sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM CASAMENTO INOVADOR NA KAMUNDA

Conheceram-se no tempo da guerra fria, na República da Kamunda, quando Kapesi se dirigia ao serviço e Boana para a escola. Ao primeiro olhar, parecia visgo, os vulcões até então adormecidos derreteram montanhas, soltaram lavas e perfumes, aproximaram-se e como pessoas que se faziam ideia beijaram-se perdidamente.

- Não precisas de dizer-me agora para aonde vais. Levo-te a qualquer sítio, pois minh'alma diz que és tu o meu destino. - Atirou Kapesi, possuído de romantismo.

As palavras caiam-lhe como chuva de Abril e ela com o ouvido apurado, um planeta de receptividade e atractividade. E foram, caminho fora, falando cada um de si e do tilintar dos seus corações.

- Jovem, preciso de saber se cruzaste a minha vida para um propósito ou apenas para teres mais uma vítima? - Questionou Boana, certa vez, já amarrada às algemas românticas.

Como já disse, decorria a guerra fria daquele tempo que não era um conflito declarado entre as duas principais tribos da República da Kamunda, os vakwombwelo e os vakwonano, que até viviam em paz quase perpétua, interrompida apenas, de forma esparsa, em momentos de cruzamento matrimonial entre os vakwanano, povos do norte da Republica da Kamunda e os vakwombwelo, mais ao centro da Kamunda.

Em questões casamenteiras, os primeiros preferiam o cumprimento de suas tradições em detrimento dos procedimentos moderno-ocidentais ou, na melhor das hipóteses, combinavam a tradição bantu e as inovações alheias trazidas casa adentro pela luz da televisão. Os vakwambwelo habitavam um território plano e alto, irrigado pela natureza, onde abundava gado, cereais e batata do reino de sua Majestade D. Afonso Henriques. Eram também muito apegados à sua cultura e tradições, algo distinta no rigor da aplicação, dos seus vizinhos vakwonano. Os vakwombwelo eram povos muito viajados pelo antigo Reino da Kamunda, queridos por todos os empregadores, devido à sua entrega, elevado grau de comprometimento e alguma mansidão derivado do apego à sacra-palavra. Eram também muito escolarizados pelas missões evangélicas, fazendo-os intermédios entre o conservadorismo e o assimilacionismo a que a sua estrutura organizacional estava exposta. O conservadorismo de ambas tribos que faziam história na República fez com que o namoro de Kapesi e Boana fosse visto com algumas reticências de ambos os lados.

- Mas esse moço que até o irmão kasule já lhe coou com dois filhos, achas mesmo que será bom genro? - Perguntou certa vez o avô Menso Mankala, para acrescentar: Boana, continuadora da minha tribo, alguma vez já ouviste o acusarem de paternidade em algum lugar? Alguma vez já ouviste um zum-zum sobre amigamento dele ou coisa parecida? Desconfia, neta. Homem com estudo, casa própria e boa família, como me contas, não sobra como o jovem de que me falas. - Desconfiou prevencionista Menso Mankala a quem estava confiada a educação de Boana.

- Pai, menos dia menos noite, vou partir. A minha doença é irreversível. Cuida da sua neta até "lhe" entregar "no" marido, assim como cuidará das minhas irmãs. - As palavras de Franque ecoam ainda frescas e de forma insistente nos ouvidos de Menso Mankala, sempre que o assunto é namoro e constituição de lar por parte da neta.

- O que meu filho me pediu tem de se cumprir, custe o que custar. - Dizia para si mesmo, custando-lhe já o epiteto de "O Dificultador".

Do outro lado, as desconfianças e incertezas também faziam morada. Os vakwombwelo encaravam a questão "trabalho e sorriso" por parte de uma nora como primordiais.

- Mulher tem de rir. Tem de conversar. Nora que te mostra dentes é mais do que uma tristonha que te ofereça um banquete. - Costumava desabafar Kasova, a tia mais velha de Kapesi. E, era exactamente, esse sorriso escondido de Boana, embora não ausente, que fazia os da tribo vakwombwelo se posicionarem no NIM no dia em que o jovem reuniu a família para anunciar:

- Pais, mães, manos e manas, já passei a linha dos trinta. Já tive algumas experiências e tentativas de vos apresentar uma nora e cunhada. Acho que com a formação que consegui, casa própria no Kipedro e emprego que já  tenho, é chegada a hora de atar o nó.

Ao inaudito discurso de Kapesi seguiram-se assobios, mais dos sobrinhos e cunhados do que da velha guarda que esperava ver para comemorar.

Os "acorrentados e cercados pelas lavas do vulcão amoroso" tinham combinado abrir o jogo às famílias no mesmo dia.

Boana fez o mesmo com os avós. Menso Mankala não conteve a indignação e teve mesmo um pequeno deslize que só não desembocou em incidente diplomático-familiar porque o amor que juntava Kapesi e Boana não era amarrado com corda. Era mesmo com laço de aço.

Kasova, a tia de Kapesi, e os seus também se interrogaram vezes tantas sobre aquela escolha, exactamente na tribo que se dizia "mandavam a noiva calçar salto alto e juntavam quatro filas de grades até ao tecto da casa".

- É só mesmo já nessa tribo que pedem gerador e terreno com pedreiro chinês que encontraste mulher para casar? Por que não vais ainda lá na embala do avô Kacyopololo ver se sobrou lá uma kafeko da nossa tribo ou de tribo com costumes aparentados? - Questionou Kasova a matriarca da família Kapesi.

No dia A, ou seja, no dia da apresentação, desfilaram adágios de parte a parte.

- A nossa filha está preparada para ser boa esposa e tem de sair daqui só quando eu quiser e com pedido bantu, casamento na igreja e conservatória. - Atirou um dos tios de Boana.

- O Kapessi é um homem preparado e sabemos que cumprirá as suas obrigações para honrar a sua cultura, seus sogros e sua família. - Ripostou JoSa, cunhado mais velho que na ocasião representava o sogro.

O bairro Kipedro, onde viviam Boana e Kapesi, era uma espécie de bairro franco. Lá estavam uns poucos conservadores que se tinham rendido à vida na verticalidade e uns tantos jovens que tinham abdicado da vida quintaleira das aldeias tradicionais da Kamunda. Naquele dia da confirmação do namoro de Boana e Kapesi, Kipedro estava agitada, só faltou o quintal para juntar as famílias vakwonano e vakwombwelo que desfilavam, através de representantes legais dos dois lados, bíblias de adágios e citações.

- Vamos fazer o pedido com os requintes que quiserem mas o casamento só quando o sol mostrar os primeiros raios. - Atirou um dos primos de Kapesi que ignorava o tratamento diplomático em conversas matriciais.

- Raiar do sol? Se vosso filho tentar vai dar multa que vocês não imaginam. - Defendeu-se Menso Mancala.

Com sabedoria, a diplomacia se sobrepôs aos argumentos apenas orgulhosos e despidos de razão. A tarde terminou em festa que adivinhava outra maior no dia P, ou seja, dia do pedido.

Com uma lista recheada aos olhos dos vakwambwelo mas simplificada no dizer dos vakwanano, as partes marcaram a data para o encontro do pedido de noivado que juntaria outros rostos e outro desfilar de rosários.

- Confiamos nas vossas palavras e esperamos que a nossa tradição seja cumprida geometricamente. - Recomendou Menso Mancala à família de Kapesi, ao que JoSa respondeu apenas com um aceno de cabeça, carregando a lista que lhe pesava como pedra.

Chegados à casa, os vakwombwelo, entre a aceitação e a reclamação, começaram por esboçar o plano de resposta.

- Vamos cumprir, mas também queremos ver o sol a raiar antes de nos metermos à estrada. - Aconselhou Phande, outro dos cunhados de Kapesi, ao mesmo tempo que distribuía incumbências para aliviar o peso pecuniário que recaía sobre seu cunhado de eleição. "Eu responsabilizo-me por isso e o fulano por aquilo", continuou Phande, perante a aceitação da família centrista.

O tempo foi juiz e advogado. A lista de incumbências para o pedido tradicional estava fechada. Os fatos, as grades, os vinhos, bijuterias e outros adereços desconhecidos dos infantes desse tempo aguardavam apenas pelo dia P que coincidiria com o casamento civil. À data, o sol já raiava, mas escondido ainda. Era apenas um laranja solar no fundo do ventre. O debate, à distância, via recados levados e trazidos pelos noivos, passou a ser “casar-se-ia antes no civil e depois no tradicional” ou o inverso?

Pela primeira vez, os vakwombwelo ganharam o desafio que os levaria a esquivar possíveis multas pelo alvitre de "ter entrado pela janela".

- Quando chagarmos ao pedido, ela já será tua esposa e nenhum outro pedido de multa terá força ao pé da lei ordinária. Será essa a nossa posição e é consabido que, podíamos até ir de mãos a abanar, sempre nos receberiam e te consagrariam como genro. - O discurso de Phande teve a concordância de JoSa e demais familiares de Kapesi que se manteve obediente às instruções e pouco interventivo.

No dia P, Kapesi que vivia em Kipedro, nova cidade da capital da Kamunda, pegou na sua teó (trotinete rudimentar) e foi ao encontro dos padrinhos que se encontravam na conservatória do registo civil, onde aguardaria pela sua dama. Recebeu aplausos pela inovação e, por fim, Boana como sua prometida Eva. Fizeram juras e trocaram o primeiro beijo público e oficial.

- Juro ter-te na saúde, na doença e na dibinza por todos os dias da minha vida. - Prometeram.

Seguiu-se o preceito tradicional vakwonanwense já sem o peso simbólico doutros eventos. Aqui o ocidente se tinha antecipado, embora tudo quanto tivessem solicitado em carta estivesse literalmente satisfeito. Ao pedido tradicional, Kapesi foi ao lado da mulher, seguindo-se, num mar de alegria contagiante, a cerimónia religiosa de onde Kapesi sairia ao volante do Ferrari decorado ao engodo de Boana.

E cantava-se "kyese vo kakyese ko (alegria ou não)?

- Kyese! - Respondia-se com euforia. E fez-se nova festa!

As mesas estavam caprichosamente marcadas com nomes de aldeias e embalas vakwanano e Vakwombwelo para a alegria dos mais conservadores e petizes que aproveitaram saciar suas sedes com bebidas diversas e geografia de origem.

Fronteira, Kimbele, Damba, Negaji, Zenze, Sasa, Sanza, Kibokolu, Makela, entre outros topónimos nomeavam as mesas que acolheram a familia de Boana. Do outro lado, idosos e infantes viajaram no tempo e na geografia para relerem Kambweyo, Yeyele, Njimba Silili, Ndulu, Katrayo, Kantifla, Cingwali e outros.
E voltou a cantar-se, lado a lado, ensanju e kyese!
...

NSUSU ZAONSO MUBOTE

Na semana que se seguiu ao matrimonio os tios da nubente foram visita-la, a pedido do marido que tinha beneficiado os seus com um repasto-teste executado por Boana ainda com o casamento fresco. Tinham passado apenas 48 horas da cerimonia religiosa e copo d'água. A tradição dos vakwombwelo dita que a casada tem de fazer a sua primeira refeição para os sogros, sob supervisão atenta de uma ou duas tias do marido. Assim foi e no final a nota atribuída pelas tias-júri foi positiva ao que em vez de ser multada acabou prendada.

Kapesi fez o mesmo. Não foi à cozinha mas mandou a mulher à loja e ao mercados dos Zimbos comprar tudo quanto fosse típico e do agrado costumeiro dos sogra. Ele mesmo fez questão de apetrechar a garrafeira com as mais elogiadas adegas e destilados escoceses, não se esquecendo do malavu encomendado a um vini-extractor do Sasa. Em fogo brando, o grelhador abraçava caçadas que apimentavam conversas intercaladas entre o bom Português, apendido na escola e destilado apenas em convívios muito formais, o calão e a língua dominante entre os vakwonano de regiões rurais.
- Esse moço, estávamos só a "lhe" desconfiar pelo casamento tardio, mas parece que é boa pessoa. - Atirou Kindala, tio de Boana que representava Menso Mankala.

Choveram garfadas e estalaram copos. Jorrou uva até noite adentro, quando, a olhar para o volume abdominal de Boana, o tio confidenciou à sobrinha:
- O sobrinho é mesmo bom?
Boana viajou ao passado e lembrou-se de uma expressão ukongo que traduzia e simplificava seus sentimentos e sua análise sobre o marido que escolheu.

- Nsusu zaonso mubote (toda a galinha é boa)! - Respondeu, ganhando do tio a tradução semântica da expressão ora anunciada.
- É verdade, sobrinha. Galinha pode ser careca, sem penas, você "lhe" põe na mwamba, fica sempre bonita na boca da pessoa. Assim também  são as pessoas. Só que se beneficia ou se prejudica com essa pessoa "lhe" faz o justo juízo. Tem mbora razão sobrinha, me desculpa só. Meu neto já está a caminho, almoço com bebidas já nos deu, falta mais o quê? Não liga gente na cidade com mentalidade da selva. - Concluiu o tio já meio canecado.
- Boana deu-lhe o beijo do costume, sinal de que o tio estava já na penúltima ronda da garrafinha alcoólica, ao que reconheceu e acedeu, apelando aos convivas para o discurso de agradecimento e recomendações aos nubentes.
- Já vimos o sol raiar no crepúsculo de Boana. É sinal de que as terras são férteis e dentro em breve teremos herdeiros. Para nós, casamento é isso mesmo. Não se esqueçam de nomear os parentes. Se o fizerem lado a lado fica maia melhor. Na vida a dois não há só sorrisos. Há também tristezas. Há dias que alguém dorme cedo e finge ver bonecos com as crianças só para não se dar encontro com o outro, mas tudo termina no quarto, no leito.
Kindala discursava pedagogicamente e não procurava palavras. Parecia uma lição decorada há anos. E prosseguiu, virando-se ao sobrinho-genro:
- Sobrinho Kapesi, a mulher sempre comeu do não. Fica atento. Às vezes é a mão que lhe dói mas mostra a perna. Saiba ler na escuridão e nunca esqueças a cor da minha porta. Quero muitos netos e um chará. Isso passará por muito tempo de coabitação e equilíbrio. Cada um, à partir de hoje, começam já a conhecer o outro e buscar o meio termo. Tempo de namoro é de mentira. Até diabo vira anjo.
Kindala fez pausa no discurso que já levava tempo apesar de actual, cativante e seguido com muita atenção. Boana e Kapesi seguiam aprovando com a balançar das cabeças.
- Dizia, já para concluir, devem se conhecer de verdade. Vão entrar agora no teate de verdade sobre o marido ou a mulher que cada um escolheu. Também passamos por esses bocados e resistimos. Só uma chamada de atenção à sobrinha Boana: marido não se bate na cara. Bate-se na cama.
Dito isso, e sem deixar margem para comentários à sua expressão final, Kindala marcou o primeiro passo em direcção ao corredor. A garrafa de vinho de 14 anos para combater a pelengwenha do dia seguinte, encontrar-lhe-ia no carro.
Cá em cima, ainda no vigésimo sexto andar de un dos edifícios mais altos da nova cidade de Kipedro, os primos e cunhados fechavam conversas com o habitual e já  quase tradicional "copo da porta".
- A casa está sempre aberta. Venham ver-me e chamem-me para as vossas picadas. Na minha terra é assim: quem casa transita para o convívio e cuidados da outra família. A boana já está entregue, não é isso mor? - Concluiu Kapesi,  abraçando os cunhados Nzuzi, Nasimba e a esposa Boana que não podia estar mais contente do que estava.
Os convivas, de forma espontânea, mas coordenada entornaram goela adentro o "líquido da porta" e comemoraram:
- É isso mesmo nosso 'nhado. Amanhã vamos te arrastar à praça do Sasa para tomar malavu com carne de paca.
E desceram também carregando a encomenda do tio Kindala que se deliciava no carro com a mais nova batida de Socorro, filho querido ukwanano.

Nota> texto publicado no Semanário Angolense de 05.09.2015

terça-feira, 10 de novembro de 2015

AI WÉ?! ME TRAMANKARAM MÔS DODÓS…


Embora não se saiba quando, precisamente, aconteceu essa estória do tramankanso dos dodós, o “fala que fala” apimentado à moda angolense já leva tempo. Ano e meio, mais ou menos.
A cena deu-se entre dois homens e duas senhoras que desenvolveram uma amizade quase parental. Os homens tratam-se por pai e filho, mesmo vivendo, o mais velho, kota Agê, na Tuga e o mais novo, ndenge Dimuka, originário e residente nas terras de Ngola, junto ao maior ribeiro que empresta o nome ao papel moeda. As senhoras, uma, a Kaxinda, diz-se filha de Dimuka, embora se tenham conhecido virtualmente e nunca se tenham avistado "caralmente" como diz o pretenso mas assumido pai. A outra, Dina, também conhecida como “tia dos dodós”, é tuguesa que faz vai e vem, levando umas imbambas trocadas entre o também tuguês Agê, o filho Dimuka e a neta Kaxinda.
Certo dia, Dimuka precisou de livros e pediu-os ao pai que os custeou e os enviou por correio da Tuga às terras de Ngola. Embora sobrevivendo da reforma, Agê, na sua mania da geração dos valores e desprimor às moedas, acabaria por relutar em passar a factura ao filho.
- Olha filho, já tens os dois volumes no correio. Pena é que o custo da transportação é tão alto quanto o da aquisição, mas vais gostar. _ Agê  recomendou a atenção de Dimuka ao post box nos dias subsequentes.
- E quanto te devo, ó pai? É preciso que as contas batam certo para que me possas voltar a ajudar, apelou o filho mesmo sabendo que só muito dificilmente receberia a factura com todos os cêntimos.
- Ó filho, não te preocupes com o dinheiro. Já tive algum e fugiu todo. Os meus amigos e os filhos, biológicos e afectivos, é que me dão a graça de viver, mesmo sem as coroas doutro tempo. _ Escapou Agê.
Dimuka, sabendo do custo dos dois livros, multiplicou-o por dois e cuidou de arranjar os dodós equivalentes na moeda tuguesa. E quase conseguia fazer a operação de envio digital se não fosse o aperto que os banqueiros afinaram às remessas para fora. A crise do ouro negro tinha transformado os dodós em moeda rara quer nas terras de Ngola quer nas de Camões e arredores. Dimuka teve de procurar por Dina dos dodós, que estava de malas aviadas para a antiga metrópole, a fim de levar as apetecíveis verdinhas embrulhadas num lencito de seda perfumado a preceito e as entregar ao seu benquisto pai.
- Coisa que vai à estranja tem de chegar bem cheirosinha. _ Disse para si mesmo Dimuka, antes de entregar a encomenda.
- Podes confiar, Sô Tor., Tão logo baixe o pé no Figo Maduro (nome aeroporto) eu ligo ao teu papai a informar e a combinar o encontro. _ Disse a mulher banhada de satisfação.
Trocaram cortesia e sorrisos. Tudo caminhava a preceito. No dia seguinte, Dimuka recebeu uma chamada a confirmar que Dina tinha chegado bem e falado já com Agê. Dimuka esfregou as mãos de contente. Mais ainda quando recebeu os agradecimentos do pai, embora tivesse terminado com a sua célebre frase, já canção, "o dinheiro faz pouco na minha vida". Tanto de um lado quanto do outro reinou a sensação de confiança.
- O infante é de palavra. Meninos assim é que dava para adotar na juventude. _ Terá desabafado Agê ao desenrolar o lencito de seda carregando umas folhinhas que valem ouro.
- Esse kota é mesmo um tuga mwangolizado. Quem me dera que tivesse ficado connosco quando se deram as vundas do tunda mindele? _ Desabafou Dimuka que me contou presencialmente a sua versao dos factos.
Mas não era tudo. Kaxinda, candidata a escritora, tinha contas por pagar numa editora livreira da estranja e debatia-se com a carência de folhas verdes decoradas com bandeira do tio Sam. Já o tinha comunicado ao pai adoptivo Dimuka e ao vovô Agê que prometeram "ajudar na medida do possível", mas num tempo que não se encurtava.
Numa altura em que Kaxinda desesperava, Agê deu ar de sua Graça. Ligou à Dina pedindo-lhe se podia levar os dodós de volta às terras de Ngola e, desta vez, os entregar à Kaxinda. Conseguido o agrément, telefonou à neta:
- Ove lá, minha neta, teu pai pagou-me os livros mas vou te enviar o dinheiro para ajudar no teu livro. São três folhinhas que valem pouco mas que ja dão um pequeno impulso. Guarda sigilo e não lhe digas nada, está bem? Boa sorte. Uma dona, a Dina, mulher linda séria e inteligente, vai te contactar quando chegar por aí. _ Segredou Agê, ao que mantiveram, neta e avô, a conversa longe de Dimuka que continuou a sua vida e a  sua interação ora com o pai na estranja ora com a filha incógnita que reside a 1200km de distância.
Terminada a transumância invernal, Dina regressou ao antigo ultramar onde decidiu juntar patacas, sendo surpreendida, ao que se conta, com a subida vertiginosa do custo de vida e cada vez mais difícil acesso às verdinhas.
- Estou nas margens do Kwanza onde é esse rio quem todas as contas paga, vou levar à neta do Agê alguns litros dessa água milagrosa e fico com as folhas verdes, verdinhas como o café ribeirinho do Kwanza. _ Filosofou Dina dos dodós.
Na manhã do dia seguinte, Kaxinda, que já sonhara com os dodós vindos da Tuga, receberia os litros do Kwanza.
- Ei-los, filha. Foi teu avô q'os mandou p’ros netos, os teus filhos. _ Atirou Dina esboçando um sorriso matreiro.
- Kwaaanzas, mô Deuju?! E os môs dodós que o vovô me segredou? Ai wé, Ngana Nzambi, me tramankaram mbora môs dodós do livro na Tuga...
E foi esse o grito que se ouviu de Kabinda ao Kunene e da Matamba a Galiza. Já correu muito tempo mas o “conta que conta” vai avivando a cena e com novos detalhes e mais ajindungados.
NB: publicado pelo Semanário Angolense a 09.05.2015.

domingo, 1 de novembro de 2015

O FEIJÃO “ENXOTA CLIENTE”



Já tinha ouvido falar e visto nos seus tempos de criança o “peixe catana” ou “cikolamwenho”. Tão duro, tão duro que precisava de uma afiadíssima catana ou machado para o desfazer em bocados, nem sempre ao gosto do retalhista/cozinheiro. Era o peixe que, em Kalulu, nos anos oitenta do século XX, era vendido nas empresas cafeícolas Libolo I, II e Libolo III. Tempos depois, com a fome que se seguiu aos dias do conflito pós-eleitoral de 1992, surgiram dois tipos de feijão. Um era o “espera cunhado” e outro o ”afugenta sogra”. O primeiro era de fácil cozedura, não demorando mais do que quarenta e cinco minutos. O segundo era de uma dureza nunca vista e que, naqueles tempos de fome e penúria, muito servia a algumas noras mal-educadas para afugentar as sogras.

- Mamã almoço hoje é feijão. Só que está já há duas horas e meia e não está a cozer. O gás, essa é segunda botija, e nada! - Diziam.

Quando pensava ter já ouvido e assistido a muita coisa, Kitomangombe foi surpreendido com o feijão “afugenta cliente”. Isso mesmo, “Afugenta cliente”. Não é beff.

Com antecipação de 24 horas e reconfirmação de 4 horas, encomendou o almoço. Comida em instância turística para o “magnata”, a digníssima e dois herdeiros do “trono sobático”. Gentil, como sempre, a gestora, parecia encaminhar o assunto em boa praia. Trocaram mensagens com as devidas cordialidades e formalidades. Drº Kitomangombe por lá, seguido de um agradecimento, e Drª Beltrana, por cá, seguido igualmente de agradecimento da praxe.

- Papá, onde é hoje o almoço? - Perguntou Renato já acossado pela fome, ainda a meio do culto Metodista.

- Filho, ainda é cedo. Respondeu-lhe com um vinco no rosto, dada a sua forma desconcertada de estar perante um local de adoração.

-Mamã, o papá não está a falar onde vamos comer. – Resmungou o rapaz, em busca de auxílio.

- Eu já disse que vamos almoçar num lugar turístico. Por agora devem prestar atenção ao culto e depois partimos para o almoço. – Emendou Kitomangombe, olhando para o filho no colo da mãe.

- Papá! Vamos comer “papuço”? - Voltou a questionar, já mais alegre pela resposta recebida do progenitor.

- Sim. Vamos comer kakusu, se te portares bem.

O sol corria para o meio centro. As chapas que cobriam o local de cultos pareciam gritar. Estavam sendo esticadas pela temperatura que atingia o seu ponto mais alto. No estômago, as lombrigas brigavam descontentes e tudo fazia adivinhar outras perguntas sobre o local e a hora do almoço.

- Mor, já confirmaste o almoço? - Desta vez foi a esposa preocupada com a fome dos filhos (as mulheres têm essa “mania” de pressentir a fome dos filhos) ou mesmo reclamando o seu quinhão.

- Sim, já enviei mensagem a confirmar a nossa ida ao local e obtive a resposta, garantindo que tudo estaria a ser preparado e pronto ao meio dia e trinta minutos.

Não tardou, o coro principal da igreja entoou o hino derradeiro: “teu culto finda aqui. Despede-nos Senhor. Dirija-nos até ao fim. Por teu excelso amor”! – Entoaram sorridentes os jovens de becas esverdeadas.

Fez-se fila para saudar o pastor, o liturgista e os coristas perfilados à saída do templo físico. Renato, o filho, corria de lado a outro. Se tinha apossado da igreja, depois de duas horas e meia de “prisão” no seu imaginário traquina. Os apressados dirigiram-se aos veículos e motociclos e foram “rezar noutras freguesias”. Kitomangombe, a mulher e os dois filhos seguiram-lhes o exemplo e procuraram por um ATM que encontraram sem muita demora. – - Tem dinheiro! – Disse festivo aos que se encontravam na viatura encostada à beira da estrada.

Fizeram-se a caminho do Centro Turístico Kulikwasa que distava cerca de treze quilómetros da urbe.

- Papá olha praia! – Gritaram as crianças.

- Mamã, não trouxeste o meu fato-de-banho.- Reclamou a menina que obteve a pronta resposta da progenitora.

- Teu papá não nos avisou que viríamos aqui. Fica para a próxima filha. Também o clima está a ameaçar chuva. – Rematou para consolar a filha que trançava a boneca.

- Não é praia, filhos. É lagoa natural. Aí não se nada. É perigoso.- Emendou Kitomangombe que, até aí, se limitara a ouvir a conversa entre a mãe e os filhos.

- Papá, e só vamos comer mais nada?- Insistiu a menina.

- Sim, Mara. Vamos comer e ir descansar em casa. Amanhã é dia de trabalho.  

Estacionada a viatura, a família Kitomangombe passou pela cozinha que estava entregue às moscas.

- Nem uma brasa acesa. - Observou o patriarca que começou a desconfiar das palavras amorosas da gestora que lhe garantira, de pés quase juntos, “encontrarás tudo pronto”.

-Será que já está mesmo pronto e só a espera que chegássemos?- Indagou desat vez em voz alta á mulher, por instantes, se tinha distraído com a exuberância da lagoa.

- Boa tarde, jovens, podem mostrar-me o “gerente”?- Indagou Kitomangombe.

- Os três moços, que jogavam à dama, entreolharam-se e apontaram-lhe o caminho da sala onde estaria o responsável.

- Boa tarde, jovem. É o gerente?

- Sim. Sou eu mesmo. – Respondeu meio tímido o jovem que aparentava 22 anos e mal trajado para um serviço de atendimento a clientes.

- A Drª Beltrana falou-lhe sobre quatro pessoas que viriam cá almoçar? O prato é kakusu – Lembrou-lhe.

- Sim, boa tarde, mano. Ela falou. Podem dirigir-se à mesa. Querem ficar na sala ou junto à lagoa? Também há sombra e cadeiras.- Aconselhou o atendedor.

Kitomangombe, aconselhado pela filha, escolheu o espaço aberto, com uma visão mais ampla para a nascente natural barrada pela acção humana e que resulta numa majestosa lagoa com margem betonada num dos lados. Os filhos andavam de um lado ao outro como felino que demarca o seu espaço vital.

- Papá! Quero andar de canoa. – Interrompeu Renato.

Antes mesmo que se preparasse para ensaiar a resposta negativa, Renato voltou a disparar: - papá! Quero nadar nessa piscina bem grande.

As águas estavam proibidas a mergulho por causa da lama e de uns bichos que se pareciam a alforrecas. E, não tardou a explicação de Mara, que já sabia ler, ao irmão que via no papá um empecilho à sua vontade de mergulho.

- Mano, o papá tem razão. Aí está escrito: “proibido tomar banho nesta lagoa”. É por isso que o papá não nos quer deixar tomar banho nessa. – Explicou, recebendo aprovação dos pais que se rejubilavam a cada vez que lesse um aviso ou outdoor e explicasse ao irmão mais novo.

Sem nado, as atenções voltaram à comida que demorava. A mulher, já impaciente, estava de pé, pronta a ir tirar esclarecimentos, quando o “gerente” se apresentou para o que chamou de uma pequena desculpa.

- Já está tudo pronto. Só falta o feijão!

- Só falta o feijão? Preferia que faltasse o kakusu, que pode ser pescado por mim, do que o feijão. Queres que aguarde aqui três horas a espera do feijão? – Questionou Kitomangimbe, já com um vinco visível no rosto.

- Não chefe. Já está a ferver, mas vai levar ainda algum tempo. É só mesmo o feijão que está a faltar.- Justificou-se, esfarrapado, o rapaz.

- Traz já o que tens e o feijão vem mais tarde. - Ordenou a Senhora Kitomangombe, algo aborrecida.

Quatro peixes enxutos, bocadinho de mandioca e batata-doce, um molheco de tomate e cebola picada e nada mais. Os peixes pareciam ter sido conservados em geleira, depois de grelhados, e aquecidos. Estavam secos e sem temperatura interior. O resto foram só reclamações.

O feijão, ainda fervente, serviu mesmo o seu papel de afugentar os clientes que reclamavam de mesa em mesa.