola de iniciação feminina “mukanda wa pwo”.
[20]- Do cokwe alegria chegou.