quinta-feira, 15 de maio de 2014

O ÍNTIMO DE BRIGITE E O SORRISO A ANGOLANA

Apesar da chuva que caiu em Saurimo, na tarde de sábado, 08 Fev. 2014, cerca de meia centena de pessoas presenciaram ao acto de apresentação do poemário de Brigitte Caferro, realizado no Cine Chicapa, com a presença da Governadora da Lunda Sul, Cândida Narciso, que se fez acompanhar de dois vice-governadores e do director provincial da cultura. Soberano Canhanga, também poeta  e  prosador, foi convidado para a apresentação crítica do livro, começando por recitar um poema que escreveu para homenagear a autora e as senhoras presentes:

SORRISO A ANGOLANA

Nesta sala que me acolhe
No consagrado teu dia

Percorre-me a memória
Os sorrisos mais luminosos que me brindaste
Mesmo multi-atarefada
Mesmo preocupada
Entre emprego e família dividida
TEU SORRISO SEMPRE PRESENTE

De dor gemendo, aflita,

Sonolenta,
De noite mal dormida
Do mona adoentado
Moída pelo trabalho
Pelas lidas caseiras
Cuidando marido ressacado
Ou desviando patrão mal-intencionado
TEU SORRISO SEMPRE PRESENTE!”


Ø Excelências, amigos das artes e, sobretudo, da literatura.
Ø  A minha saudação especial às nossas mães, razão da nossa existência.
Ø Vénia redobrada à Dra. Cândida Narciso que nunca deixou de estar presente num acto de lançamento de livros em Saurimo, dando assim exemplo de que a sociedade só cresce com conhecimento.

A nossa escritora tem como nome artístico Brigitte Caferro, sendo de nome próprio Brigite Causse Caferro. Nascida aqui mesmo em Saurimo, em meados da década de 80 do século passado, é formada em Administração pela Universidade Federal de Paraná, no Brasil. É cantora, artesã e escultora da palavra, sendo este “do meu íntimo mais íntimo” o seu primeiro “artefacto” literário. Brigitte Caferro também pode ser lida na antologia “Amores diversos”, publicada no Brasil, em 2012, bem como na “Folha Carioca” onde ilustrou com um poema a matéria “literotismo”.
O meu primeiro contacto com Brigitte foi pela via do FB, e já quando tinha terminado de ler o seu livro que me fora enviado para essa empreitada difícil que é apresentar o livro às senhoras e senhores aqui presentes.

 Confesso, que quando recebi o convite do grupo Hytweza para comparecer nessa cerimónia de apresentação do poemário de Brigitte, o sentimento foi de satisfação por ser eu um amante fervoroso das letras e incentivador da cultura da leitura e escrita entre os jovens. Embora acometido por uma lombalgia, aceitei o convite. Porém, um calor interior invadiu-me quando me foram pedidos conselhos sobre como organizar um lançamento de livro. Opinei, mas fiquei receoso que algo sobrasse para mim. Assim pensado, assim solicitado. Senti-me criança perante tamanha responsabilidade, embora honrosa e irrecusável.
Estamos aqui dois estreantes. Ela na publicação e eu na apresentação crítica de um livro. A minha missão se torna ainda mais difícil pelo facto de o livro trazer já uma apreciação crítica de Ricardo Alfaya, um escritor, crítico literário, revisor e editor, como se poderá ler na pág. 07 (elementos pré-textuais da obra).

Ø   Queridas mamãs, queridos papás, caros jovens,

Um estudo realizado recentemente pelo investigador Tomás  Lima Coelho, sobre a literatura angolana e feita pelos angolanos, actualizada nesta última quinta-feira, aponta que, de 1849 (ano em que foi publicada a primeira obra de um angolano), a esta parte, o número de escritores nascidos na Lunda Sul ainda NÃO CHEGA A DEZ. São apenas SETE, contando já com a nossa caçula Brigitte Caferro, Sendo que o primeiro lundasulino a publicar um livro em Angola foi o Professor Dr. Vítor Kajibanga com “A alma sociológica na ensaística de Mário Pinto de Andrade, em 2000”. A ele se seguiram Bula Mbungue, Elias Chinguli de Oliveira, Fonseca Sousa, Raul Luís Fernandes Júnior e Valter Hugo Mãe (este último nasceu aqui em Saurimo mas vive em Portugal desde 1976). Brigitte é, portanto a primeira lundasulina a publicar um livro, já que, dos SETE naturais desta província, seis são homens.

Preocupados, vamos fazendo apelos e vamos tomando iniciativas como a criação do Núcleo de Leitura e Literatura, na Escola Superior Politécnica da Lunda Sul, que, desde já, convido todos os jovens a frequentá-lo.

Ø   Ilustres senhoras e senhores,
Já vai sendo tempo de começarem a surgir novos valores na Literatura da Lunda Sul. Precisamos que surjam mais Brigitte Caferro. Pessoas que façam da escrita “a fotografia do coração”, conforme nos recomenda a nossa autora no seu poema ARTISTA (pág. 81). “Solte-se a palavra, por meio da escrita. Escreva-se, reescreva-se”.

Brigitte Caferro não vem fazer número. Vem preencher o seu lugar e trazer vida à criatividade artística na Lunda Sul. Vem dizer que é possível desde que se tenha a palavra e a coragem de a esculpir conforme nos ensina nas páginas 05 e 06.“Escrevo desde os meus 13 anos. Anotava num caderno e por questão de segurança passei a digitá-los. Com o evoluir do tempo fui evoluindo a linha de pensamento e melhorei a escrita… Quando senti que a minha sensibilidade artística era muito forte, decidi escrever e publicar esse livro”. Aos jovens, candidatos a escritores, aqui está o conselho mais do que claro. Ser escritor não é algo que se consiga de dia para noite. Exige inspiração e, acima de tudo, transpiração. Muita transpiração para dar forma à palavra.

Nos seus 76 poemas, Brigite apregoa, acima de tudo, o amor, o ser e a sociedade. A escrita de Brigitte é, sobretudo, intimista. É o seu grito ao encontro do “nós” social. A fotografia desta poesia intimista pode ser encontrada na pág. 17 “Dois corpos e uma paixão” ou ainda na pág. 21 “Vem amor/com teu fogo/causar-me curto circuito… /com teu cabo de alta tensão/ fazer-me conexão…”.

Nos “amores de Brigitte” encontramos também dilemas. A antagonia entre o estar juntos e compreender/enfrentar a separação. A ansiedade, o desejo de regressar e de reconquistar colos… Próprio de quem se encontre distante dos seus. Próprio dos migrantes.

Brigitte mostra-nos com surrealismo, na pág. 25, em que diz viver num “mundo de sonhos” onde o ”maior pesadelo é a realidade” de um dia “encontrar-te”. Em oposição, na pág. 20, Brigitte fala sobre o fim do tempo ou o fim da missão, mais quando tempo não houver para o “abraço final”,  quando deixarmos de “dividir a sala, sorrisos e futuros”…
Considero a poesia de Brigitte Caferro, como desabafos da alma que nos chegam por via da escrita. Neles, impera o verso livre, não se destacando formas tradicionais como o soneto, as quadras e as métricas, etc. Encontramos porém elementos metalinguísticos, próprios do género literário. E, Brigitte também reinventa a língua com que trabalha no seu “íntimo mais íntimo”. Bastará ler o “penso, repenso e tripenso” (pág. 27), ou ainda elementos como a rima em “chamas-me p´ra cama/mas não me amas/ És o fantasma/que corrompe minha alma” (Pág. 53).

A anáfora e a gradação, outras características deste género, também estão representadas em vários textos como “Quero voltar a ser criança…/Quero voltar ao passado/… Quero regressar à meninice…/(pág. 56).
No “íntimo mais íntimo” de Brigitte nota-se também o recurso à personificação e a expressões metafóricas como se pode conferir em “As luzes revelando segredos sombrios/no palco da cidade adormecida” (pág. 97) ou ainda o pintar “… na tela da alma/amores, sonhos e ilusões…”

Outra questão, não menos importante, é o facto de a angolana Brigitte Caferro, ter escrito com base no discurso brasileiro da língua portuguesa ou aproximando o discurso ao AOLP de que Angola, por razões óbvias, cultural e socialmente ponderáveis, ainda não aderiu.
Grande parte da produção científica e intelectual, escrita em Língua Portuguesa, vem do Brasil e de Portugal, sendo o país americano, aquele que mais falantes possui. Daí, a necessidade de um apelo aos jovens, aos professores das nossas crianças. Escrevam de acordo ao português padrão, aquele convencionado até hoje, mas não deixem de estar atentos às regras do AOLP, para que tão logo os linguistas e os políticos se entendam não fiquemos na fila de trás, quanto à aplicação das novas regras.

Quero agradecer a Brigitte Caferro pela ousadia que teve em trazer-nos os seus gritos da alma e pedir que não se embale nos elogios que esteja ou vá receber. Continue a cultivar-se e a polir a palavra. Vá lendo os clássicos da literatura lusófona e, sobretudo, aqueles que reinventaram a língua como Fernando Pessoa, Eça de Queirós, António Jacinto, Alexandre Dáskalos, Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, entre outros. Vá também tutorando os jovens que a vão procurar para dar forma aos seus textos. Somos poucos para a grande empreitada que é desenvolvermos a nossa terra, a nossa Lunda Sul, a nossa Angola.
Para terminar,
Precisamos que surjam mais jovens como Brigitte Caferro. Pessoas que façam da escrita a fotografia do coração. “Solte-se a palavra, por meio da escrita. Escreva-se, reescreva-se”.

Tal como recomendou, uma vez, o já finado mais velho Mendes de Carvalho, a quem rendo homenagem, “os jovens não precisam de ter pressa em publicar. Devem antes cultivar-se”. Porque a literatura adiada não apodrece. Ela amadurece.
E já que estamos a comemorar o dia internacional da mulher, com a apresentação do livro de uma jovem mulher, por que não irmos à página 75 e desfrutarmos do poema Mulheres?

“Dos seios/liberam as mulheres/ a essência-fragrância/que hipnotiza os homens/e que os leva ao êxtase!/ Doces como teixos/ as mulheres precisam ser/irrigadas e acariciadas/ Também mimadas/amadas e protegidas/ para que não se tornem venenosas”.
Muito obrigado,

SOBERANO CANHANGA (Jornalista e escritor)
Saurimo, 08 de Março de 2014.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A TUTELA DOS SOBREVIVOS


(Conto adaptado)
 
Um homem de negócios, com três irmãos mais novos, casado e pai de quatro filhos, morre num acidente de aviação.

Kexi Jina era a figura mais influente da sua família e comunidade. Sempre velou pela harmonização familiar e educação dos seus. Os seus filhos: Lamba, Maka, Vitangi e Neso frequentavam as melhores escolas, juntamente com seus primos.

Preocupados com a educação de seus quatro sobrinhos, Mukwasenu, Mucinenu e Mukwatenu, os irmãos do finado, reuniram-se para acertar como proporcionar uma educação aceitável dos meninos órfãos.

Chegados à casa de Kexi Jina, o finado, e junto da viúva, Mukwasenu anunciou que ficaria com os sobrinhos Lamba e Neso. Mucinenu não mugiu nem tugiu. Dele apenas se ouviu silêncio.

Mukwatenu, o irmão caçula, embora estivesse ainda a formar-se e sem vida estável ou estruturada, decidiu tomar Vitangi como sua protegida.

- Manos, não vejo outra solução senão levar a sobrinha Vitangi para minha casa e crescermos juntos. Onde eu comer, onde eu dormir e onde eu tirar para estudar ela também usufruirá, pois este foi o sonho do nosso finado irmão, ter os filhos e os sobrinhos todos formados. - Disse, ao que Mukwasenu, irmão mais velho, concordou e elogiou.

De Mucinenu, irmão intermédio, nada se ouvia. Maka estaria condenada a ficar com a mãe que já decidira voltar ao Congo Democrático, sua terra de procedência.

Perante tal situação e quanto o irmão mais velho fazia as contas e já bastante chateado pela falta de atitude de Mucinenu, Mukwatenu voltou a anunciar:

- Já que para o mano "Muci" não abre a boca, levo também a "Kamaka" juntamente com Vitangi e assim a cunhada fica mais aliviada. Vamos dar a educação familiar e a formação que o mano Kexi Jina sempre desejou para seus filhos e sobrinhos. - Rematou, ganhando uma salva de palma por parte de Sambukila, a viúva, e do irmão Mukwasenu.

No seu canto, cachimbo na boca e boina ligeiramente inclinada, a cobrir-lhe parte do rosto, Mucinenu parecia distante daquele cenário. Não tinha emitido sequer uma opinião. Quando todos os dois manos se preparavam para se despedir e anunciar os dias em que voltariam para levar os sobrinhos, Mucinenu pediu a palavra.

- Alto ai! Um momento. Também quero falar.

- Falar o quê, se quando devias ter tomado decisão não o fizeste e forçaste o nosso irmão caçula a assumir uma responsabilidade para a qual não está preparado? Não tens direito a palavra e não amasses a nossa paciência. - Repreeendeu Mukwasenu, o mais velho entre os três.

- Não, mano, por favor. Deixe-me falar, suplicou Mucinenu.

- Mano vamos ouvir o que ele vai falar. Mesmo sabendo que nada alterará o que já aqui foi decidido. Só espero que não venham poucas vergonhas dessa boca. - Ironizou Mukwatenu.

- Ok. Vocês se dividiram os sobrinhos. Tudo bem, eu concordo. E quem vai ficar com a viúva? Deixaram-na para mim? Se é isso que vocês pretendiam, eu aceito e fico com ela!