segunda-feira, 21 de setembro de 2015

DOEI MEU CÉREBRO À ARTE

ASSIM PENSEI
"Tudo o que se pareça à arte, mas domesticado pela ideologia
reinante ou emergente, não é arte.
Mesmo sabendo que a rua e a indigência são os lugares mais à
vista de muitos artistas, decidi doar o meu cérebro ao serviço da arte literária".
(Soberano Canhanga)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

À CONVERSA COM A MARIA


Decididamente. Lugar de idoso não é no Beiral. No campo fica melhor. Numa fazenda, quinta ou lavra, cuidando de plantas, gansos, patos, galinhas, etc.; transformando alevinos em gostosos "ikusu" ou dando a aprazível companhia de bovídeos, caprinos e ovinos aos pastos que abundam nas anharas planálticas; fazendo os ngulu grunhir e os cavalos relincharem ao toque do pastor-ganadeiro.

Provei e comprovei. Cada volta que se dá no canteiro de ananaseiros, laranjeiras, pereiras ou laranjeiras; cada cacho de banana que carrega, cada abacate que se colhe é mais um mês de vida para um idoso.

Longe dessa vitalidade estão aqueles que, depois de aposentados do serviço decidiram-se em "matar kasumuna" na cidade, deixando os pés ociosos acumularem reumatismos e outras doenças derivadas do nada fazer.

- Acordar, comer e dormir é doença. Confidenciou-me um idoso na casa dos oitenta, mas respirando ainda vida abundante que retira na kizaca, galinha da capoeira e fruta que transita da árvore á boca.

Decididamente, um jovem, ainda que urbano, devia pensar em plantar uma árvore para que de sua sombra desfrute a vida senil.

Provei e comprovei isso em Yeyele, um campo agrícola de Sabino Salongue e Argentina Ernesto, casados há 47 anos, ambos enfermeiros aposentados, vivendo no Cuito, mas dando emprego a mais de dez famílias em Yeyele onde fazem os seus vitais "matutinos" agrícolas.

Simpáticos, alegres, sempre bem-educados, os trabalhadores da fazenda recebem com canções e danças os seus visitantes.

- Vakombe, kalé, vakale veya! (os visitantes chegaram!)

- Coros afinados, harmoniosos, desafiando muitos que se fazem ao microfone para tostões, cantam incansavelmente, fazendo o visitante sentir-se um Soma.

Antes da partida, o visitante que ganhou um boi, na hora transformado em vaca, anuncia, não em umbundu que todos cantam, mas em ucokwe:

- Nguna sakwila cinji. Ciseke cinji ngunevu (Estou muito agradecido. É imensa a alegria que sinto). - Soltam-se palmas e assobios. 

Uma senhora que fala ngangela, língua aparentada ao ucokwe traduz para umbundo. Soltam-se novas e estridentes rajadas de palmas e assobios. Ouvem-se novos cânticos, profanos, políticos e religiosos. Faz-se festa.

O visitante vê-se banhado em lágrimas de contente. Recepção única, inédita. Idêntica nunca teve. Emocionado, alegre, anuncia à jovem que trabalha em casa dos sogros-patrões:

- Tens aqui dinheiro para ti, para as tuas gasosas, e outros angolares para a família da fazenda. No fim da jornada, faz a distribuição: Gasosa para aqueles que álcool só usam na ferida, vinho e aguardente para quem tem as entranhas ensanguentadas.

A ngoma junta-se à roda dos dançantes.

- Etali ombebwa yeya. Kapuli vali uyaki (hoje vivemos tempos de paz, não há mais guerra que nos impeça de festejar). – Atirou o gerente que também rege a festa.

Tocou o apito. É hora de partida. O relógio aponta seis e meia da tarde. A circunferência celeste apresenta-se azulada e com a lua à mostra. O terreiro sempre povoado. Nunca esteve vazio desde que Maria, que ia a frente de branquinha, cruzou aquele espaço. Assim foi durante a tarde toda, desde o meio-dia. Cantavam e dançavam com pequenos intervalos para amamentar os filhos ou colher alguma erva para a janta. A carne já estava garantida. Era bovina e fresquinha. Os homens suavam com as mãos ensaguentadas e estômagos cheios de esperança, adivinhando-se boas e longas garfadas. As línguas ensaiavam as pupilas gustativas para o repasto da noite. Até a cadela da fazenda parecia felicíssima.

Albertina, a moça que vive na cidade com os patrões, distribuiu walende. Conhece os acampados nominalmente. Uns já enfrascados e outros ainda com o "produto" na mão, de novo toca a ngoma e soltam-se as vozes, cada vez mais afinadas.

- Álcool é remédio contra o frio, isolamento e até sofrimento (?) – Perguntei a mim mesmo, sem que alguém me fornecesse a fórmula. Mas eles não sofrem. Eles trabalham e ganham. E são felizes no seu mundo.

As carrinhas, Maria e Branquinha, prenhes de carne bovina, bananas, ananases, laranjas, milho e outras oferendas partem carregadas a gemer. Desta vez, Maria atrás e branquinha na dianteira.

- Xalipo ciwa. Cantou-se efusivamente em gesto de despedida. Fez-se carnaval.

 

Posto na cidade que Silva, o do Porto, fundou, acariciei a Maria, cansada e alegre.

Ela sempre linda, simpática e demasiadamente sedutora para a minha sede de aventuras. Cheia de força e vigor em demasia precisava de um macho como eu que a levasse ao orgasmo na quinta velocidade. Fazendo amor na estrada e na mata.
Girei sua cintura, apertando-lhe os seios-buzina, falando-lhe ao ouvido até fechar os olhos ou abri-los de contente.

- Vamos ao Kunje, ver a estação do caminho-de-ferro de Benguela, Maria. - Pedi.

- Chega. Estou cansada. Aceitei o convite de boa vontade para te ajudar e te acompanhar aonde quiseres ir, mas chega. Não quero que me voltes a trepar. - Reclamou contorcendo-se de dores lombares.
- Mas, Maria, o acordo foi me levares. Pretendo chegar ao Kunje e ver a estação do CFB e a estrada do Cunhinga. - Tentei buscar a sua compreensão.
Maria, a vermelha, meneou a cabeça e lá se pós aos muxoxos, mas andando devagar e cada vez com mais vagar.
- Essa vida assim não dá. Uma gaja te leva a bons caminhos. É meu dever. Agora me metes nessas crateras e lamaçal? Vou levar-te, mas ficas já avisado: quando terminar o percurso quero água, pano, escova e sabão.
- Bravo, bravo. Granda Maria! Fiz-lhe umas carícias no círculo condutor, engatei a primeira, equilibrei o acelerador e a embraiagem e lá foi ela. Alegre, novamente, apesar dos solavancos. Chegamos à comuna do Cunje, onde os comboios do caminho-de-ferro de Benguela tangenciam o Cuito, a caminho do Luau.
Com carinho, pedi-lhe ainda que roubasse uns quilómetros à picada do Cunhinga, mas lá estavam os assassinos a mandar-nos saltitar, ao que preferi desistir, antes que a Maria voltasse a reclamar. Invertemos a marcha, contornando cada buraco ou passando por eles, secos ou enlameados, até à cidade fundada por Silva, o do Porto.
- Queres saber duma coisa, Soberano? - Interrogou ela para continuar: gostei da estação ferroviária mas aquelas casas que se situam na margem esquerda já deviam ter o rosto lavado. Será que os maquinistas e pessoal de apoio não precisam delas?

Apenas aprovei com o balancear da cabeça mas ela prosseguiu irónica.
- Aquelas luzes altas, que não sei se acendem ou não, também estão muito giras, mas o estado da rodovia é que não se recomenda mesmo a ninguém. Por acaso, amanhã me podes levar ao administra a dor para saber por que ele gosta tanto de ver os carros partidos?
Engoli mais uma das tiradas de Maria, a minha carrinha, sem que houvesse uma resposta pronta na ponta da língua.

Meia-noite menos um quarto, fomos descansar, porque no dia seguinte a Maria teria de me levar num percurso de 700 quilómetros, entre asfalto e buracos.


Nota: publicado pelo Semanário Angolense a 04 de Abril de 2015.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

JULGAMENTO DE MAKOJI


- Mana me dá só água, por favor. - O moço suava por todos os poros.
- Estás a “coloriar” assim porquê? Não tem água.
- Mana, me dá só água, você “és” minha professora no Mwa Cisenge. – Replicou o jovem pedinte, tentando buscar compaixão.
- Mas estás assim com tantos galos (hematomas) na cabeça porquê? - Voltou a questionar a dona de casa, por sinal, ex-professora do jovem.
- Estamos aqui, no soba, num “makoji” que estão a negar “na” família do indivíduo que lhe apanhamos. Já se experimentamos lá um bocado (lutamos um pouco).

A irmã da professora ainda tentou acudir o diálogo entre o homem acossado pelo fogo da peleja e a ex-professora que não queria ver sua casa inundada de gente atrás do líquido que mata a sede.

- Mana, “lhe dá” só uma caneca. Isso é pecado. – Acudiu, dirigindo-se para a cozinha.
Assisti a luta que decorreu a metros da casa onde me encontrava a petiscar funje com kizaka e kabwenha que para os tucokwe é xima nyi ixi, nyi matamba.

As meninas presentes na festa de aniversário duma lactente tanto dançavam ao “do cotovelo” como se esmeravam na cyanda que é ritmo e dança local, aprimorando os toques e contornos eróticos daquela balada. As que melhor executavam a dança eram agraciadas com elogios da assistência ou mesmo alguma pecúnia. A maralha toda vibrava ao som da música “Moyo” de Xavitu mwana Kakolu.
Perante o sofrimento e as súplicas do jovem, ferido por fora e queimado por dentro, que precisava de enviar algumas gotas de água boca adentro, decidi dar-lhe a minha garrafa que fica de reserva que estava no carro. A água devia ter a temperatura ambiental, a rondar os 33 graus célsius, mas ele tragou-a num piscar de olho.

- Obrigado, meu mano, ngunasakwila cinji. - Replicou na língua que me pareceu dominar melhor. Articulava os fonemas e as construções frásicas como um bagre nadando em águas tropicais turbinadas pela chuva.
O bairro é Terra Nova. O município Saurimo. A numeração indicava: AMS-TN-ZA-14… O falar alto de gente exaltada despertava quem por lá passasse. Eram vozes e músculos a gritarem altos. Enquanto na rua a razão da força imperava entre os partidários do acusado de colheita em ceara alheia e dos acusadores, ao que se dizia, sem provas materiais, lá dentro, na cyota do soba, era a força da razão, fundamentada com adágios seculares da terra, quem mais vociferava.

Apesar de bairro periférico da capital lunda-sulina, muitos habitantes preferem ainda recorrer à autoridade tradicional e ao direito consuetudinário para dirimir as suas querelas. A polícia e os órgãos vocacionados à administração da justiça andam a leste do que se passa no interior do(s) bairro(s), ou melhor, ninguém se lembra deles quando o assunto não atinge proporções irresolúveis no foro tradicional.
Primeiro os músculos, depois o soba e a fixação de indemnizações aos ofendidos. É assim no interior dos bairros e das aldeias nordestinas. Episódios sobre makoji (adultério), ofensas e danos morais e ou materiais, acusações de práticas feiticistas, etc., fazem parte do menu das queixas que chegam ao soba.

Às vezes, os músculos tentam resolver (sem o sucesso esperado) parte do problema ou medir a pulsação familiar. “Assim já, se você lhe dá uma boa surra, pode dizer no soba para ficar já assim”, contou-me o amigo que suplicava por uma gota de água que nem “Lázaro e o Rico”. É que quem não frequenta aqueles lugares, acha que todos têm razão. Vociferam, ensaiam poses para peleja. Mangas normalmente arregaçadas e calças com os joelhos enlameados por causa das “basulas”.
Lá dentro, porém, há ordem. A autoridade e o juízo do soba são incontestáveis. Todos concordam com a eficácia da justiça e justeza da lei e observam silêncio, entrecortado apenas pelo desfilar de adágios não muito acessíveis ao entendimento dum jornalista "mukwakwiza". O soba dita a sentença e todos batem palmas, os da parte do queixoso e os da parte do queixado. Os que estão fora deixam de mandar vozes ao vento e ficam expectantes. Espreitam pela porta de gradeamento mas nada vislumbram. Não tarda, queixado e queixoso saem abraçados, como se de amigos de longa data se tratassem. O soba recomendou paz e cumprimento da sentença para que o mal não se reproduza entre a família.
- Ides em paz e não voltem a lutar! – Terá ordenado a autoridade tradicional.

Quanto a mim, que precisava de matar toda minha a curiosidade e ouvir as partes, recebi apenas um consolo do meu primeiro interlocutor:
- Mano, obrigado pela água, mas o soba disse que você não pode entrar para falar com ele. Tinha que ser família das pessoas que se deram “mulambeno”!

O queixado promete cumprir a indemnização para o makoji que entretanto jura não ter cometido. Mas cumpre. Makoji não é só quando se chaga a vias de facto. Ter a intenção de passar o outro pelas costelas dá, em termos de interpretação do direito consuetudinário, no mesmo que adultério.

- É “catoqueiro”? Um milhão de kwanzas! - Dizem que para esses o valor baixou, dado que trabalhar numa empresa de “kamanga” já não rende tanto quando rendia há dez anos.
- É bancário? Um milhão e meio. - Ninguém explica porquê, mas cogita-se que seja pela facilidade com que alguns se fazem aos empréstimos ou juntam os cêntimos alheios.

Mas o “lavrador” era camponês e ficou-se pelo cabrito, galinhas e kibutos de bombô. A garina permaneceu com o esposo que viu sua “honra lavada”?!


Nota: Texto publicado no Semanário Angolense, edição de 07.03.2015.