quarta-feira, 15 de abril de 2015

DEPOIS DA CHUVA, A RUSGA


No dia em que a cidade ficou inundada, de tanta chuva que caiu em cerca de 36 horas, o Governo Provincial de Luanda e os seus parceiros sociais viram-se quase que forçados a estabelecer um “planos de emergência” para o desanuviar o trânsito automóvel e a limpeza das ruas da urbe que estavam apinhadas de lixo e lama.

Os homens da fiscalização (farda verde, banga nos land cruizer da caixa aberta, rebocadores na traseira da patrulha) meteram-se a levar tudo o que fosse carro mal estacionado ou há muito parado na via pública.

Depois dos fiscais, ou simultaneamente, chegava uma outra patrulha de medicina alternativa com ambulância, cordas e anestesiantes. Chamavam a este grupo de "equipa Kitoko".

Naquela tarde de sol preguiçoso, como carvão molhado que patina no fogareiro para assar a lambula do almoço, já cinco viaturas, daquelas que soçobravam pela rua, acolhendo dementes e kangonheiros em horas esquivas, haviam sido removidas pelos homens da administração. No mesmo local, dois dementes recolhidos pela "brigada kitoko" contavam já piadas na ambulância e a caminho do manicómio.

Quando os fiscais se preparavam para remover a sexta viatura, deparam-se com um homem maltrapilho, chaves na mão, cabelo há décadas reclamando por pente, corrente ao pescoço e sem rumo aparente.

- É mais um deles. - Gritaram os três fiscais que inspecionavam visualmente a área a partir do cimo da carrinha de cor branca e riscas amarelas em todas as suas faixas laterais.

- Mais um. Agarrem-no. Matadidi, prepara o calmante. - Ordenou o chefe dos fiscais aos para-médicos tradicionalistas.

De seguida, fiscais e “kitokistas” trocaram olhares sem falas. Apenas gestos a combinar o desenrolar da operação de captura.

Ouviu-se um "agarra, agarra maluco" vindo de todos os lados: fiscais na carrinha de patrulha, para-médicos na ambulância e os monandenges nas cercanias. Agarra maluco para cá, agarra maluco pra lá e o próprio visado, às tantas, sem saber ainda o que se passava, também ajudou a gritar “agarra maluco” até que foi atingido pela corda em forma de laço.

- Porra! Não sou maluco, pa! Me larguem, seus gatunos de merda! - Tentou ainda defender-se, mas com a perna já no laço.

Suspeitando que se tratasse de assaltantes, o suposto demente agarrou com mais força a mala de chaves, a peça de viatura que havia extraído da sucata e a sua chave 14/15 de boca com que visitara a cabeça do para-médico kitoquista que teve de ser suturado ali mesmo e vacinado contra tétano.

- Me larguem, porra! Sou mecânico. - Gritou o suposto demente perante o espanto da assistência.

- Um mecânico com uma corrente ao pescoço? E por que vives em sucatas abandonadas, coabitando com homens distantes da razão? - Questionou um dos homens da “Brigada Kitoko”.

- Estava apenas a aproveitar umas peças dessas sucatas para o meu "acaba de me matar" que também corre o risco de ser removido da via pública por inoperância prolongada. - Esclareceu.

- E a corrente ao pescoço?- Voltou a perguntar o chefe da brigada de recolha de dementes, já mais calmo.

- Essa corrente também a recuperei na sucata e vai ajudar a acorrentar o gerador ao poste de energia que está mesmo no quintal. – Explicou Manuel Kaferro (como se ficou a saber mais tarde), ainda assutado.

Dada como certa a explanação do homem que até era técnico superior em mecatrónica, porém submetido ao desemprego forçado pela crise dos "dodós" que levaram o antigo patrão, um importador de carros usados, a declarar falência, desfizeram-se os mal-entendidos.

Os homens da farda verde prosseguiram o seu trabalho, removendo tudo o que lhes desse dinheiro na esquina. Rebocando mais veículos estacionados em lugares permitidos do que as sucatas, há muito sem dono, que nunca chegariam a ser reclamadas. Manuel Kaferro, o mecatrônico, teve de ir à casa refazer-se do susto e testar a peça que tinha conseguido antes da chegada da “Brigada Kitokista”. Esses últimos acabariam por receber uma chamada para irem socorrer um demente real em dificuldades numa lixeira automóvel da Quinta Avenida.

Por cima do meu muro, fiquei a ver a lagoa artificial criada pelos homens das obras a encher-se de água que vinha de todas as partes altas dos subúrbios de Viana; os alevinos (filhotes de peixes), na lagoa, em festa por causa da chegada de água mais oxigenada; os putos “pescadores” com as redes e as garrafitas em que guardam os peixinhos que vendem a troco de rebuçados; as mamãs do bairro a muxoxarem por causa da água que lhes invade os quintais e os aposentos, e os papás preguiçosos a aplaudirem “viva a chuva", pois seriam dois dias de folga lá no serviço!


Obs: publicado pelo semanário Angolense a 21.03.2015 

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A PRAGA DE MWANGEJI E NDUNDU


Fazia tempo que sua vida eram só lamentos. Mwangeji tinha perdido a vontade de viver. Tamanha era a desgraça e o desprezo a que fora votado, depois de muito ter servido a seus vizinhos e dependentes. Na verdade, a vida miserável que levava era também a que seu primo enfrentava num território distante, embora parte do mesmo país. Nasceram num tempo que a História se encarregou de esquecer. As lendas e as crónicas de gentes que por eles passaram fazem ténues referências ao tempo em que toda a terra estava submersa. Terão sido trazidos à luz, nos dias da separação das águas e surgimento de terra firma.

Vivia cada um confinado ao seu território natural. Embora primos, Ndundu e Muangeji não se conheciam fisicamente. Toda a comunicação era através do avô Kasai que tinha ligações permanentes com seus dois filhos, Lwaximu e Cikapa.
Mwangeji, mais velho e filho de Cikapa vivia a sul do território e Ndundu a norte.
Já velhinhos, sofrendo desprezo de quem deles viveu e se sustentou por muitas décadas, os dois co-irmãos passaram a padecer de doenças várias derivadas do desrespeito com que eram brindados pelos homens à volta e pela podridão em que suas casas se tornaram.
Tinham contado a seus pais, já seculares, o que se passava com eles e estes, aconselharam-nos a trocar experiências a ver se se salvavam da opressão e infra-vida a que estavam votados.
Foi nessas circunstâncias que Mwangeji decidiu escrever uma carta ao Ndundu, contando a sua saga.
- Querido irmão, espero que estejas bem. Embora nunca nos tenhamos visto, julgo oportuno, narrarmos o quanto fomos úteis e a vida que levamos hoje para que nossos filhos e netos prevejam situações anómalas que lhes possam ser impostas pela ganância dos homens capitalistas desse tempo.
Nasci entre colinas. Papá e mamã deixaram-me um vasto território que herdaram de nosso avô. Durante a minha juventude vivi quase solitário. Filhos menores, abundância em peixes, caranguejos, algas, misoji, águas límpidas e solos férteis para irrigar, assim vivi com fartura até à chegada dos homens. Primeiro negros, depois os brancosos. Na luta entre eles, os primeiros correram com os segundos e eu não fui poupado. Meu quintal passou a depósito de tudo que saísse descartado de suas casas: areias transportadas de longe, latas, plásticos e papelões, óleos e pilhas, tudo atiram em minha casa. Já sofri de pneumonia. Já tive sarna. Já chorei e implorei. Nada! Uns, preocupados mas sem poder, já fizeram músicas contando meu presente e passado. Outros retiram de mim pedaços para remendar seus terraços de ferro e aço. Já fiz famílias felizes. Crianças deram suas fimbas em minhas exuberantes piscinas naturais. Jovens apaixonados em minha casa rocaram primeiros beijos e até cenas de procriação assisti. Já fui padrinho, pastor e advogado na hora de divórcio litigioso. Tudo de bom fiz, aos homens, mas eles me remetem aos confins da pocilga…”- Mwangeji pousou a pena no tinteiro e começou a ler o que escreveu, limpando com um pano enxugador os pequenos borrões.
– Irmão do norte, embora este seja o nosso legado, fazer sempre o bem aos homens de todas as raças e credos, temos de alertar aos nossos filhos para procurarem contenção na bondade e viverem o desprezo com maior preparação.- Rematou.
Mwangeji fechou a carta e a colocou numa caixa flutuante que a faria chegar ao pai Cikapa e este para o avô Kasai, de onde seu tio Lwaximu a pegaria para a entregar a Ndundu.
Quando a carta lhe chegou às mãos, Ndundu estava embravecido. A sua casa tinha sido literalmente arrasada por areias enviadas por uma nova cidade. Antes dos homens do cimento e asfalto terem invadido a vizinhança, a sua vida, embora pacata, era de um idoso sadio. Os Pirilampos reproduziam-se em seus cabelos rastejantes e embebidos em águas frias e cristalinas. Suas terras eram guarnecidas e seus quintais murados. À semelhança de seu primo do sul, acolheu casamentos e divórcios. Deu beleza a gente rejeitada pelo amor e em suas águas ganharam vida milhares de vizinhos e transeuntes da cidade do brilho incessante. – Mano, faço de teus prantos minha música.
- Até há pouco ainda respirava saúde. Os miúdos desse tempo já desrespeitavam kabucado com suas manias de estragar tudo que é natural. Mas agora que limparam dezenas de hectares na direcção do sol poente, todo lixo é na minha casa que pára: água de esgoto sem fundo, miram para mim. Areias de ravinas provocadas pelo corte do cabelo vêm cá ter. Lixo das compras exageradas deixam na minha porta. Até combustíveis e óleos dos carros capitalistas vêm cá ter, matando tudo à volta de mim. Já me chamaram de “Velho praia suja”, “colchão de areia”, ribeira morta, desgraça do presente, entre outros nomes que me escapam à memória. À semelhança do que li na tua carta, irmão, também assisto ao choro dos inconformados sem poder, bem como ao desprezo dos poderosos sem zelo e sem pudor. Já ouvi canções de saudades dum tempo que a vizinhança me procurava para se aconselhar na acalmia do meu rasto.
As minhas portas eram autênticas postais para gente próxima e de terras distantes que por cá buscava repouso e sustento. Não havia ser que passasse por mim sem a saudação com a devida vénia. Até o meu nome à sua cidade atribuíram, porém, hoje só recebo desprezo que me cria uma enorme repulsa. Dei água aos homens e dei leite aos seus animais. Levei comida a seus pratos, lavei suas roupas e lágrimas e dei ouvidos a seus prantos. – Escreveu Ndundo, filho de Lwaximu, neto de Kasai e bisneto de Nzadi.
Embora sem força e quase sem vida, Mwangeji ainda leu a carta – resposta de seu primo e, por meio de um sobrinho comum, puderam combinar o castigo aos seus malfeitores.
“Não mais lhes daremos água sempre que suas sedes pretenderem matar em nossas casas. Guardaremos nossas águas debaixo dos colchões de areia com que nos brindam.
Não mais lhes daremos peixe sempre que cozinharem seus pirões e ximas. Guardaremos o resto de nossos cardumes em casa de nossos pais e nosso avô Kasai.
Não mais lhes daremos terras férteis para suas lavouras. Exportaremos nossas terras repletas de húmus e faltarão verduras em seus pratos.
Não mais se banharão em nossos estuários nem se servirão de nossos leitos para utilidade alguma.
Seus animais enfrentarão sede e penúria. Seus filhos jamais conhecerão rios e andarão distâncias para ver cardume.
Seus poemas não mais escreverão, sob o farfalhar de um caudal e sob picada de peixe miúdo em pés adultos”.
E a praga se cumpriu, tempos depois, por longos e infinitos anos.