domingo, 20 de março de 2016

JUST LOOKING ON JOHANESBURG


Mesmo com o termómetro a apontar nove graus centígrados, de um inverno Julinho da África do Sul, a moça vinha xuxuada em direcção ao Nelson Mandela Square, local onde convergem ruas, crenças e nacionalidades para as compras do dia-a-dia para os joaneburguenses e a indispensãvel mwamba e sovenirs para os visitantes. Tita (nome que decidi atribuir-lhe) ia de mãos dadas com o seu homem de companhia, marchando pelo passeio rigorosamente asseado da rua que se estende dde longe ao centro de convergência política e social. Bob, o seu companheiro, treinava os dentes com umas baumilhas compçradas metros atrás, enquanto Tita, vaidosamente vestida e com os postiços a encobrirem-lhe os ombros, terminava a degustação de uma banana comprada na feira de artesanato.
O collant xuxuado que lhe visitava o diafragma e a marcar os desenhos apelativos e as letras esculpidas no seu corpo juvenil, a lembrarem uma marca automóvel alemã, fazia adivinhar uma jovem com o miolo ainda em estruturação ou uma alma perdida.
- Deve ser uma angolana ou uma southafrican alienada. - Disse para os meus botões. E não tardou para que ela confirmasse o meu pensamento pessimista, sem mesmo que fosse necessário abrir a boca.

Como remoinho de vento que se organiza para, em força, atacar e derrubar tudo que lhe faça barreira, a jovem começou a rodopiar sobre si mesma. Desfez-se do damo com quem caminhava de dedos quase cafricados e abrandou a marcha. Olhou umas tantas vezes à direita  e outras tantas à esquerda. Virou a locomotiva para atrás e explorou tudo o que se aporesentava a frente dela. No meu imaginário rural, Tita fez-me lembrar uma galinha pronta a ovar mas que se certifica do lugar em que alojará a génese da nova vida.
- Será que a gostosa quer urinar ou quê? – Voltaram a cochicharam os meus atentos botões.

A rua estava copiosamente limpa e os jardins estavam molhados de rega. Na mão da "princesa" estavam em sobra as cascas da "benguela" e não se via nos metros dianteiros um contentor ou uma papeleira que a ajudassem a descarta-se do testemunho. Exactamente no momento em que cruzávamos, ouvi pronunciar um "excuse me" dirigido ao acompanhante que se manteve hirto, como quem esperava por uma desgraça.
- A mboa vai mesmo urinar na rua ou fazer coisa pior? - Voltou a questionar o meu íntimo inquisidor, enquanto Bob, o acompanhante dela, magicava, com certeza, outras ideias.
Passado a pente fino, Bob mais se parecia um recrutador de pérolas ou daqueles que só acompanham a dama para entregar a prenda a "quem de poder".
Eu seguia em sentido inverso ao deles, quase pregado à parede longitudinal. A "gostosa", como se achava que era, abeirou-se de mim, metendo o meu já hipertenso coração em cavalgadas.
- Será prenúncio de assalto ou pretensa procura de assunto que em tribunal possa resultar em acusação de assédio? Dizem que por essas terras não  pode olhar duas vezes à mulher alheia, mesmo que esteja em exposição. – Cogitei.

De seguida, cerrei todos os dedos e desviei o olhar, seguindo-a apenas de esguelha. E foi que a barona, fingindo um gesto de saudação a mim, jogou a casca da banana que tinha numa das mãos ao canteiro protegido por duas paredes habitacionais.
Movido pelo espirito organizador e higienicista que de mim se acaparou, ainda soltei um "please, don't do it", mas ela, tal rio que se afoga no mar, coberto de razão, não foi na minha conversa. Não recuou da acção e prosseguiu o seu caminho, preenchendo a mão vazia do seu amo que estava quieto e inseguro do que viria a praticar a sua dama.

Suspirei de alívio, pois não era assalto nem algo que me envolveria em sarilhos gratuitos, mas não tardou para que uma outra interogação, seguida de exclamação, me invadisse o pensamento.
- Ou Tita é mwangolê ou nem tudo são rosas na nação do arco-iris! Aliás, vi miúdas do ANC que nasceram em Angola e ela podia ter uns vinte e coinco anitos... - Ajuntei. Também me lembrei que mesmo na possibilidade do ensino e da  educação familiar produzirem só rosas ou muitas rosas por essas terras, a flor e os espinhos fazem a dupla numa roseira e que quem recebe a flor também se apodera de uma porção de esporões.
Segui o meu caminho até novamente à exposição de arte e artesanato, organizada propositadamente para atender com gifts das terras de Mandela os diplomatas e outros conferencistas internacionais que fizeram do Sundton Conference Center um areópago dos países membros da União Africana, com destaque aos então Países da Linha da Frente que procuravam posições concertadas no âmbito regional.

Na feira, denunciado pelo meu curto shakespear e vestimentas sociais, fui quase forçado a declarar a todos que me queriam vender qualquer coisa um "im just looking". Até a tradução de friend para amigo os mais "vivos" buscaram do google translator para me cativar e trocar os meus parcos rands por umas lembranças duradouras. Não é que alguém conseguiu mesmo? Uma pipa para tabaco que nunca fumo e duas porta-jóias para a "comandante geral" do kubico e sua primogénita fizeram parte do meu espólio de recordações da rainbow nation.
Já no hotel, seria a Sra. da fiscalização dos quartos a me atazanar o juízo com a sua dicção estranha ao meu pobre inglês.

- Can you write what you are saing? - Defendi-me, meio aborrecido, pois me estava a prejudicar a crónica do dia.

E ela, diligentemente, e com letra de uma doutora  emprestada a serviços menores, redigiu: do you need anything in the room?

- Only water. – Respondi. Apenas água que, apesar da sede que me apoquentava a garganta em pleno dia de friorento, nunca me foi servida. Terá sido um código? Se foi, confesso que apanhei do ar. Há já muito tempo que não navego nessas ondas de "mantas que respiram quentura com ajuda de George Washigton debaixo do travesseiro".

Recolhi-me e fiz do PersonalComputer o melhor tradutor das minhas experiências e vivências.
- Can I help you?

- Im just looking!

quinta-feira, 10 de março de 2016

A PROCURA DE NOVAS OPORTUNIDADES


Fazia tempo que a sua vida era matar kasumunas enquanto a mulher treinava atletismo nas ruas da zunga com os fiscais administrativos. Embora não os lesse, Ndinha comprava sempre, no fim da sua jornada, um exemplar do jornal diário que oferecia ao marido que viajava de imediato as paginas de necrologia e anúncios sobre empregos.
No dia em que se anunciou a possibilidade de se aumentar o número de províncias e municípios, a cidade toda, as rádios, jornais e televisões não falaram de outra coisa senão a possibilidade de os maridos terem mais empregos e as senhoras da zunga mais espaço e territórios para vender. Ndinha que estava cansada das corridas nas ruas da Grande Capital já tinha esboçado o seu plano e cochichou mesmo às amigas que não perderia a oportunidade de se mudar daquela cidade, caso o assunto fosse levado a sério pelas instâncias superiores e pelo marido que matava kasumunas há já três anos, desde a desmobilização da vida kwemba.
Posta em casa, antes mesmo de contar as receitas do dia, Ndinha passou o jornal a Jota que consertava o fofandó que parara de gritar a sua dor de tanto uso por falta da energia da rede pública.
Pelos fundos do quintal, onde Jota se encontrava, não tardou surgir o grito de alegria:
- Ndinha, minha mboa, amarra o cabrito e as galinhas que estão na capoeira. Vamos procurar chefe Kapwete.
- Quem é esse Kapwete, Jota?
- Mulher, não esquenta. É irmão do chefe Kamundanda. Vamos. Há novos cargos na Libaju. Não ouviste que país vai aumentar? Temos de nos apressar se não vamos “lerapiar”.
- Mas, cargo então aonde, Jota. Coisas que explicas nunca só ficam esclarecidas. -Resmungou Ndinha.
- Vamos. Prepara as crianças e podes também avisar as tuas colegas que queiram singrar longe de Luanda. Vão criar 3 novas províncias, 75 municípios e sei lá quantas comunas. Já imaginaste quantos vão subir? É vida!
- Jota, é mesmo já você que vai subir?- Tentou contrariar Ndinha, na sua manina de “só para contrariar”.
- Eu não porquê? Eh? Não porquê?! Já não sou secretário executivo da Libaju? Aponta aí. “Se tenta” e oito novas circunscrições, vezes 17 comissários eleitorais, sem contar os departamentos e secções, administradores comunais, os “lima-unha”, os “joga-cartas de baralho” e os “leva-mala” do boss. Três províncias, vezes trinta directores, três vice, o staff e dependentes, os assessores… Jota fez pausa para levar ar fresco ao peito que reclamava água fria, devido à ressaca do dia anterior. E prosseguiu: “se tenta” e cinco administradores municipais e seus adjuntos, mais o staff das repartições... Dizem que até os deputados vão subir para 135. Vamos, não me faz perder mais tempo e oportunidade. Temos que levar o cabrito e as galinhas ao chefe Kapwete que está a fazer a lista. O período de recrutamento é curto e temos que aproveitar agora que os tubarões estão ainda na distração das festas e a engordarem com os cabazes. Vamos!
- É verdade mô Jota, mô amori. É mesmo muita vaga, Jojó. Vou também avisar a mana Miquilina, minha chefa-adjunta na Anazunga. Ela também estudou até à quarta classe do tempo de Agostinho Neto. Sabe ler, escrever e fazer contas de dinheiro. Ninguém lhe aldraba na tabuada!
- Sim dama. É muita vaga mas também muitos dos môs avilos ainda sem função, vivendo de “mixas” ou das damas como tu. Essa é a oportunidade da nossa salvação.- Respondeu Jota.
- Sim amor. Haja o que hajar, dessa vez ninguém mais nos kasumbula. Vamos, antes que as vagas dos municípios acabem. Nas províncias assim já se tombwelaram, mas nos municípios e comunas ainda deve sobrar. – Respondeu Ndinha com o kasule às costas, o filho mais velho agarrado à saia e puxando o cabrito pela corda. A galinha, o pato e um casal de pombos estavam na quinda que seria ofertada ao boss das listas.
- Vamos aproveitar o período festivo de natal e ano como motivo da oferta. Assim, o chefe Kapwete não alega “motivos de ordem moral” para recusar as ofertas em troca de umas vagas num dos novos municípios ou comunas que estão na forja.
- Vamos Mô Jota, homem vijú.- Respondeu Ndinha entusiasmada.
A família partiu, deixando para trás a casa arrendada na Fubu, e as dívidas das birras por saldar. Se vai dar certo ou errado ainda ninguém sabe porque o tal anúncio no jornal não passou de uma antecipação do dia das mentiras, 01 de Abril. Como não se despediram dos vizinhos nem levaram a pouca mobília, que Ndinha foi juntando com o dinheiro da zunga, ainda podem voltar a casa na maior tranquilidade. Há porém um mujimbo que corre e que aumenta a expectativa do casal.

Obs: texto publicado no Semanário Angolense de 08.08.2015
 

terça-feira, 1 de março de 2016

PROCURANDO PELO FUNJE QUE ME CRIOU


Um gajo na terra dos outros, mesmo que saiba falar a língua deles, sofre. Sofre por desconhecer os nomes dos “jangutos”, por desconfiança que se apercebam que és estrangeiro e te armarem uma arapuca, sofre porque viver uma “vida mulata” de curta duração, sofre com o frio ou calor se calha em viajar num período de clima inverso ao deixado na banda, sofre até com a falta de buracos, lixo nas estradas e canos de água rebentados a jorrarem a toa por tudo quanto é canto. Há países em que você vive bem mas sofre com a saudade das coisas boas e más da “matherland”. Passou-se comigo nessa curta escala pela terra do vovô Mandela.

Cansado de peixes, frangos e carnes adocicados e ajindungados servidos nos restaurantes e nos aviões, fui procurar numa esquina próxima ao Sundton Conference Center, zona chique de JOBURG, algo que se parecesse aos nossos pitéus angolanos. Setenta e duas horas sem “funjar” é um record a que só me submeto quando estou mesmo “na estranja”. Em casa não. Lá é o funje, sejam quais forem os molhos, quem mais grita. Aliás, o nosso funje é patriota e revolucionário. Não foi ele que nos aguentou e ainda nos vai aguentando quando o arroz e maça da importação falhavam nas lojas? Por isso, onde quer que eu esteja tenho sempre uma estrofe do célebre poema de Agostinho Neto: “Ao nosso funje, havemos de voltar”!

Nas proximidades de Sundton Conference Center as ruas estavam apinhadas de polícias com carros blindados. Sozinho, naquela rua com magnatas que chegavam minuto a minuto e alguns acompanhados de batedores, senti-me perdido para ir ao Nelson Mandela Square e conseguir os Rands para reforçar os "cheiros à maneira" e procurar um pitéu de verdade.

Verdade se diga, cheguei à conclusão de que o angolano cheira bem e não é a toa que quase todas as “mboas” do Shoping me estavam a colar que nem mosca numa porcaria kimbombada.

- Hello, how are you. I have same thing nice for you. - A mboa, bué ancuda, fez um sorriso interesseiro e começou já, ali mesmo, a me "aproximar" para ver se me kasumbulasse uns dodós, só que ela se enganou mbora com a cara da pessoa. Os dodós que ela queria me tramankaram ‘mbora com eles há três semanas...

- I can´t speak english. - Defendi-me, procurando afastá-la.

A mboa até não era tutu, tutu, quando comparadas com umas aí que conheço, mesmo na “Ngimbi”. Mas ela queria é o meu “kumbú” ou confirmar se eu era estrangeiro “bunfunfado” para mandar me tramakar, sei lá mais quê.

- I can help you with my Google translater sound. - Voltou a atacar, tentando encontrar alguma fraqueza do meu lado. Mas eu, um gajo viju, com trinta anos a viver na Ngimbi não fui na conversa e comecei a fazer ouvidos desinteressados.

- I have no money. - Voltei a defender-me e sondando já por onde sair voado. A kindoza tentou ainda contra-atacar-me com o "but you smell well and dress like a government in a conference". Se era verdade ou mentira é já com ela. O que fiz foi dar uma de às e zarpar dali. Era hora de ponta e o Shop começava a apinhar-se de gente. Já tinha dado umas tantas voltas e não tinha encontrado a casa de câmbio. Também não dava para bandeirar. Os mwadyes podiam ainda pensar que um gajo é “mbalu”. Desculpei-me com o "Sorry, I have to go, mum", ao que acedeu, embora relutante e procurando mais prosa. Bazei.

Mal cheguei à esteira rolante, um outro tipo, que me recordou os “enganadores” do finado Roque Santeiro, abordou-me empunhando uma pasta e um pequeno embrulho que tinha uns mambos tipo anel ou outras joias: "Please brother. I have something very nice foy You". - Disse ele, abrindo a sacola e retirando um pequeno embrulho avermelhado em que se supunha estar o tal "something very nice fou you". - Respondi-lhe com um soletrado "I can not understand you because I no speak english". O “manga” ainda tentou insistir, acompanhando-me até ao fim da escada, mas eu apanhei a outra e continuei a trepar o edifício, somente de abuso. O indivíduo regressaria ao piso inferior para domar outra possível vítima, normalmente estrangeira e desavisada.

- Vai rezar caçar noutra coutada mazé, pá! – Disse para mim mesmo.

Era já a minha quinta volta e no sobe e desce, ora caminhando sobre escadas outra indo na boleia do tapete que, afinal de contas, faz muita falta a quem esteja cansado, a procura do “changing post”. Abro um aparte para questionar por que as nossas poucas instituições com aquele meio de transporte entenderam aposenta-lo antes mesmo da maturidade.

Na tentativa derradeira, encontrei o "changing post" e lá consegui uns poucos “Mandelas” que me levariam a caçar a funjada ou um parente próximo do pitéu que me fez crescermos. E não é que encontrei mesmo uma funjada de carne assada? Até os pólices de JOBURG abandonaram os postos (ou aproveitaram a renda) e foram se lambuzar com as mãos no sítio em que os rastas e outros artesões realizavam a feira de artesanato para os "foreigners se desdolarizarem” e levarem estórias do país do arco-íris para a casa. Só não consegui é fotografar os magalas a pitarem, sem vergonha e nem receio (como acontece por cá, entre as nossas gentes que se faz passar por europeus quando nunca sequer passaram o estreito de Gibraltar), a sua "papa and beef". E o canal entre o prato e a boca eram mesmo os dedos, sem kijila!

- How much this food? - Indaguei estrategicamente na ignorância do nome real do “janguto”. Porém, como azar não custa, a senhora que me atendeu na roulotte colocada sobre o passeio, lançou-me um "wich one"? Só que o “mwangolê” é vivo e, sendo libolense, um pouco mais ainda.

Encostei-me à roulotte, quase sentindo a sua quentura e engolindo aqueles cheiros que faziam um cão faminto fazer das narinas uma nascente. Fiquei entre um polícia e um kota negro, fininho, que tinha os cabelos penteados para trás e que falava uma língua distinta do inglês. Eles têm perto de dez línguas oficiais, entre as de origem africana e europeias. Reparei rapidamente nos dois pratos que a “mboa” acabara de servir e apontei ao que tinha uma pasta branca feita a base de farinha de milho.

- This one. Estiquei a mão para que mais dúvida não houvesse. E para que a sul-africana não desse conta do meu sotaque e da minha pobreza lexical, lancei de imediato um "how much"?

- Thirty Rands. If you want Coca, must pay fourty one rands.- Fiz as contas rápidas e saquei uma cédula "cabeça grande" que já tinha o “ngimbu” a sair da algibeira.

Levei o marmitex ao hotel, que ficava a vinte metros, onde, também com as mãos, para não ofender Shaka Zulu e seus ancestrais, devorei o conteúdo com o polegar, indicador e o dedo médio da mão direita. E soube a Libolo, nos tempos da minha infância. Só faltou Xxila!