quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O COMISSÁRIO “PAPA-GALINHAS


Nasceu num sábado distante na memória, numa aldeia enfiada na sombra da cordilheira que separa a região plana e majestosamente servida de florestas entrecortadas por rios serpenteantes e a outra, a plana e alta, prenhe de fontes d’água e onde a relva faz festa entre árvores e arbustos preguiçosos. O dia de semana serviu-lhe de nome de baptismo. Como havia tantos outros Sabalo, acrescentaram-lhe o apelido Soba, dado o facto de ser filho de soba e passou a ser conhecido por Sabalo-a-Soba (Sabalo, o filho do soba).

Kambondondo, seu pai, era numa aldeia ribeirinha, ali nas encostas do Longa, uma das cinco pessoas mais influentes, de onde despontavam, para além do regedor e soba, o soba o catequista, o comerciante e o “sô kifiormeiro”. Professor ainda não havia e os que podiam soletrar uma convocatória do chefe de posto do poder colonial contavam-se entre dezenas de aldeias aos dedos de uma das mãos.

 Kambondondo já tinha contactado o catequista para alfabetiza-lo a fim de poder descodificar as convocatórias do Soba e apresentar-se ao posto da data e hora certas ou mesmo se escapulir quando a convocatória fosse simplesmente para as desprezíveis palmatoadas desferidas impiedosamente pelos serventes cipaios.

- Nessa terra de ignorantes tenho de fazer da minha prole a diferença. O Kakonda tem de ir estudar no Posto e ficar professor. O Ngunza tem de seguir profissão de “karfaiate” e o Sabalo, quando idade chegar, vai também no posto aprender com os irmãos que estão a subir na escola. – Confidenciou kambondondo certa vez à mulher Nzumba Kanzenza.

E assim procedeu. Kakonda segui primeiro, já na casa dos treze anos. O irmão do pai que oferecia força na roça do alemão de origem judia recebeu-o como filho e com ele ficou até completar a quarta classe e o curso de professor de posto. Kakonda voltaria à aldeia natal apenas para se casar e fundar a primeira escola de Kuteka.

Seguiu-se Ngunza. Esse foi para a grande cidade aprender a juntar e descodificar letras e alfaiataria que se tornara profissão de eleição no tempo das camisas cintadas e calças boca-de-sino.

Mais dado ao segundo oficio do que ao primeiro, Ngunza se governou até aos dias da tropa obrigatória instituídos no pós-revolução. Regressou à aldeia de mãos preenchidas pela mulher, uma jovem ambaquistas que transbordava beleza, e dois filhos. Ainda foi a tempo de fechar umas classes e cumprir o sonho do pai “ser professor” também.

Chegou a vez de Sabalo. A idade escolar coincidiu com os dias da revolução. O horizonte começava a abrir-se. Kuteka começou a encolher, ante a migração para as grandes cidades que ofereciam empregos e aprendizagem de profissões. Estava na moda “ir à capital trabalhar para juntar a cama, a bicicleta, a louça, o rádio e a roupa para os dias de noivado”. Os primeiros regressados da capital eram donos de estórias e histórias inauditas e carregadas de curiosidades. Todos os jovens daquele tempo pretendiam conhecer a capital e lá se “empregarem” em casa de gente da baixa onde pudesse aprender a ler e escrever com os pioneiros de casa e amealhar uns tostões para a roupa, o rádio, os talheres, e o vestuário que diferencia na bwala o morador permanente e o regressado da cidade. Sabalo ainda sem idade para trabalho, foi substituir o irmão Kakonda na casa do tio Kapitia e lá ficou até completar a quarta classe. Era já tempo da “ditadura do proletariado” e o diabólico chefe de posto tinha sido substituído pelo comissário comunal. Os serventes cipaios, agora em desgraça e alguns a pagar pelos males que infringiram a seus irmãos de pele, enfrentavam discriminação ou se refugiavam em áreas longínquas onde o eco de suas acções tenebrosas no tempo doutra senhora não tinha chegado. Os ce-pe-pe-as eram agora os auxiliares do comissário na manutenção da ordem e caça aos contra-revolucionários. Os o-de-pés e be-pe-vês, diferentes dos cipaios, fiscalizavam nas aldeias e informavam aos ce-pe-pe-as quando não fossem os próprios a cuidar da manutenção da nova ordem instituída.

Sabalo foi crescendo em paralelo com o poder do comissário que não era como o chefe de posto que mandava capturar à força da caçadeira trabalhadores para a construção das rodovias, mas era em quem repousava a autoridade do Estado. O comissário era um mwata. Pessoa de muito respeito, na comunidade e que tinha acima dele outros dois comissários, antes do Ministro: o comissário municipal e o comissário provincial.

- Sabalo, agora que o kaputo já foi na sua terra, estuda para chegar também na categoria de comissário. Fica na organização e se entrega no estudo para ajudar os teus irmãos da aldeia. - Orientou Kambondondo já na curva da vida.

Sabalo completou a quarta na comuna. Foi ao município e fez a oitava. Os confrontos que se seguiram aos desentendimentos do Alvor fizeram-no seguir à capital. Antes passou pelo “brigadismo professoral” e foi destacado na Comandante Dangereux. Seguiu à capital onde para esquivar a “vida kwemba” se alistou nas ce-pe-pe-as que o enviaram para fora. Quando os ventos do Lesta derrubaram os muros foi devolvido à terra e cá à profissão o estudo. Foi subindo. De grau a degrau como a galinha enche o papo grão a grão até chegar a subcomissário.

Passava uma trintena de anos que o Kuteka não se lembrava dele. Sabia-se ainda apenas que era homem grande em idade, corpulência e estudos.

- Eh, o mano Sabalo agora é homem grande. Pessoas que se vergam quando lhe cumprimentam são chefes do governo na capital. - Comentavam os mais iluminados de Kuteka.

A sua fama já corria toda a savana e o planalto. Os mais novos queriam conhecê-lo e os mais velhos revê-lo. Sua ida à terra do cordão umbilical tardava. Todas as cartas que recebia apontavam a saudade do seu povo: contemporâneos e conterrâneos que se tinham preparado para recebê-lo como os súbditos da idade clássica recebiam seus imperadores, mas a visita de Sabalo tardava. Falhava por falta de tempo. Ora por missões de serviço que se sobrepunham às suas promessas, ora por razões climatéricas. A picada que corta aquela serra montanhosa só permite circulação até de um jeep em tempo seco.

Correram ansiedades e promessas durante cinco anos, até que mãe de Sabalo adoeceu. A questão era emergencial. Levar a mãe para um hospital de referência era uma obrigação. Já tinha construído na capital uma casa para a progenitora, mas ela se recusara redondamente a deixar o seu kikelé, apetecível peixe do Longa, e suas gentes que a tinham como matriarca da aldeia.

Sabalo fez-se à estrada. Onde terminou o asfalto, fez-se à picada. Para trás deixou a comodidade da cidade, os rios caudalosos em tempo chuvoso, as montanhas cobertas de neve madrugadora, os zigue-zagues da estrada escorregadia e chegou ao Kuteka. Fez-se festa em casa, mesmo com a mae enferma. A alegria do povo era tanta enão se pôde proibir a festa espontânea que assinalava o reencontro com o “homem grande” nascido na aldeia de Kuteka.

- Mano Sabalo, desculpa, kota Naldo, assim agora o mano lá no serviço é quê? – Indagou Kaphele, jovem iluminado para os limites académicos da aldeia.

- Sou Comissário. - Respondeu.

- Comissário? Só comissário, tipo o chefe “papa-galinhas”?

- Sim, sou comissário da polícia nacional. Mas explica-me ainda isso de “chefe papa-galinhas”.- Solicitou o polícia.

Sentiu-se um calar que levava quase desolação dos jovens. Sabalo não percebeu e insistiu na pergunta: “vai jovem, explica-me por favor, também quero aprender convosco”. Toda a volúpia inicial ase tinha evaporado. “Come galinhas ou papa-galinhas” era o epíteto atribuído ao comissário comunal, cuja regalia não passava de oferta de cabritos e galinhas quando visitasse as aldeias. A frase “Sou comissário” levou-os a se lembrarem das visitas do carente comissário comunal que mais não tinha senão galinhas no seu quintal.

 - Sim Kaphele, sou comissário da polícia nacional. Um grau que se equipara ao general de duas estrelas e café no ombro. – Voltou a explicou o para-militar, desta vez mais elucidativo.

- Ah, assim é que está bem. Afinal, o nosso mano não é “papa- galinhas”, é general da cê-pê-pê-â. Manda em todo o país e está acima dos dois comissários da comuna e do município. - Rematou convencido Kaphele que, de imediato, ordenou mais lenha na fogueira e força nos batuques.
E a festa prosseguiu noite adentro.

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense, 31.01.2015.  

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A CAPITAL ESCOLHIDA POR NGANA NGUXI

Nunca entendi por que razão Agostinho Neto escolhera Lucapa como então "futura" capital da novel província criada em 1978 e por que a nova centralidade foi erguida no Dundo, mais distante de Luanda, do que Lucapa. Nem cheguei a descobri-lo nessa primeira entrada na "penúltima cidade do nordeste". Apenas pude contemplar a exuberância da planura do espaço que "mano António" quis como capital da "Lunda wa kusangu". Um espaço que se estende de norte a sul e do leste a oeste afundando-se em ribeiros que tanto supririam a cidade de água potável, como conduziriam as descargas pluviais aos afluentes do Nzadi até chegarem ao grande "kalunga lwiji".

- Bom dia, mano. A viagem está a correr bem? - Interpelou o polícia de viação e trânsito ladeado por colegas da ordem pública e dos Serviços de Migração e Estrangeiros.

- Bom dia chefia. A viagem corre sem sobressaltos e o asfalto, tirando o troço do Luó, corresponde aos anseios do automobilista.  -Respondi-lhe com atenção, mas ele se dirige ao lado oposto e coloca as mesmas perguntas aos meus dois passageiros.

- O mano não abre a boca? Questionou o policia ao meu acompanhante que ocupava o assento traseiro.

Lembrei-me que era um teste para se certificar se éramos nacionais ou não, sem que fosse necessária a apresentação dos nossos bilhetes de identidade. Provoquei uns gracejos e os meus dois passageiros abriram as bocas, ensaiando um português sem sotaque afrancesado.

- Podem seguir. Boa viagem. -  Ordenou o polícia, três riscos em cada ombro, ao que obedeci.

Minutos depois atingiamos Lucapa. A presença de motorizadas em serviço de táxi e um prédio alto, ainda em construção, indicia, a existência de uma cidade lá adiante. Um cidadão, nos seus 30 anos faz da estrada seu pousio e enfrenta os mototaxiastas e automobilistas. Afouxei a marcha. Buzinei. Mas ele sempre no mesmo lugar. Nem pra frente nem pra trás. Contornei-o e imobilizei a viatura mais adiante para perguntar aos que faziam o seu “kadienge” junto à estrada se se tratava de um demente ou de alguém doente a precisar de ajuda.

- Mano, é das pessoas que ficam a procura de azar na estrada para dificultar a vida dos outros.- Respondeu-me a Dona Upite. Assim, mesmo, se o mano lhe batesse só um kabucado, as famílias dele viriam para receber-lhe o carro ou pedir multa para lhe tratar. O mano fez mbora bem de lhe esquivar. – Acrescentou a Senhora que, ao que soube, não é daquelas paragens, estando aí apenas em negócios e tendo, ela mesmo, enfrentado semelhantes provocações que resultaram em prejuízos para a sua conta.

Segui a marcha, sem saber onde começava e terminava a urbe. Era andar apenas para explorar o que podia ou não encontrar mais adiante.

Antes de atingir a urbe erguida pela finada Diamang, três sucatas de pássaros aéreos atraem a nossa atenção.

- É o aeroporto. Viste a aerogare? Se parece a uma garagem de fazenda abandonada embora! – Exclamou o terceiro passageiro que não quis ser citado na crónica. Na verdade, o que diferia uma fazenda abandonada, daquelas que abundavam o nosso país no tempo da guerra, era a avioneta que emprestava a sua brancura à pista de terra batida. Mais adiante, em direcção à urbe, um emaranhado de cabos entrelaçados perigosamente entre postes metálicos desviam o olhar do visitante.

- Como estás, jovem? Perguntou Nelembe, o meu acompanhante, a um cambiador de moeda e, ao que nos apercebemos, também comprador de brilhantes.

- Boa tarde môs kotas. É para cambiar ou brilhar? - Respondeu solícito.

- É apenas para saber se esses cabos são de telefones ou energia. Já houve um debate entre nós, no carro: um acha que, pela quantidade e entrelaçamento, só pode ser de telefones fixos que transportam uma quantidade ínfima de energia eléctrica. O meu colega, que está no banco da trás, entende que são mesmo de energia eléctrica. Podes nos dizer o que é essa “engenharia”? – Explicou-se o Engº Nelembe, procurando obter a confirmação.

- É energia da dona Teresa. Esses fios, o interlocutor apontava para o lado direito da via que tinha postes e linhas de transporte mais organizados, são da Ene mas ainda não dão luz. - Explicou o jovem. A dona Teresa, segundo ainda o interlocutor "é uma mboa visionaria. Uma empresária que sabendo das dificuldades energéticas da cidade montou um gerador potente e vende energia aos moradores. Para evitar que haja ligações "gatosas" todos os cabos partem directamente da central ao domicílio.

Engatei a mudança e prosseguimos. Apenas em viagem exploratória. Um andar sem rumo pois não conhecíamos a urbe. Queríamos apenas saber o que estava adiante. O "largo dos comícios" que dá vida a Avenida 11 de Novembro foi outro ponto de paragem para as fotos de lembrança. As cores da tribuna e do monumento, no meio do jardim, remetem-nos à bandeira nacional. As casas da vila, que devia já ter sido elevada à categoria de cidade, se caputo atrasasse o regresso à metrópole, têm jardins podados e muros baixos, reclamando apenas algum cimento para a correcção das fissuras e corrosões e alguma tinta para restituir a beleza roubada pelo tempo e pelos farfalhos do vento sem barreira às paredes septuagenárias.

As ruas da vila original são bem arrumadas e  já contam com "semaforização", relegando para planos secundários algumas cidades, capitais de províncias, que ainda sonham com um ordenamento virtual do tráfego automóvel. Quem também não se esqueceu de aplicar suas "impressões digitais" à vila de Lucapa é o grupo que constrói os hotéis cor-de-rosa. O prédio mais alto da região e que anuncia a existência de uma cidade naquela paisagem verdejante tem a cor de camarão.

De novo no controlo da polícia, as mesmas perguntas:

- Aonde vão agora?

- Vou levar os camaradas ao Dundo. São novos na região. – Respondi, desta vez acompanhado pelos meus passageiros.

- Gostaram de Lucapa? – Voltou a inquirir o agente.

Sim. Eu, particularmente, gostei. Mas voltarei, um dia, a Lucapa, com mais vagar, para explorar melhor a sede municipal que tem o maior número de agências bancárias e cambiadores de dólares e brilhantes. Procurarei com outros dados para encontrar os caminhos que me mostrem por que o primeiro Presidente de Angola a tinha eleito como o ponto de partida daquilo que viria a ser a capital da Lunda Norte. – Expliquei ao agente que começava a demonstrar maior empatia e engodo para a conversa.

- Sim, meu camarada, vejo que é um camarada. É uma pena que o sonho não tenha passado do sono! – Desabafou o polícia em tom malicioso.

Já a sair, lancei uma pergunta que já foi “palavra de ordem” nos tempos mais apertados da busca desenfreada por kamanga e por dinheiro “fácil” acompanhado de muitas atrocidades:

- Ainda se “amarra" com ou sem razão?!

- Isso já faz parte do passado, meu camarada!

Nota: texto publicado pelo Semanário Angolense na sua edição de 05 de Junho de 2015.