sexta-feira, 21 de agosto de 2015

HOMENAGEM ÀS MULEMBAS


Nzuzi nasceu em Alfândega, um pequeno vilarejo do norte de Angola. Chegado a Luanda, em meados dos anos noventa do século finado, ainda criança, viu o mundo da escola a fugir-se dele por não lhe terem dado a oportunidade de deslizar persistentemente o lápis sobre o papel até dar forma às figuras geométricas, às letras e aos números. Nzuzi passa hoje grande parte do seu tempo refugiado em sombras de mulembeiras ou mulembas, numa das ruas da zona urbana de Luanda, onde faz da lavagem de carros o seu ganha-pão.

Xavitu, outros dos jovens que frequentam as sombras das mulembas de Luanda, nasceu em Namacunde, no Cunene. Xavitu abandonou a sua terra natal forçado pela guerra. Os ovambu, embora tenham a vocação natural de pastores e gostem de fazer transumância do seu gado, não são muito dados a emigrar para terras distantes e desconhecidas, ainda mais, sem o gado, uma de suas principais ocupaçoes. Mas Xavitu, aconselhado por um parente do exército que pesquisara o "salve-se quem puder" na grande cidade, acabou aceitando a ideia de refugir-se em Luanda onde se dizia ser tudo possível. Meteu-se em cima dum camião de carga procedente da Damaralândia e aportou na cidade dos sonhos com dezasseis anos apenas. Dias depois, escolheu a rua que liga a antiga escola de oficiais do Gika à Maianga, abundante em mulembas, onde passou a viver das propinas que cobra aos automobilistas afoitos em encontrar um lugar para estacionar suas viaturas. Tal como Nzuzi, Xavitu faz-se também passar por dono de um parque público, lava carros, cobra dinheiro pelo uso do pedaço de estrada morta, rouba aos incautos, danifica viaturas de quem não pague o que não deve e faz das mulembas da Martal o seu refugio sempre que o grito do sol fale mais do que a sua resistência. As mulembas passaram também a seu restaurante, seu contentor de lixo e, pior ainda, também lugar para urinar e até mesmo defecar.

- Kota, aqui é só mesmo se desenrascar. Quando cheguei, era ainda um "camenino" e comecei mesmo a viver no elevador estragado dum prédio e a lavar os carros e carregar as coisas dos chefes. Quando tenho vontade de tirar água do joelho ou comida da barriga vou mesmo debaixo das mulembeiras. É mesmo já nosso hábito. Não temos outros lugares. Numas mulembas ficamos só para apanhar a sombra, noutras é que fazemos já o que o kota está a ver. - Narrou Xavitu, meio envergonhado.

Lembinha é zungueira e percorre a cidade de lés-a-lés. Na sua bacia, já quase sem cor, transporta "magoga" (sandes de frango frito), "paracuca" (jinguba ou amendoim açucarado), kisângwa (refrigerante caseiro) e outros "mata-fome" bastante solicitados por funcionários públicos e outros frequentadores da cidade, em negócios de rua ou trabalho formal. Apesar de a condição feminina não ajudar muito para a frequência das mulembas, vezes tantas Lembinha teve de imitar os colegas masculinos das ruas de Luanda para aliviar-se debaixo de uma árvore.

- A pessoa se amarra um pano e faz só já debaixo da árvore. Não temos sítios para fazer as "centinas" e quando você bate porta do quintal para pedir licença na casa de banho, ninguém te aceita. - Argumentou com uma ponta de vergonha e tristeza.

Lembinha que é de Tunda Sanji, Ngulungu Alto, tem a consciência do mal que provoca às mulembas e à sanidade urbana, pois reconhece que "não devia ser assim, porque a cidade cheira mal e muitas árvore acabam por secar", mas também se justifica sarcástica que "quando, na barriga ou na bexiga, a revolução chega não há como travá-la", informa a vendedeira.

Na Petrangol, as mulembas que ladeavam a estrada que nos leva a Cacuaco, e Caxito e que desenhavam um "túnel verde" não resistiram à força do machado construtor, que propicionou o alargamento da rodovia, mas ainda resta a Mulemba Waxa Ngola. Apesar de local histórico, de veneração e culto ao soberano Ngola Kilwanji Kya Samba a quem se deve o nome do nosso país, a árvore vai recebendo urina e vários detritos produzidos pelo homem.

 Nga Ximinha, uma senhora que vende bombó assado com jinguba torrada, refugia-se sobre a sombra da árvore secular, não se coibindo de oferecer-lhe, vezes tantas, alguns litros de urina e adubá-la com os restos do seu comércio de rua. Ximinha é também testemunha de outras cenas que se desenvolvem debaixo da mulemba mais famosa da Petrangol.

- Aqui quando é noite, os moços vêm cá namorar e se encostam mesmo na árvore. Já encontramos aqui latex usado na pouca vergonha desses meninos do bairro. Outros, quando o xixi lhes aperta, não se escondem mais. Até homens de fato e gravata é mesmo aqui que descarregam o seu mijo de kimbombo e kapuka que cheira como cheira. - Desabafa Ximinha, entre um misto de culpa pelo que também faz contra a árvore e algum desgosto pela imundície à volta.

Quando se lhe pergunta por que faz ela parte dos que jogam lixo na mulemba, Ximinha coça a cabeça e balbucia:

- É mesmo falta de educação e respeito pelas coisas sagradas. Uma árvore dessas devia ser melhor tratada. - Reconhece a senhora, nos seus aparentes quarenta e picos anos de idade.

Assim segue a vida das mulembas e daqueles que na cidade ganham a vida debaixo das árvores, não sendo poupada nenhuma espécie que se mostre à rua: acácias, coqueiros, tamarineiros, espinheiras, macieiras da India, imbondeiros, etc.

Resilientes, mesmo maltratadas, apresentando-se feridas com os troncos rasgados ou amputados, as nossas mulembas estão sempre dispostas a transformar hidrogênio em oxigênio puro e incontornável à respiração humana. Mesmo sendo insistentemente regadas a mijo humano e adubadas com dejectos, lá estão elas, enfeitando calçadas, ladeando as ruas e avenidas da nossa capital, lançando ainda o seu perfume que só a barbaridade de quem se esperava pensante elimina com o fedor de suas descargas biológicas.

As nossas mulembas de Luanda são símbolos de resistência contra o mal, sem falecer. Continuam hirtas, desempenhando seu papel social e vital.

Plantemos mulembas e demais árvores nas nossas ruas, largos e quintais, a fim de ganharmos oxigénio reciclado e uma vida mais verde e alegre. Reguemos as árvores apenas com água natural e adubemo-las com fertilizantes naturais e químicos recomendados por especialistas. Respeitemos os locais de culto secular e de memória colectiva, como a Mulemba Waxa Ngola e outros locais como salvaguarda da nossa herança histórica e cultural. E gritemos todos: vivam as nossas mulembas!

Texto publicado a 15 de Agosto de 2015 pelo Semanário Angolense.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

FIQUEI-ME 'MBORA PELO LONGA


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Uma vez em passeio ao Cuando Cubango (enquanto não surge o novo registo, grafo como está oficializado), tomei o desafio de ir ao Cuito Cuanavale, local onde o meu primo, Sabalo Kambota Canhanga, ajudou, entre 1986-7 a travar os invasores sul-africanos. A estrada está convidativa para quem gosta de fazer a combinação: acelerador, travão e muita precaução.

- Minha senhora, pode dizer-me quantos quilómetros tenho de percorrer até chegar ao Cuito Cuanavale? – Indaguei à agende policial que se encontrava no rotunda do aeroporto de Menongue.

Ferrada em altura mas beneficiada em edução, Ana respondeu-me sorridente. Aliás, começou por questionar se eu “era visitante”.

- São mais de duzentos quilómetros, mas vai passar antes pelo Longa, onde há fazenda de arroz.- Explicou Ana (não retive o sobrenome).

Vai com prudência, por causa dos animais, e se vai fazer turismo, divirta-se à vontade que o país já está seguro. – Recomendou-me a agente reguladora de trânsito. Ela preparando-se para interpelar uma viatura e eu inspecionando a pressão dos pneumáticos.

Marcha adentro, cheguei à comuna do Longa que fica à meia distância entre Menongue e Cuito Cuanavale. É uma pequena vila cortada pela estrada nacional 280.

- Aqui travaram-se encarniçados combates pela defesa da pátria ameaçada. Aqui tombaram camaradas de várias procedências do nosso país. – Contou João Mbambi, professor primário da circunscrição. Mas longa não é apenas baluarte da luta para a preservação da independência do país. Contam-se também, na sub-zona da Terceira Região Político-Militar do Glorioso, que engloba a comuna do Longa, estórias sobre resistência contra a colonização, estórias sobre a resistência heroica contra os invasores sul-africanos quando os homens de Roelof Pik e Pieter Botha pretendiam fazer em Angola um "passeio turístico-militar” em socorro de amigos angolanos que a história se encarregou de catalogar. Hoje a luta que se trava no Longa e zona contígua é reerguer o que se destruiu durantes as várias guerras (contra ocupação colonial, contra a invasão sul-africana, contra a insurreição interna) e construir coisas novas: novas escolas, novas habitações, novos centros e postos médicos. É produzir arroz, milho, leguminosas e tubérculos e aumentar o nível académico-cultural dos seus habitantes.

Longa, com os seus perto de cinco mil almas é uma comuna que perdoa o passado lúgubre mas que jamais se esquecerá do passado para que não se repitam as atrocidades que apagaram vidas e transformaram em escombros casas, lojas, hospitais e outros haveres.

A carcaça de um helicóptero militar danificado na cabeceira da sua pequena pista de terra batida e alguns edifícios coloniais convertidos em pedaços pela aviação e artilharia "inimiga" são registos históricos que devem passar para as próximas gerações, como forma de testemunho material.
Os meninos do Longa contam hoje a história sobre a sua região, lida nos poucos livros existentes, e jogam à bola num pedaço lateral do "campo de aviação". A língua que mais se fala é Ngangela, sendo a portuguesa a segunda língua, obrigatória apenas na escola que foi, felizmente, poupada e reconstruida.

"Outra maior, de 12 salas, construída de raiz, aguarda(va) pela inauguração, devendo elevar o nível de ensino e o número de alunos escolarizados", contou João Mbambi, professor que ganhou um "Relógio do velho Trinta" (romance do autor dessa prosa).


Os petizes, uns vestindo calções e camisolas amarelos e outros de tronco à mostra, imitavam, emotivos e sonhadores, os craques do Girabola. 
- Quero ser como Job ou Ary Papel. - Disse um deles, quando convidados para a foto-testemunho.

- O nosso campo é no lado de lá da estrada, onde os colonos jogavam. Contou Moisés, ganhando no fim um outro “Relógio do velho Trinta”.


O árbitro vestia uma jeans, uma tshirt e calçava chuteiras, ao passos que os pequenos "artistas da bola" poucos mostraram ter o privilégio de jogar com os pés calçados. Alegres, sem temor, nem represálias. Hora pós-escolar, 5h30 da tarde, girava alegremente a bola no Longa, enquanto me aprumava para a viagem de regresso a Menongue. Cerca de 90 km por cronometrar.
Moisés Sacinene, 14 anos, frequenta a sétima classe. Foi meu companheiro de conversas, e fotógrafo de ocasião. Não se fez ao campo por considerar aquele "um jogo de crianças". O seu campeonato é outro. Naquele pedaço de terreno plano roubado ao aeródromo militar, ou assiste apenas os putos a se “trumunarem” ou é convidado a ajuizar os jogos dos kandenges.


Quem vai de Menongue ao Cuito Cuanavale, tem, no lado direito do Longa: a pista, parte da aldeia e o quartel. Do outro lado da Estrada Nacional 280 ficam os edifícios administrativos e equipamentos sociais como o mercado, as escolas, o posto médico. Por mais incrível que pareça, Longa possui um campo relvado a reclamar por novas balizas. 
- Esse campo foi sempre assim desde que nasci". - Contou o professor Mbambi, quarenta anos, mais ou menos.

- O campo é mesmo do governo. É ele que manda cortar a relva quando fica muito alta. Elucidou.
No Longa, podem ainda ser vistos, no lado norte, a antiga quadra de jogos de salão e sobras da guerra como tanques blindados e "mwana kaxitos" (lança rokets) já recortados em pedaços e aguardando pelo transporte à siderurgia onde os "laças e canhões que serviram a guerra serão transformados em enxadas e arado" para lutar contra a fome e pobreza.
Mas abaixo, junto ao rio que dá o nome à comuna e à fazenda que é exemplo nacional em termos de produção de arroz, surge um vasto prado que se espalha em milhares de quilómetros quadrados de área, ladeando longitudinalmente as margens do Longa, cujas águas não só me convidaram para matar a sede mas também para lavar a Maria Canhanga que me transporta nessa odisseia.
- Tio, não toma banho ali. Visita tem de ser acompanhado. - Alertou-me um dos rapazes que desafiavam a lei de Pascal sobre a submersão, ao que obedeci. 
Na verdade, embora o Longa me tivesse convidado, a intenção era apenas de lavar o rosto e saciar do caudal corrente e límpido a sede que caminhava comigo desde Menongue.

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Enfim, conheci a comuna do Longa, fruto da paz que o povo tanto pedia. E não fui cumprir a "vida Kwemba" como o meu finado primo Sabalo, nem em serviço forçado numa cadeia pidesca do caputo ou “disesca” da ressaca revolucionária. Estive apenas a desfrutar Angola e os benefícios da força da razão que sempre lutou mais forte do que a razão da força que fez de todos nós meros objectos.

Que saibamos todos dizer "tri-ti-ti nunca mais" porque agora que a paz já chegou "fui embora no Longa". E a visita ao Cuito Cuanavale, perto de 100 km a leste de Longa, fica na agenda a cumprir nas próximas férias.

 



 



 NB. publicada pelo Semanário Angolense a 23 de Maio de 2015