terça-feira, 20 de dezembro de 2016

EXODO NA ENHANLA


Enhãnla, Estado ribeirinho, cercado pelo reino de Kamunda, é um território do continente Acirfa de Júpiter. O povo de Enhãnla, modesto nas posses e excessivo na ostentação, vive de pequenos plantios nos seus solos ricamente abençoados e cravados por ribeiros caudalosos e de águas lúcidas que permanecem durante as duas estações do ano jupteriano. A indústria, ainda nascente, se reporta à abundante mineração carboniana, material pedregoso, ouro e outros que enfeitam as lendas que trespassam gerações e gerações sem nunca os habitantes aplicarem a força dos cérebros e das máquinas ao solo cravejado de riquezas improvadas e incalculadas.

Próximo de Enhãnla, no reino da Kamunda, vivia um rei, já velho e de respeito incomensurável, Ngan’Ebata, o Senhor da Casa ou Senhor do território, cujo poder, às vezes, escapava as suas fronteiras e adentrava a Enhãnla do presidente Ndvumba, ainda jovem  e muito apegado às civilizações terrenas, um planeta com o qual a Enhãnla pleiteava a órbitra solar. Na Kamunda, território que aos olhos dos seus habitantes parecia sem fim, o povo era monoteísta. Ngan’Ebata era a razão de ser e o fim último dos seus súbditos que o adoravam de sol em sol e de chuva em chuva. Os agnósticos e hereges há muito tinham sido convidados a abandonar o reino ou se refugiado voluntariamente na Enhãnla para escapar da espada vermelha do rei-deus do território maior de Acirfa que se preparava para liderar um único Estado-Continente de Júpiter.

Ainda na Kamunda, as artes haviam sido divididas entre maiores e menores, com primazia às vocais por serem as que melhor deificavam o rei-deus. Os desportos cantavam a sua glória e até o que restava das três mais antigas organizações sociais curvava-se aos pés de Ngan’Ebata, também cognominado de “O Senhor do Poder sem medida e sem fim“.

- Ao rei toda a glória. A mim todo o respeito! – Apregoava nas suas homilias, Ngan’Ebata, nos eventos que os súbditos organizavam em sua homenagem em seus sumptuosos castelos e palácios ou quando se fazia circular nas suas riquíssimas fortalezas automóveis.

- O poder me foi delegado pela divindade extraplanetária e só a ele o entregarei quando o tempo chegar. - Dizia outras vezes, mas sempre interrompido pelos súbditos da “escova mais lustrosas “ que não se cansavam nos elogios. E Eufóricos replicavam:

- Por que não a seus herdeiros, Sua Majestade Santíssima?

Assim ditas, as palavras rejubilavam a corte inteira que encontrava encostos almofadados num povo que, aos olhos dos seus vizinhos da Enhãnla, se parecia exausto, depauperado e com riquezas subjupterianas exauridas, depois de uma extracção massiva e concentrada nas mãos de Sua Majestade Santíssima. Foi assim que começou o êxodo para a República vizinha da savana húmida e arbórea onde tudo parecia ainda em estado virginal. As riquezas ocultas no subsolo; a vida política, embora começasse a ser influenciadas pelos maus ventos da Kamunda, e toda a organização social estavam ainda pintadas de rosa. Era, realmente, um mar rosado e esverdeado, encravado num manto plano que se mostrava a nordeste.

Primeiro os homens, depois as crianças e por último as mulheres fizeram-se além marco, seguindo caminhos vários há muito traçados, cujo destino era um só: Enhãnla onde confluíam novas crenças e certezas.

Uns creram em refundar suas vidas longe da Kamunda. Outros alimentaram esperanças caducas de verem sua Majestade Santíssima voltar aos tempos da sua regência jovial. Outros ainda esquadrinhavam o sonho de inundar a República de Enhãnla com metade da população de Kamunda para passarem à fusão dos territórios e encontrar um governo de centro que aglutinasse todas as vontades.

- Apenas a geografia nos diferencia entre montanhenses e pradianos. Todo o resto é igual. - Apregoavam os unionistas que eram compreendidos na terra de exílio, sendo dos mais respeitados e  tendo ganho a simpatia da autoridade republicana de Enhãnla que lhes concedia espaço para o desenvolvimento da actividade económica que ia da cultura de vegetais à pecuária e do comércio à prospecção mineira e indústria extractiva de recursos ocultos. Ngana Kyombo era o líder dos unionistas saídos da Kamunda e refugiados na Enhãnla.

Exilado há vinte e nove anos, os negócios de Ngana Kyombo tinham já tentáculos vários e exalava influências por onde quer que passasse. Com a ajuda de alguns notáveis da Enhãnla tinha conseguido algumas conceções mineiras em Ekaproville, região a leste do Estado, onde despontavam granadinas e relatos sobre ocorrências de carbono tenaz.

- Vamos fazer dinheiro com as brilhantinas carbónicas e restaurar a Kamunda. – Dizia Ngana Kyombo, aos seus mais próximos, com a mesma energia com que os impelia a se formar e aperfeiçoar na gestão de negócios e organizações empresariais. Tudo corria de vento em popa, como era comum dizer-se em Enhãnla, quando os negócios corressem de forma maravilhosa. Mas um dia, daqueles dias de sol ausente e frio presente, quando é a neblina friorenta e translúcida que se sobrepõe à luzidia bola amarela carregada de calor, um leão faminto fez-se presente entre os seus homens que realizavam a prospecção de moléculas de carbono compactado por pressão secular e calor subjupteriano. Instalou-se o pânico. A primeira ideia foi a de “fugir antes de tudo”. Depois viriam as ideias. Junta-las, seleccionar as melhores, mediante a exclusão das piores. A legislação ordinária, o direito consuetudinário e o costume seriam também postos na balança. Os gritos do planeta e mesmo a moda reinante na esfera inter-planetária apontavam para a busca da coabitação entre felinos e jupterianos. Os habitantes de Enhãnla não eram humanos. Apenas jupterianos, uns ET na análise racional de seus coetâneos do continente África do planeta Terra. Mas havia também felinos jupterianos, semelhantes aos leões de África.

A concessão de Kalimarc, no distrito centro de Enhãnla, carecia de injecção de dinheiro fresco dos accionistas. O dinheiro estava sendo dificultado pelos relatos dos prospectores que alertavam, dias sem fim, a presença dos felinos que colocavam as suas vidas em constante perigo. Apenas a teimosia dos carreiristas e o caloirismo dos jovens estagiários, que pretendiam dourar os curricula, permitiam pesquisas residuais naquela concessão mais à beira do fecho das operações do que da injecção de dinheiro fresco pretendido. Matar o animal e preservar os jupterianos ou deixar o espaço aos seus habitantes naturais? A pergunta ecoava de canto a canto da coutada de Kelimarc, concedida, contra natura,  para exploração mineral e um pouco por toda a Enhãnla.

Barbatana, um jupteriano com experiência de direcção em campanhas de pesquisas semelhantes no reino da Kamunda, enquanto chefe da equipa jupteriana, sabendo que “matar a razão do medo podia redundar em aposta na pesquisa”, decidiu premir o gatilho.

Bumm! Disparo certeiro no centro da encefalia. Jazia defunto o temido bicho jubento e com dentes há décadas cariados. Acto contínuo, Barbatana carente de dinheiro, mobilizou a media e mostrou a fraqueza do temível animal abraçando o máscula rocha superficial jupteriana. Choveram elogios. Barbatana de herói se fez e corou encomendou.

Não tinha entretanto sido contada toda a estória. O filme ainda desenrolava. Minutos depois, o telefone tocou.

- Aló! É o inspector Barbatanas? – Questionava o conselho transplanetário do ambiente.

- Sim, Vossa Excelência Generalíssima. – Respondeu arrítmico na vocalidade o “general Barbatana” como era conhecido entre os prospectores. Era ele o chefe das operações.

- Pois é, Senhor Barbatana, gostaríamos de saber de onde terá a sua equipa recebido a ordem para abater o animal felino. Foi da corte enhanlense ou da coordenação planetária? – Indagou o responsável supremo da preservação biosférica.

Ente medos e razões, a cobardia falou alto. Barbatana, apesar de longevo residente, era expatriado e sabia que as autoridades enhanlenses, se pressionadas pela coordenação planetária, não vacilariam em manda-lo de volta à terra de Sua Excelência, Majestade Santíssima, a Kamunda. Decidiu desfazer-se dos feitos heroicos e oferece-los ao autógene local.

- Excelência, nós apenas fomos chamados como testemunhas de um facto de que nos congratulamos por um quarto e condenamos por  três quartos. É que, apesar do enorme perigo que enfrentava a nossa equipa de prospecção, jamais nos passaria pela cabeça extirpar a vida de um pacato felino. O autógene local, sem o nosso conhecimento, teve a infeliz iniciativa de acabar com o felino que o surpreendeu na flora abundante, quando procurava resgatar um babuíno de estimação. Do confronto, narrou-nos o autógene, resultou a morte do felino que, até à consumação dos factos, era caracterizado por um pacifismo inaudito. - Relatou eufémico Barbatana, acrescentando ainda que o premir do gatilho da caçadeira “22 longos” só ocorreu depois de o autógene amedrontado pelo animal ter permanecido cinco horas no último ganlho de um arbusto de dois metros.

A estória ainda corre. Sabe-se que Barbatana está por responder se “entre a preservação da vida dos jupterianos em busca de riquezas e o abate do felino qual dos direitos se sobrepõe a outro“. Sabendo-se que descartou o feito que o levaria a herói da Enhanla, resta saber que passo dará quando for chamado a depor na audiência jupteriana.

sábado, 10 de dezembro de 2016

A HORA DA GOVERNAÇAO ELECTRÓNICA


Era hora de almoço. No serviço, uma repartição pública da cidade alta do Huambo, Job Katende e seu amigo Manuel Duas Horas, falavam sobre os avanços tecnológicos entre o cruzamento dos Séculos XX e XXI e as dificuldades e resistências que ainda se verificavam nas Organizações do Estado e também em algumas privadas.
- As máquinas de dactilografia fizeram o seu papel, tornando legíveis, padronizados e ágeis processos de elaboração de documentos institucionais. Depois vieram as máquinas electrónicas, programáveis, rápidas e com um output mais vistoso. Quem não se lembra de como eram tão lindos aqueles documentos processados numa máquina movida a impulsos electrónicos e que ficava a meio caminho entre a velha máquina mecânica de dactilografar e a moderno computador? – Atirou  Manuel Duas Horas, com o garfo entre a boca e o prato de pirão.
 
Ainda hoje me fazem saudade. - Interrompeu Job Katende, regressando às memorias com já meio século de tamanho. O Governo Electrónico deve ser um caminho para ultrapassar os problemas que estamos com ele. Pode não ser longo, até porque hoje o maior inimigo do homem é o tempo e o melhor amigo é a tecnologia. – Reconheceu puxando o colega para mais dissensões a respeito do assunto em pauta. Era hábito entre os dois buscarem uma conversa inovadora e actual para regar os manjares.
Pois é, mano Manuel. ‘ Retomou Job Katende. A adopçao da Governação  Electrónica deve ser um plano institucional com etapas bem delineadas, com recursos, capacitação do capital humano em todas as frentes da pirâmide hierárquica, e sobretudo, exige mentalização do liderança da organização. Não pode ser chamada ou evocada apenas para fazer frente a falta de papel, tonel e tinteiros, quando as pessoas não têm computadores nem usam Outlook, quando algumas organizações correm para século XXII e umas ainda teimosas no século XX. Não se deve falar de Governo Electrónico quando na mesma organização uns navegam na internet e outros nem à velha máquina sabem dactilografar. É preciso saber que o governo electrónico das empresas requer uma mesa e uma cadeira por pessoa, uma máquina que se deprecia com o tempo, mesmo que aparentemente pareçam estar em condições. Essa crise que estamos com ela passa. A crise vamos combater com inteligência, chamando soluções adequadas a cada momento e circunstâncias. Porém, chamar soluções para as quais não se esteja estruturado pode ser paradoxal.
 

Mal Katende terminou o seu rosário, a sala viu entrar Nkosi Mwenaxi, especialista em tecnologias de informação a quem sempre se recorria quando o assunto fosse internet e conexos.

- Boa tarde Mano Nkosi, já sabe que andamos sempre a tertuliar para empurrar o pirão quando o almoço é em branco. Sinta-se convidado à nossa mesa e a água fica já sob nossa responsabilidade. ‘ Convidou Manuel Duas horas ávido de mais conhecimentos sobre Governo Electrónico que só há poucos dias começava a entender, deixando de o confundir com a estrutura política que rege a organização e gestão do Estado.

Atento e interessado no assunto, Nkosi Mwenaxi começou assim a sua preleção: numa era de carências, as mentes são chamadas à exercitação diária para afinar-se mecanismo e se encontrar vias expeditas que permitam o andamento da engrenagem administrativa. Sem recursos nalgumas organizações para a compra de insumos administrativos como papel, tonel, tinteiros, combustível e outros materiais de reposição permanente, a palavra Governação  Electrónica é evocada de hora a hora e sempre que os procedimentos tradicionais de elaboração e expedição de documentos se mostre impraticável.
O que é então governação electrónica e qual é a demanda da governação electrónica?
O bloguista moçambicano Viriato Caetano Dias, na sua pág: http://macua.blogs.com/moambique_para_todos, afirma que a Governação Electrónica não é mais do que o uso das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no sector público e não só... para a melhoria de vida (das organizações) dos cidadão e do país em geral.

Segundo o mesmo autor, a aposta na Governação Electrónica, entre os mais diversos objectivos realizáveis, visa:

» ”Proporcionar o acesso universal à informação a todos os cidadão e funcionários  para melhorar o seu nível e desempenho profissional (administração, educação, ciência e tecnologia, saúde, cultura, etc.).

» Criar uma rede electrónica do Governo que concorra para aumentar a eficácia e eficiência das instituições do Estado e contribua para a redução dos custos operacionais e melhoria da qualidade de serviços prestados ao publico”.

Remete-nos tambem à ideia de facilitar o cidadao na interaçao com as instituiçoes do Erstado e outras, proporcionando informaçao adequada e actualizada aos contribuintes, disposiçao de bens e serviços aos utentes, através de redes cibernéticas ou portais que facilitam a informaçao, acesso aos serviços, usufruto e prestaçao de deveres e obrigaçoes como o pagamento de coimas, escolha de representantes, constituiçao de orgabnizaçoes, etc.

Para a materialização dos pressupostos acima elencados torna-se necessário suprir quesitos como: equipamento, modernização, manutenção e capacitação do Capital Humano.

- O quesito equipamento remete-nos ao apetrechamento das instituições com tecnologia electrónica para dar vasão ou  fluidez aos processos. Computadores, impressoras, data shows, scanners, instalações para trafegar as informações, softwares, servidores, contas de e-mail corporativo (informação institucional não deve ser trafegada em caminhos alheios) entre outris, são imprescindíveis para que haja uma cultura de governação digital.

- A modernização tem a ver com a atualização dos equipamentos e programas cujo dinamismo de evolução não pode ser ignorado. Torna-se necessário que as organizações estejam a par da revolução tecnológica, não ficando distanciados dela, pois programas e máquinas em desuso podem complicar mais do que facilitar ao não corresponder com os exemplares modernos nem reagir no tempo e performances deles esperados.

- A manutenção é o pilar da durabilidade e fiabilidade: programas de combate às invasões virais, manutenção preventiva e reativa dos hardwares, testagens dos sistemas operativos, entre outros, devem ser permanentes para que não haja estrangulamento na recepção, processamento e saída de informações ou dados.

- Capacitação: para além da autossuperação, as pessoas e organizações a que o Capital Humano pertença têm de estar envolvidos em planos e programas de capacitação e refrescamento contínuos em TIC. Como conceber a Governação Electrónica numa organização em que haja pessoal administrativo sem conta de e-mail ou que ignore as vantagens da internet?

Podíamos elencar outros elementos, mas esses bem servem para uma reflexão preliminar. A todos eles se deve agregar o Capital Financeiro que é de extrema utilidade e condicionante.

Sendo que a necessidade nos impele a pensar fora do comum, uma vez aqui chegados, é tempo de despertar os assessores, consultores e orçamentistas para o exercício de uma magistratura de  influência positiva junto dos decisores de topo para um olhar mais atento e  agregador aos factores que podem ou não alavancar uma eficiente Governação Electrónica nas organizações públicas e privadas: é necessário investir em materiais informáticos, seguir a sua evolução, desmobilizar o  equipamento com vida útil vencida, investir em programas ou softwares de protecção, proceder as manutenções preventivas, actualizar os softwares, substituir os periféricos que se tenham avariado, etc. É desta forma que as organizações afectadas pela crise financeira ultrapassarão a crise de resultados laborais. Mesmo em agricultura, as boas safras muito dependem da forma como as campanhas agrícolas sao preparadas e como o plantio foi seguido ao longo do seu crescimento.

Boa reflexão e crítica.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

REENCONTROS E DESENCONTROS

Nascia o mês de junho de 2005. Luanda transitava entre o calor do meio-dia e o frio da meia-noite. Viana, Terraço, tinha sido o destino depois de uma semana repleta de trabalho e provaçoes. Três colegas de serviço, em companhia da irmã de uma das co-laboradoras voltavam a Luanda sonolentos e cansados, depois de pé de dança para os dotados nesta vertente lúdica e alguns tragos para outros. O Vemba tinha aproveitado fazer as suas, sempre oportunas, reportagens que alimentavam a sua página cultural nos noticiários nocturnos da estaçao radiofónica LAC. A viagem de ida, numa mini-coluna de duas viaturas e sete pessoas e o convívio até ai corriam à feição.

- Sigamos com calma (vagar)e os condutores, Vemba e Adilson, não devem ultrapar os cem quilómetros horários. - A voz Soberana fazia-se ouvir, apesar de meio turva, dada a madrugada. Reclamava caldo regado para às seis abrir a emissão da 995, também baptizada como Estaçao Azul.

Já a primeira das duas viaturas se tinha afundado no horizonte visual. A cidade sonhava ainda, antes de acordar.  Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguiam os tres mais uma, decidiu ziguezaguear, levando-os à assassina árvore engordava e se pintava de sangue nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Policia de Luanda.

Era ainda no tempo das vias estreitas, entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-os a Snt'Ana sepulcral antro com seus lúgubres lençóis.

- Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? - As perguntas gritantes e mudas permanecem. Quem as podia responder já cá não está. Porém, a embriaguez e outras coisas meditadas em surdina posso descartar.

- O rapaz que girava o volante e pedalava a velocidade nao era de trambiquices nem bebedices. Era rapaz de muito juízo na cabeça. Só podia ser sono. Embriaguez nao. Malandrice também nao. – Declararam as velhas e kotas do bairro que o viram nascer e crescer.

De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens para salvar os infelizes.

- São jornalistas. Salvem os nossos colegas. - Verberou-se suplicante nos 999 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.

Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido e abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.

Machados, serras, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda no escuro para se defender na hora do "dá-me teu suor", pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado no embate contra a árvore arrastou tudo para trás.

- Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. - A voz Soberana, ainda distante do seu estado físico real, fazia-se suplicante.

Ouvida, o  Avla seria esticado, deppois de amarrado de frente, à mesma árvore que também sangrava, e puxado pelo camião dos bombeiros.

Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, Vemba,  desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.

Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo e depois os do lado direito, os companheiros de viagem e desgraça encontrariam Leonardo Inocêncio, jovem chegado das terras de Fidel, mãos afinadas e firmas no infalível bisturi. Sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística.

- Doutor será que ainda viverei? - Perguntou-o o Soba preocupado, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.

- Vives, meu amigo. Vives, podes crer! - Respondeu convicto, o cirurgiao, no fim do seu trabalho.

Dez anos depois, sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, ei-los juntos, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública. Em "conversa puxa conversa", médico e paciente revivem o dia do acidente e de imediato se identificam.

- És tu que estavas naquele acidente de jornalistas? – Ingadou Leonardo.

- Sim. Sou eu doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobreviveram duas. - Explicou o sobrevivo Soba.

- Por favor, quero confirmar. Vamos sair e mostra a cicatriz. - Orientou o cirurgião com a mesma autoridade que usa no Hospital perante os pacientes.

Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar: - E qual dos pés sofreu cirurgia?

- O esquerdo, Doutor  Inocêncio. - Confirmou o Soba, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado.

- Pois é. És tu mesmo. - Confirmou o médico. Abraçaram-se aí mesmo, no corredor longo e iluminado do edifício.

- É meu paciente. É verdade. - Disse Leonardo à vintena de colegas que aguardavam pela perícia. - "A ferida é minha". Conheço as minhas impressões. - Ironizou.

Abraçaram-se novamente perante o olhar pasmado da turma e do professor. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro  de junho.

- Obrigado Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.

domingo, 20 de novembro de 2016

A SAUDADE QUE BROTA DO EMPENHO

- Por que, quando estamos em gozo de licença,  só a minha irmã recebe chamadas de colegas e do chefe a consultarem algo sobre o trabalho, se somos colegas? Por que só a ela as pessoas dizem "sentimos muito a tua ausência", quando voltamos ao serviço, findas as férias? - As perguntas de Njamba pareciam infinitas.

 Njamba não é uma jovem que sinta inveja da mana, mas a vida profissional, depois de toda a infância e adolescência juntas e recebendo dos pais e comunidade tratamento idêntico, faz delas, hoje, pessoas distintas, embora muito parecidas fisicamente.

Njamba e Ngeve, gémeas verdadeiras, sempre confundiram os colegas nas escolas em que frequentaram o ensino primário, médio e superior. Sendo duas raparigas de pele bronzeada e músculos torneados, as manas faziam-se passar, quando quisessem, uma pela outra sem o mínimo de desconfiança da "vitima". No banco e nos exames de recurso, que o digam os funcionários e os professores?!

- Njamba ou Ngeve? - Questionavam os mestres na academia.

- Sou eu mesma. A minha irmã dispensou o exame  - Defendia-se quem estivesse na condição de examinanda.

Houve vezes que que cada assumia seus actos singulares sem usar a falsa identidade. Porém, a pergunta "Njamba ou Ngeve?", só para confirmar, nunca se fazia ausente. Elas, com o "maior a vontade", sempre no ataque: sou eu mesma (Njamba ou Ngeve que escolhesse o questionador).

Depois de formadas, com sucesso académico, em Administração de empresas, as "manas parecidas", como também eram conhecidas concorreram à Função Pública tendo, novamente, a sorte as acolhido. Ficaram aprovadas e, mais uma vez, ficaram juntas no Departamento de Intercâmbio onde Ngeve se destacava com a sua entrega abnegada e criatividade, enquanto a irmã Njamba era mais dada à lide caseira e a pequenos negócios. O emprego para Njamba era apenas uma forma de não se distanciar da irmã e uma questão de estatuto social.

- Mulher que trabalha tem outra respeitabilidade no bairro e mesmo os cavalheiros que se atrevam a perder vergonha, na hora de desfilar a prosa, pensam duas a três vezes . - Dizia-se no bairro das Acácias onde residiam. Isso envaidecia as manas e outras jovens da urbanidade e fazia com que Njamba seguisse as pegadas de Ngeve que, por sua vez, coleccionava distinção atrás de distinção por causa do seu inconformismo com o status quo e a sua capacidade inventiva. Em termos de resultados práticos, Ngeve era das que mais produziam e estava sempre a inovar nos procedimentos, procurando poupar desperdício de tempo e material.

- O cérebro é a mais útil das ferramentas de trabalho do homem e não pode ser aposentado antes da morte. - Recitava incansavelmente Ngeve.

 Essa sua entrega e prontidão, que contagiava o resto da equipa e a liderança, faziam dela uma mascote. As suas ausências eram rapidamente percebidas até pela alta hierarquia da organização. Não pelo seu brilho corporal que, embora dotado de um arranjo escultural, tinha uma exposição situada na penumbra. Era pelo seu bem fazer e sempre com alegria no rosto, mesmo quando a tarefa fosse penosa.

Njamba era diferente. Mais vistosa e mais exposta à luz e aos megafones do que à actividade trabalhista. Se faltasse, ninguém na equipa dava por ela. Porém, quando fosse o inverso, se por uma razão bem ponderada Ngeve se ausentasse, Njamba era bombardeada com a pergunta "que se passou com a sua mana do sorriso aberto?" a quem disfarçadamente a liderança mostrava empatia e saudades.

- Mas nós somos gémeas verdadeiras e vocês apenas se lembram dela? - Reclamou certa vez meio aborrecida, depois de ter gozado férias sem que ninguém tivesse sentido a sua falta.

Pascoalina, uma idosa já reformada que havia sido recontratada para formar os novos agentes administrativos e contribuir para a  moralização e comprometimento dos funcionários públicos daquele Ministério, puxou da sua experiência e sabedoria para uma lição de vida que Njamba afirma jamais se esquecerá. E a anciã, nos seus sessenta e cinco anos, começou assim:

- Filha, beleza acaba. Olha pra mim e diz se encontras nesses retalhos um corpo de miss? Já fui, entretanto, miss distrito, miss província ultramarina e primeira dama do concurso metropolitano no tempo doutra senhora. A Única faixa de miss que não se desfez com o tempo foi o meu empenho e responsabilidade profissional. É isso que motivou a minha recontratação quando já estava a cuidar dos netinhos e dos reumatismos. Queres ser bem lembrada e valorizada, filha? Trabalha!  - Recomendou Pascoalina.

A anciã fez pausa para buscar outro exemplo e prosseguiu:

- Nos tempos em que tínhamos a vossa idade, trabalho de escritório era maioritariamente para homens, as mulheres eram poucas, pois éramos mais direccionadas para donas de casa. É isso que você anseia? É para isso que queimaste pestanas na faculdade? Olha, Njamba, o patrão apenas se lembra de quem faz falta. Um dia, e não falta muito, a Administração Pública será gerida como são geridas as empresas. Estará ficada para os resultados e não mais para as simples presenças físicas e desfiles de meninas de cintura fina. Aí é que se verá quem merecerá ficar e quem deverá ser mandado para casa cuidar da roupa e da loiça. - Explicou a instrutora.

Njamba acompanhava atenta a explanação de Pascoalina que pausava apenas para regar os pulmões com  ar puro.

Ngeve, a gémea de Njamba, também apelidada de génia, estava em missão de serviço no exterior do país.

Pedagógica, dona Pascoalina prosseguiu:

- Queres marcar teus colegas e teus chefes para toda a vida, filha? Trabalha! Inova. Pensa todos os dias em coisas novas ou em como simplificar as tarefas, tornando os procedimentos menos burocráticos e menos dispendiosos em termos de tempo e de custos.

Do simples abanar da cabeça, em gesto de aprovação de tudo quanto ouvia, Njamba passou à anotação na sua agenda.

- Obrigada, 'vó' pelos conselhos. Reconheço que não tenho estado ao nível da Ngeve e compreendo hoje por que perguntam por ela quando não vem e por que razão de mim quase ninguém se lembra quando falto.- Confirmou Njamba.

- Pois minha filha, rematou Dona Pascoalina, apenas os que fazem falta são lembrados. E não te esqueças que todos os patrões, quer sejam privados ou estatais, são da "mesma escola". Se se apercebem que você não faz diferença mandam-te para casa na primeira oportunidade ou necessidade que tiverem de reduzir pessoal. Pensa nisso, filha. O país tem rumo e os tempos são de mudança de comportamento e mais atitude! - Concluiu Pascoalina sempre pedagógica e com ar maternal.

A conversa já ia longa quando o director chamou a equipa para comunicar que da avaliação de desempenho em curso resultaria na dispensa e transferência para unidades periféricas de agentes e funcionários que ainda não tinham encarnado a nova filosofia de trabalho. Njamba foi para casa pensativa ao passo que Pascoalina continuou as suas preleções, desta vez com Weza, um jovem que apresentava dificuldades de integração em equipas composta por diferentes grupos etários.
NOTA: PUBLICADO A 02.10.2015 NO SEMANÁRIO ANGOLENSE

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

À VOLTA DA LAGOA

Dizem que se pesca na lagoa pluvial que fica em Viana, entre a Avenida Deolinda Rodrigues e as traseiras da Comarca. Contam-se estórias sobre "abundantes fainas" diurnas e nocturnas e capturas de jingwingi de quilos abastados.

Eu, o narrador, embora viva ao pé da lagoa, não vi ainda, não. É só mesmo conversa de ouvir dizer e ver os anandenge a andar de cima para baixo, ora com canas de pesca e minhoca, ora ximbikando, ora com as redes de apanhar peixinhos que vêm cá acima apanhar água com um pouco ainda de oxigênio, por causa do lixo e podridão que as vizinhas cavalonas põem, dias sem fim, no lago que lhes cerca as mabata.

Verdade verdadeira, peixe grande não vi ainda, não senhor. Mas peixe pequeno, piquinino, de pôr no aquário, que os brancos e os sô doutore "lhe chamam cuele" alevinos, esse, pessoa não precisa ter olho de águia. Vê sem precisar de mawanas.

Até mesmo a vizinha Rosa, uma cavelhota já de bengala, faz muitos anos e que diz não vê mais nem vulto, certo dia se abeirou da lagoa na companhia de um mona lá do quintal de Sá Josefa, sua filha do meio, e gritou:

- Buereré de "scapexinho ansim"?!

As filhas, amigas das filhas, as comadres do bairro, as vizinhas e tudo na estupefação.

- Ená! Cega de muito tempo já viu peixinho? Deve ser madiwanu!

- Madiwanu de quê, "vucês" num sabem que quando pessoa num vê o que sai nos olhos se acrescenta "nosovidos"? Stou ouvir bué de filho de peixe andar por cima da água, no meio das folhas daquela árvore de "tambarino" que vizinho Lúcio trouxe da Luanda.

As filhas, noras e tudo de novo bwamadas.

- Como é que mamã vê a árvore e as folhas na água se nem vizinho Lúcio a mamã conhece? - Perguntaram de novo, tipo já é coro na igreja metodista.

- "Intão" pessoa cega já não tem boca? Não tem ouvidos? Não tem contadores? - defendeu-se. Tenho môs netos "qui minformam" tudo que se passa no bairro. Abrem só rádio se todas as makas de Luanda eu não sei. Esses ouvidos é tipo gravador do tempo colonial. O que entra já não sai. Até as cor, os cheiros, tudo eu grava aqui na cabeça. Certos mizangala, aqueles que andam fumar kangonya ali na esquina do Dialó não assaram bagre grande que apanharam mesmo aqui na cacimba quando iam buscar lyamba que andam a guardar naquela ilhota da lagoa?

- Mas mamã então, uma kifofu alheia, quem anda te fwefwenhar essas makas todas do bairro? - Perguntou Mingota dya Kazela, filha mais velha que mora no Dondo e que veio "disminuir" na saudade.

- Dya Kazela (o mesmo que Branquinha em Kimbundu), eu sei tudo. Tudo mesmo passa de boca em boca na frente da ceguinha e se esquecem que "kaveia" tem mbora ouvido dela. Até se polícia desse tempo fosse educada e bem preparada não precisava se dar massada para apanhar os malandros. Os planos deles de "assarto", divisão de dinheiro, quem guarda as armas, os comparsas, as kangonya e tudo, falam mesmo na frente da velhota. Eu sei tudo. Me traz só a rádio e a televisão aqui para me perguntarem sobre as coisa que "ándamos" passar cuele, dia-a-dia na cidade, se Viana não vai pegar fogo? Pega fogo porque eu sei de tudo! - Concluiu a idosa, sem meias palavras.

 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

DE REGRESSO AO RANGEL


DE REGRESSO AO RA

Depois de muitos anos ausentes do bairro de nascença e ou criação, a maralha voltou ao Rangel. Foi um reencontro espontâneo, sem que houvesse combina ou telefonemas. Aliás, o tempo encarregou-se de os reduzir de amigos a meros conhecidos. Já ninguém sabia onde vivia o antigo vizinho e amigo dos trumunos de rua. Já ninguém sabia da família do outro, nem possuía o número de telefone do colega das caminhadas ao Ngola Mbandi, Kilwanji, Makarenko, Comercial ou Kanini. Chegaram de distintos caminhos e pronto. Encontraram os velhos que teimam em não sair do bairro e os jovens que no olhar da maralha emigrada "estagnaram no espaço e no tempo".

- O Rangel já era. Já deu o que devia dar. Produziu homens, cérebros iluminados e iluminantes, mas acabou. Sem reformas profundas, sem drenagem das águas pluviais e domésticas, o Rangel virou um lamaçal que só não chega à pocilga porque desapareceram os ngulu que a deviam chafurdar. - Desabafou, desgostoso, o ancião Zeca Martins que costuma fazer leituras correctas da situação, embora ele também, tal como outros da sua idade septuagenária não abdique de seu bairro de uvalukilu. Por isso mesmo é que no dizer do tio Zecave, para os do bairro, “levar um turismo novo ao Rangel, nesse tempo de descargas de São Pedro, seria transforma-lo em ngulu na pocilga”.

- Acabou-se o RA. – Atirou o velho com um misto de desgosto.

A maralha visitante é gente com mais de meia-idade vivida nas ruas do então município do Rangel (e suas comunas do Rangel, Marçal e Zangado, e Nelito Soares). Mesmo à distância, nvão procurando saber como está o velho fulano, a velha beltrana, a rua ípsilon, etc. Uma vez na banda, a maralha entendeu comemorar o momento e, por isso, comprou vinho para os papás, gasosas e sumos para as mamãs e birras para os demais. A habitual kisângwa da tia Chica não faltou e foi mesmo o primeiro líquido a ser consumido. No Rangel impera ainda o hábito antigo de vida comunitária e as pessoas foram participando da festa, também espontânea, à medida que iam chegando. Uns contribuindo com angolares e outros simplesmente com a boca.

No Rangel, os bons papás, aqueles que aconselham para bons caminhos, são benquistos por todos. O mesmo diz-se dos filhos. Os bem comportados também são filhos da comunidade. Apenas os malandros são censurados. As mamãs, essas, espalham a sua bondade e caridade até para os trapaceiros.

- O que saiu da barriga não se nega. - Dizem as mães rangelistas em socorro. Se calhar foi esse mimo que fez alguns encalharem.

O México, os Sêngulas, o Maxinde, o Maria das Crequenhas e etc. estão e continuam aí, mesmo em ruinas. O kimbombo ainda sai por encomenda e o kapuka é mais quantitativo do que a birra. A kangonha brota nos quintais apertados do do México ou nos vasos das plantas sedentas de água abundante nas ruas. Chovia bebedeira, música de intervenção, conversa nostálgica e planos de requalificação. E o Rangel ainda vivia um dos seus belos dias.
Pois é. A maralha, os ditos iluminados ou retornados visitantes tanto falavam sobre os passos que tinham dado em suas vidas como da "necessidade ingente" daqueles que estão mais avançados fazerem algo para fazer do RA um bairro habitável com o mínimo de sanidade e tranquilidade.
Uns malambavam também os seus recuos na vida, como o Joaquim da Brigada que construiu um prédio na zona de passagem de água, vendo tudo ser ofertado ao grande kalunga-lwiji. Mas os que empurravam barrigas para frete e tripulavam anfíbios eram a maioria e eram esses que comandavam as conversas que se parcelavam em função da condição financeira, planos para o Rangel e visão histórico-social e cultural sobre o bairro-município.
- Temos de fazer o que a Vila Nova de Viana está a beneficiar. É um bairro novo e, graças a visão dos dirigentes daquele município que querem alargar o casco urbano, estão a cavar todas as ruas, enterrar tubos enormes para escoarem as águas domésticas e pluviais que são canalizadas para uma lagoa criada para o efeito. Nós até estamos bem servidos pelo declive. - Explicou Man-Tony para prosseguir:

- Vejamos as nossas vantagens para a instalação de drenagem sem grandes engenharias topográficas: a rua que acompanha a linha férrea já tem inclinação e morre na vala das cervejeiras. As partes do Marçal, Zangado, Terra Nova, Bês e Cês despejam as águas na vala Senado da Câmara. Já viram? Temos de passar as ideias a mais rangeliatas que estão lá onde se contam e distribuem as empreitadas e as notas.

- Sim, Man-Tony. Boa ideia. - Aplaudiu Pedrito, um jovem que ainda não saiu do RA por ser filho kasula, mas já não muito satisfeito com a lástima em que se tornou o bairro. É preciso que os kotas façam algo para o bairro que está a morrer. Alguns kotas, hoje, mesmo para deixar dinheiro ou medicamentos para os idosos que não querem ir viver nos apartamentos com os filhos e netos marcam encontro no Triângulo ou nos Congoleses. Já ninguém que partir o carro no bairro. Isso tem de acabar, kota. – Disse Pedrito

- É isso, meu kandenge, retomou António João, o Man-Tony para os do RA. Mas para isso acabar temos que estar unidos, cada um fazendo a sua parte, por mais ínfima que seja. Criarmos movimentos cívicos que exerçam pressão positiva. Não estou a falar de partidos arruaceiros que destroem monumentos como tivemos num passado recente. Precisamos de ideias que ajudem os governantes a tomarem as melhores medidas em prol do município ou do distrito. - Discursou Man-Tony que já tinha o aval de quase todos para líder da maralha em visita ao bairro da infância e juventude.

Os "estagnados" do bairro ouviam e consentiam calados. Dos lamentos sobre as águas podridas não passavam. Deliciavam-se com os verbos eruditos e do que lhes era posto à mesa periférica que para eles era mais do que uma festança. Tinham aposentado, naquele dia, o kimbombo e o kaporroto do dia-a-dia dos becos.

- Kotas, têm de ver também a questão dos becos que estão a desaparecer. Aliás, já não há mesmo. Você a correr se põe num beco, na bisga, e quando assusta estás num portão ou mesmo já num quintal sem saída. Assim, se a rusga voltar, vamos "esquinar" como? - Afiançou Man-Gasparito, único dos residentes que ousou em interromper a conversa dos "iluminados" da diáspora.

- Sim, filho Gaspar, os becos já ajudaram muito os vossos irmãos para não serem "kangados" para a tropa. Isso desde o tempo das prisões do Poeira. Também nos ajudaram muito a fazer corta-mato para ir à baixa trabalhar. A pessoa entrava num beco e só cruzava a rua para apanhado outro beco. Era assim até chegar ao Zé Pirão onde começava a cidade dos brancos. Hoje, vejo que já não há necessidade de haver becos que só encobertam os "gregos" e reproduzem dibengos e baratas doentias. - Explicou o ancião Branda, ganhando estrondosas salvas de palmas.

- Pois é. Ouviste Gaspar? Precisamos de ruas e ruelas em que possam circular carros. Um bairro em que cada um possa levar o seu popó até ao quintal, sem necessidade de deixa-lo distante. Queremos um Rangel urbanizado, sem becos mas com ruas largas e sem água estagnada. - Emendou Man-Miguel, outro rangelista de sucesso, emprestado ao décimo andar do Kilamba.

Entre pinchos, birras, gasosas e kisângwa (também não faltaram as sempre decorativas kapurenquanto do bairro que iam aproveitando uns goles e uns trocados), a maralha concordou em nomear o velho Branda, da rua Sangue-e-Fúria, para os passar a acolher uma vez por cada mês.

- Vamos realizar os nossos encontros mensais em casa do Papá. Não se preocupe nosso pai. Vamos providenciar toda a logística necessária. Queremos apenas trocar ideias e ver se o bairro avança. - Acalmou o líder da maralha.

Quando bateram em retirada já os galos, os poucos que ainda não tinham sido roubados, se preparavam para cantar.


Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 16.05.2015

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

PREFÁCIO ÀS "CONVULSÕES DO MEU PENSAR"


PREFÁCIO

Nesta fase delicada do uso da Língua que nos faz Nação, em que boa parte da nossa juventude vive os dilemas do “Enxaguar ou Ensaboar”; do “através ou por causa” e ainda do “lhe em vez de o-a” (vou lhe visitar ou vou visita-lo?), fiquei positivamente surpreendido ao folhear os textos versificados do Edy Lobo. Parabéns pela forma cuidada com que usas o nosso principal veículo de comunicação e de literacia.

À semelhança dos caminhos que me levaram ao meu padrinho literário, Tazuary Nkeita, Edy e eu conhecemo-nos pela via (através) da rede social Face Book, tendo me sido encaminhado pela amiga comum Luísa Rogério com quem trilho léguas profissionais.

Surpreendeu-me a humildade de um jovem desse tempo em que mais se grita do que se conversa e mais se conjuga o verbo ter do que o ser (valores). Para além de imaginativo e laborioso (a arte da escrita remete o executor à inspiração e transpiração), Edy Lobo é também um bom conversador, recheado de maneiras e polimento. E é também isso o que o leitor encontrará na presente obra: puros diálogos versificados.

Teu amor não me é suficiente...Teu amor não me chega! | Ao mar quero pedir razões para uma só mulher amar. (In: UM SÓ AMOR NÃO ME CHEGA).

É, de facto, o amor, nas suas distintas dimensões, que Edy Lobo apregoa em todas as páginas deste livro.

Para mim, é uma das características da poesia dizer grandes coisas com palavras poucas. E, recriando Arlindo Barbeitos, diria mais. O poeta não grita mas também não emudece perante situações que do quotidiano que despertem o seu olhar crítico.

Nessas “Convulsões do pensamento”, Edy Lobo procura trazer-nos ideias sobre as pessoas, a vida e o amor. O leitor aperceber-se-á disso nas leituras que permitem o texto poético.

À guisa de isco e cônscio da intangibilidade do texto poético, dada a sua acentuada polissemia, convido-o à leitura do poema-título “Nas convulsões do meu pensar”, (pág. __) que confirma as preocupações do autor com o homem, enquanto ser social, gregário e racional, doptado de valores universais que se deviam manter invioláveis.

Edy Lobo lança-nos, nessa sua obra primeira, um alerta para o despertar do sono e da apatia, ante o surgimento de novos fenómenos que ensombram a nossa (co)existência. E, o nosso poeta “convulsiona” ao se debater com “Amores económicos (que) gritam em qualquer esquina|Ventos corruptos (que) incentivam a mais inocente menina| Adultos logros despidos totalmente de juízo...

Lida proposta em presença, encontro em Edy Lobo uma picada aberta (que como qualquer arte e artista deverá ser trabalhada) para uma longa jornada literária. Muito mais reterá, para além destas humildes palavras, depois de percorrer a totalidade das páginas que fazem esse livro, missão para a qual lhe endosso o convite.

Ao terminar, consolo-me com a riqueza da sabedoria bantu que nos orienta: O caminho faz-se caminhando.

Segue o teu caminho, poeta Edy Lobo!

Soberano Canhanga, Luanda, 18 de Janeiro de 2016.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

MULONDOLO PARA DOR DE COLUNA E "OUTRASCOISA" DOS MAIS VELHOS!

Viajávamos da capital ao interior, minha terra natal. Ao longo do trajecto de 270 Km, revezados entre pavimento selado e buracos que ameaçam os automóveis, é Man Prole, o músico do Kwanza-Sul, quem nos faz companhia com as suas  melhores quetas de todos os tempos.
- Papá, ele está a cantar o quê? - Pergunta o filho derradeiro, algo aborrecido. A queta que me leva aos anos oitenta do século finado nada lhe diz. Pior ainda porque cantada em Kimbundu, língua que só ouve soar quando é visitado ou visita a avó que intercala sempre expressões lusitanas e o seu Kimbundu materno.
- Ele está a cantar que a mãe está a pensar e a chorar o filho desaparecido na tropa. - Traduzi para o infante.
- Papá, na tropa é longe?-  Voltou a indagar o petiz, agora interessado na explicação.
- A tropa não é um lugar. Tropa é o militar. No passado todos os jovens rapazes eram obrigados a ser tropa e muitos morriam na guerra.
- Guerra é o que papá? É como no filme que fazem tiros?
- Sim, filho. Faziam disparos mas eram de verdade e as pessoas morriam mesmo. Morreu muita gente longe de casa e sem que os familiares tomassem conhecimento do óbito. Havia pessoas que eram choradas devido a falta de notícias mas que reapareciam. Quando assim sucedesse, as famílias faziam festa grande. Outros jovens idos ao serviço militar eram esperados e nunca mais vinham. Mas as mães nunca desistiam de procurar por notícias dos filhos ausentes ou de lamentar. É isso que Man Prole canta.
- E o papá também foi tropa como o meu padrinho?
- Sim, filho. Fui tropa mas estive na rectaguarda, a guardar a vila de Kalulu enquanto os tropas mais velhos iam fazer barreira à frente.
- E o papá andava de traz como o carro quando anda de rectaguarda? É por isso é que a casa da avó ficou muito distante, n´é papá?
A conversa entre pai e filho ia animada. O volume da música tinha sido baixado ao máximo. Com o gotejar furioso da chuva só se ouvia mesmo um ruído imperceptível o que parecia agradar o infante que questionava com mestria.
- Papá o meu padrinho me disse que a guerra já acabou. É verdade, papá?
- Sim, filho. Felizmente, já não há guerra. Por isso é que viemos de carro ver a avó e agora vamos visitar a tia. Antes não era possível andar de carro em segurança porque os que estavam nas matas queimavam os carros.
- Eles, assim, eram bandidos, não é papá?
- Sim. Digamos que sim. Era assim que os tratávamos mas agora já são nossos amigos. Paz é perdoar os erros do passado e fazer coisas novas em comum.
O rapaz, seis anos ainda, pareceu ter percebido a explanação sobre os lamentos reproduzidos pelo músico Man Prole: a guerra, as mortes, a paz e a reconciliação e reconstrução nacional. Porém, antes mesmo que adormecesse, o arrastar da blindagem num buraco que se candidatava a cratera, junto à ponte do Longa (EN120), fê-lo despertar e voltar às perguntas.
- O papá disse que guerra já acabou. E porquê que o carro se arrastou?
Fiquei segundos sem responder. Enquanto endireitava o que lhe dizer, preocupei-me em encontrar um sitio seguro, já no lado da Quibala, que não prejudicasse a circulação dos outros automobilistas e parei para ver eventuais danos na viatura e esticar a coluna há muito afectada por uma lombalgia. O rapaz aproveitou desfazer-se da ureia e apreciar outros meninos, alguns de sua idade, que empunhavam umas raízes com um cheiro intenso e seiva branca.
- Papá, olha. Os meninos estão a mostrar ao papá uns paus. É quê?
Antes mesmo que ensaiasse a resposta, um coetâneo do Arlindo passou à frente e atirou:
- É mulondolo. É "midicamento" para dor de coluna e "outrascoisa" dos mais velhos. Tio, compra. É barato e se quiser pode provar na raiz ou no charope (raízes demolhadas num frasco).
Katerça, assim nomeado por nascer numa terça Luarenta, conforme narrou, frequentou a primeira classe na escola de Kikole. Tem nove anos, apesar de aparentar menos. "Me ferraram na altura", explicou-se quando o informei que o meu "kasule" tinha apenas seis. Contou que vende (raízes de) mulondolo (ao que dizem com propriedades analgésicas e afrodisíacas) para juntar dinheiro para a roupa e os cadernos que vai usar no próximo ano lectivo.
- Aqui é assim. Os mais velhos vão redar (pescar com tarrafa) e vendem o peixe que sobra para ter dinheiro. Nós crianças, assim que o rio (Longa) está muito cheio, para não nos arrastar na água, cavamos mulondolo e vendemos "nos" tios que vão a Luanda ou no Huambo. Outros, conforme o tio está a ver, ficam a tapar os buracos na estrada e os motoristas também lhes oferecem dinheiro. - Explicou o petiz, sem gaguejar e acrescentando: se o tio não gosta de mulondolo pode comprar milho fervido "na" minha mana que está ali, na sombra.
Abri a porta moedas da viatura e descobri uma nota de valor modesto que estiquei ao bracito do rapaz.
- Toma Katerça. É para comprar mesmo um caderno. Espero que chegue. É uma pena o tio não ter mais...
- Obrigado tio. Deus te ajude e te faça vir mais vezes aqui. E mulondolo vai deixar? Não quer um "kabucado" de favor? – Retribuiu o rapaz.
Agradeci a oferta desinteressada do Katerça e aconselhei-o que estudasse sempre, não se esquecendo, todos os dias, de fazer os exercícios do livro de matemática, para além de exercitar a leitura.
Na minha terra há um adágio que reza “kayete lya sapo kayoto”! (o que não se exemplifica não convence ou não anima!). Para que ficasse claro, contei-lhe um pouco da minha experiência.
- O tio, quando era pequeno, também vendeu, ajudando a mãe. Hoje tenho emprego graças à escola, exemplifiquei.
Katerça agradeceu e eu parti, debaixo dum teimoso chuvisco, quase a verter a terceira lágrima.
Os instantes seguintes foram novamente do Arlindo que meteu a limpo as dúvidas sobre mulondolo e aquela estória contada ao menino Katerça sobre as vendas do tio enquanto miúdo.
-O papá vendeu o quê? O papá fez o quê com o dinheiro? – Foi um perguntar sucessivo a que se seguiram respostas que já não ouviu. Embalou com os batimentos da chuva sobre o tejadilho da viatura e quando despertou já tínhamos chegado à casa da tia Júlia.