sexta-feira, 20 de maio de 2016

(RE)CONHECENDO ANGOLA

- Afilhado, se um dia fores à Huila, não te esqueças de chegar às cascatas da Huila. Sou comandante da esquadra comunal. A cascata é, para além do Cristo Rei, Fendas da Tundavala, Serra da Leba e Serra da Xela (Chela), um dos melhores locais para visitar e arregalar os olhos. - Disse-me o padrinho, numa conversa havida há já dois meses.

Chegadas as férias, preparei a "Maria" (nome da carrinha) e fiz-me à estrada: Lwanda-Sumbe-Kanjala-Lopito-Mbengela-Xongoloy-Kilenges-Luvango (Morro da Xela, Cristo Rei, Humpata, Serra da Leba, Tundavala)Xibya, Mercado das Mangueiras (Namibe), Luvango. Confira as estórias

Perto de mil quilómetros da capital de Angola à capital da Huila, a caminho do alto e montanhoso Sul do país. Entre troços recomendáveis e outros que quase nos cortam a respiração, ante a presença brusca de buracos assassinos, desfiz-me de Lwanda-cidade até à ponte erguida sobre o caudaloso e manso Kwanza, a afogar-se no largo Atlântico. É a cobrança de portagem que me desperta a atenção.

- Tomara que de trezentos em trezentos quilómetros houvesse essa forma de levar dinheiro ao cofre do Estado. Andámos a reclamar que as estradas estão más, quando pagamos pouco ou quase nada para as manter. - Atirei ao meu canino amigo e, mais uma vez, companheiro de viagem. Este concordou e a viagem ganhou motivo de conversa: as portagens necessárias e os impostos devidos ao Estado.

- Que tal também uma cobrança de portagem na ponte sobre o Kwanza, junto à localidade de Kabala? É recente, imponente e, tarde ou cedo, carecerá de manutenção. - Atirou Martins, em jeito de provocação, sem se dar conta que os Kz 210.00 pagos na portagem não tinham sido facturados. O Estado fora aldrabado pelo funcionário e nós, distraídos, limitamo-nos a avançar sem cobrar a nota de facturação.

- No regresso, temos de pedir a factura e se o homem for o mesmo, terá de nos passar o documento em falta. É preciso que alguém se lembre disso. A ponte tem de fazer o seu pé-de-meia nesses tempos de verdinhas raras. – Complementei.

Viagem turística é para ver tudo à volta e à beira da estrada. Mas quando a rodovia nos convida para testarmos a potência do motor e a nossa aptidão, somente os sinais de trânsito nos impedem de baixar em demasia o acelerador: visibilidade, condições da via, estado técnico do meio e atenção redobrada são condimentos para uma condução defensiva. Assim aprendi num curso em Catoca.

Não tardou chegar ao Longa, Porto Amboim (onde o sol nos convidava para uma praia que ficou adiada para uma próxima digressão), rio Keve (onde o bagre fumado, à mostra na kitanda ribeirinha, faz verter água na boca faminta de quem deixou Lwanda sem tomar o mata-bicho). Daqui ao Sumbe foram dois assobios.

Calmo, mas sempre perigoso, o monte do Xingo (pescoço? De quem seria?) apresentava-se valentão até para os mais destemidos do volante e acelerador. Mudança intermédia, entre força e velocidade, com o travão sempre a meio. Ao entrar para a antiga cidade de Novo Redondo, a Maria apresentava o depósito a meio e teve de ser alimentada.

Já a sair, surgem casas sobrepostas na montanha que atende pelo nome do Médico-Guerrilheiro do Glorioso M. Uma fenda se presta a engoli-las a qualquer hora desses dias pluviosos. As casas erguidas em degraus sulcados sobre o monte argiloso apresentavam um semblante tristonho e medonho. O motoqueiro abordado não hesita em apresentar-nos o bairro.

- Aqui é no Américo Boa Vida. – Disse empolgado.

Olhei para o Martins que aproveitou a paragem para se aliviar da ureia e joguei rasteiro:

- O camarada Ngola Kimbanda merecia um chará mais organizado. Aqui não vislumbro boa vida. Olha para aquela casa abandonada, com a lateral desabada e sem acesso?

Colhemos as imagens possíveis e cavamos. Uma fomezita se fazia anunciar. Teríamos de resistir até Kanjala onde "as bombas e dinamites que despedaçaram a ponte sobre o rio que  dá nome à localidade não meteram medo ao povo unido" que ali fixou residência e sempre fez o seu negócio agroalimentar. Deslizamos sobre a nova travessia, também ela construída à base de ferro e betão, mostrando aos amigos da pólvora que o país se faz com trabalho.

- Kanjala é fome pequena. - Explicou Miqui, a jovem que disse ter nascido e crescido na aldeia, mas num tempo já de poucas refregas. Sobre os autores da barbárie contra as pessoas, os edifícios e a ponte, Miqui, aparentemente bem avisada e disposta apenas a servir o seu pirão que mata a fome, preferiu não comentar.

- Ó mano, nesses tempos os pais já não andam mais a falar sobre essas coisas. Quando nasci a ponte já estava na água e nunca me disseram quem foi que a partiu. – Esquivou-se ela da provocação, destapando as panelas que reluziam ao sol. Mas é já ao nos despedirmos que Miqui solta um detalhe: estão a ver aquela "kamunda, katito, tito" (montículo pequenino pequenino), é ali que se escondiam.

- Mas, que fome tinham os homens da pólvora que em vez de procurarem por comida a descarregaram sobre a ponte? – Indagou o Martins, cuja resposta ainda aguarda.

O peso do pirão com kalulú, que não tinha peixe seco, fez pressão sobre o pedal acelerador e não tardou chegarmos ao Lopito que me surpreendeu com a estátua que representa um camionista que abraça numa mão o volante e noutra a kalashenikov. O jardim que enfeita a rotunda está minimamente cuidado, tirando os zungueiros e as crianças que jogavam despreocupadas a sua garrafinha por cima da relva. Consultada a placa sobre o monumento, diz tratar-se de uma “homenagem aos motoristas e ajudantes que de 1975 a 2002 ajudaram o povo e o poder instituído a levar mantimentos a todos os cantos do país”. Fiz-me à câmara e, por pouco pediria o livro da cidade para deixar o meu assentimento: "Homenagem merecida". Mas livro não havia nem tempo. Mbengela (Benguela) chamáva-nos apressada pois havia encontro “cirúrgico” combinado com o primo Casemiro, cuja casa devia conhecer. E o encontro foi no Hospital Provincial que registava um dia de pouca agitação.

Sol ardente, sede a cobrar água para os lábios ressequidos. Bem próximo do Hospital, a Morena cobiçava-nos desejosa para farfalharmos as suas areias brancas e águas límpidas. Resistimos: “Ficas na agenda, ó Praia Morena”.

Não vi o vermelho das acácias, se calhar por não estarem na rodovia que me conduziu ao Xongoloy (Chongoroi). Antes, no primeiro desvio para o Wuambu (Huambo), mulheres de pastores de bovídeos exibem o “mahini”. Aqui tratam-no apenas por leite azedo e não exactamente mahini como no sul. Cardealmente, estávamos ainda no oeste e não taxativamente no sul como os nortenhos de pouca instrução catalogam os que nasceram abaixo do Kwanza. Não tardou surgir a vila que nos recebeu debaixo de chuva grossa.

 - Atenção, compadre, à ponte! Tem uma faixa vedada à circulação. Que terá havido? – A pergunta do Martins ficou perdida no roncar da Maria que pelejava contra a distância enquanto eu tinha como adversários os intrusos assassinos e o asfalto molhado.

Com o sol a namorar o mar, um controlo policial desperta a nossa atenção. À meia-distância estava uma ponte metálica prestes a ruir. Um trilho lateral indicava-nos que uma outra fora levada pela fúria da água. Levantando o rosto fui agraciado com a expressão, “Seja benvindo à província da Huila”. Estávamos a adentrar o município de Kilenges (Quilengues), cuja vila se apresenta bem cuidada e asseada. A administração municipal tem no entorno um jardim com representação de espécies da nossa fauna. Antes, um parque infantil atende pelo nome de Jacaré. O templo católico, a caminho do duo centenário, também se mostra alegre e decorado. Fazer fotos se mostrou irresistível.

- Sejam bem-vindos ao nosso município e desfrutem das belezas da Huila. – Gritou-se do outro lado da estrada, ao que fomos agradecer e perguntar se se objectava a colecta de imagens.

- Turismo sem fotos é como casamento sem filhos. – Disse irónico o mano de Kilenges, sempre com um sorriso nos lábios.

Entre Kilenges e Luvangu (Lubango), está Hoke (Hoque), comuna que eterniza um valente comandante das forças armadas angolanas, tombado em missão patriótica. Simione Mukune é o nome do bairro que fica depois do ponteco. O local, contam os moradores, tem dado, em tempo chuvoso, dores de cabeça aos automobilistas e governantes.

- Por cá passam muitas viaturas que vão ao Kunene (Cunene), Namíbia, Moçâmedes e outros destinos, procedentes do norte (Luanda, Benguela, Huambo, etc.). – Contou Zito, um jovem que se apressava em pedir boleia para Luvangu.

Debaixo de um céu já sem sol, ligo o rádio e a música nos convidava: “Vem, vem, vem| Vem conhecer Luvangu| Luvangu te espera”... A cidade era um clarão abraçado pela estátua Real implantada sobre o alto da Cela (Chela).

- Chegamos, compadre. Estás a ver aquele cerco montanhoso? É mesmo ali. Já lá estive por duas vezes em missões de serviço. – Atirei ao Martins que não conseguiu disfarçar a sua alegria.

- Finalmente, Luvango!

O medidor de distância apontava: mais de novecentos quilómetros percorridos entre Luanda e a cidade erguida sobre o sopé do monte da Cela (Chela). 

Antes da hospedagem, entendemos estudar as suas quatro principais saídas rodoviárias. Namibe, Fenda da Tundavala, Kunene e Wambu.

CARTA AO AVÔ KAZENZA

A chegada à casa do nosso anfitrião não foi dificil. A indicação que levávamos era para “ir à polícia e pedir ajuda”. Diligentes e atenciosos, os homens da farda azul  cuidaram de nos acompanhar até à vivenda que ocupa um dos nobres espaços da rua Nossa Senhora do Monte. Antes, pelo caminho, o carro policial pára e recolhe um casal que caminhava sobre a chuva.

- Já não se fazem polícias como esses! – Exclamei.

Vim a saber que aquela rua tinha registado nos últimos dias alguns crimes contra cidadãos que se fizeram a caminho no silêncio da noite. Era por aquela e outras razões que merecia constante patrulhamento e atenção redobrada aos cidadãos.

Cansado, devido a viagem, é debaixo da colcha que redijo a carta para o meu avô Kazenza, cujo neto, destacado na Huila para uma missão de Estado, nos acolhia em sua residência oficial.

Contaram-me. Não te ouvi dize-lo, pois era infante, que apreciavas tanto o teu filho varão que chegaste a descreve-lo como alguém tão culto, tão culto, que "escrevia até debaixo de água". Também me contaram que dizias às pessoas que a tua nora era tão linda e tão cabeluda que "estando na cozinha, a transa se estendia até à sala".
Ouvi ainda que o avô Soares Kazenza, pai de Nzunba, a senhora que me cuidava nas ausências da minha progenitora e me defendia d...as porradas de Kilombo, também era um filósofo e curioso, chegando a desmontar um rádio para ver quem lá estava. Essa estória já a escrevi no meu "O sonho de Kaúia".

Sou o filho daquela tua filha (sobrinha) que por pouco te copiava na imaginaçao e ficção, a Kilombo do Kitinu.
Avô, é verdade que quando já velhinho, regressado ao Kuteka, metias milho na entrada da tua casota para apanhar a primeira galinha que procurasse encher o papo? Ouvi isso.
Disseram que o avô fechava de imediato a porta com a bengala que te ajudava a andar e os aldeões, que muito te amavam e respeitavam, apenas se apercebiam do sumiço do galináceo quando se deparassem com as penas.

Partiste sem que bebesse da tua fonte, avô. Seguiste o Kitinu sem que eu tivesse idade para te ouvir e te retratar suficientemente nas minhas crónicas.
Tenho, porém, uma mensagem para te dar, avó, que será na variante do teu Kimbundu de Kuteka.

Akuku! Omon'a, Nzumba, wakiti. Manu Sabalu-a-Soba, uku amundumisa ku tuma, fuka yenene. Kekayo! (Avô! A tua filha, Nzumba, tem um filho honrado. O mano Sabalo, filho do Soba, foi destacado para liderar numa terra enorme. Repara-a!)

Desperto suado e rápido dou conta de que tinha sonhado.

D0 ALTO DA CELA E TUNDAVALA contemplo a maravilha que a natureza nos oferece complementada pelo engenho humano e vejo quão imensa é a cidade de Luvangu. Não tarda, chega mais uma viatura com dezena de crianças a que se seguem outras de jovens excursionistas. O espaço ganha vida. Corre-se à volta como se procurando por algo.

- Não há cá balneários públicos? – Atira um dos turistas desejoso de desfazer-se de líquidos ou sólidos transformados em pasta.

Abro a minha caixa de recordações e voo até à “Mesa Montanha” da cidade do Cabo e projecto aí um “cable” e todo o apetrecho turístico como loja de conveniências, restaurante, café e um Motel erguidos com material local e sem beliscos ao meio natural. Um pouco desgostoso, já a caminho da Humpata, para ver a Leba, reparo que o restaurante e a loja de conveniências com que sonhei ficaram pelo alicerce.

- “Table Moubtain" nacional, ainda vamos a tempo, se os que têm dinheiro e aqueles que decidem quiserem. ‘ Falei aos botões.

A observação não se distancia da Tundavala que desperdiça a sua enorme paisagem. Só falta mesmo quem decida erguer instalações que alimentem o turismo. Organizar transporte da cidade ao miradouro, cobrar taxa de usufruto, impedir que se suje a área com detritos humanos, latas de cervejas e refrigerantes ou ainda marmitex. Empregar guias que expliquem cada um daqueles recantos ou colocar em cada atalho placas informativas sobre a história do local e sua subdivisão espacial. Recrutar fiscais, fotógrafos e instalar o que atrairia e reteria mais gente ao espaço turístico e recreativo: restaurantes, cafés, lojas de souvenirs, albergaria rústica, toiletes, etc. Com tudo isso, ou mesmo metade, não mais nos espantaríamos com o cable e Table Moutain de Cape Town...

A ESPIRAL DA LEBA: a estrada que desafia a escarpada serra da Leba é uma "serpente" enrolada sobre a montanha vertical. A natureza fez a sua parte e o homem engenhoso complementou com a escada sobre o "edifício" de dezenas de andares. Que maravilha!
Pena é não se ter erguido ainda no local espaços para reter o turista, depois de saciado pela natureza circundante.

Ainda do alto da Leba, depois de pagar a portagem de Kz 150.00, contemplo a sua raridade e me recordo de um velho sonho: descer e subir ao volante de uma viatura.

Ensaio a fiabilidade dos travões e engato uma mudança intermédia, combinando força e velocidade que não passava de 40 Km/h no início da odisseia.

A meio do percurso, um camião tractor geme pesado e cauteloso, pressionado pelo bloco de mármore que há-de trazer divisas ao país e ornamentar um edificio num país qualquer.

- Quão bom seria se tivéssemos já indústria de beneficiação das rochas ornamentais. Deixaríamos de vender comodities baratas e comprar refinados caros! – Atirou o Martins que sabendo onde trabalho aproveitou provocar-me sorrateiramente. Mas é para a descida da Leba que concentro todo o meu talento e destreza.

O MERCADO DAS MANGUEIRAS: É já em território do Namibe que os fóbicos da Leba engolem despreocupados ar puro.

- Ebenezer (até aqui o Senhor nos ajudou)!- Foi a frase que ouvi do meu companheiro de viagem que soltou poucas palavras enquanto eu pelejava contra as curvas e contracurvas numa espécie de espiral regressivo. Nem mesmo os batuques, os recipientes para a ordenha, os cacetetes (porrinhos), estatuetas e outros artefactos de madeira expostos em venda, ao longo da parte final da descendente Leba, despertaram a atenção do Martins que apenas reagiu aos meus beliscos verbais quando deixou de ver curvas à frente. Cinco quilómetros abaixo da Leba, depois de uma vasta mata de mulolas espinhosas, se estende o Mercado das Mangueiras onde matámos a fome e a sede. A carne, assada em tiras finas espectadas em palitos, custava Kz 150.00 ao passo que uma perna de galinha rija custava quatro vezes mais.

- Mas aqui, com tanto gado, a carne é assim tão cara? – Questionei à vendedeira que atendia pelo nome de Fernandinha. Era também o nome gravado à entrada da barraca.

- Senhor, é a crise. Até o preço da taxa subiu!

Fazia sol de assar sardinha e o mar que distava perto de uma centena de quilómetros fazia o convite: “Venham também ver Moçâmedes”.

- Desculpe-me Namibe, mas não será desta vez o nosso reencontro! – Despedi-me, forçado pelo relógio que corria apressado. Havia ainda a cascata da Xibya (Chibia) por explorar e fizemo-nos de regresso ao Luvangu, com curta paragem na Humpata onde o gado bovino, as maçãs, as peras, o tortulho e o bom clima convidam o turista a uma contemplação do belo. Ponto de passagem entre Luvangu e a Leba que nos conduz ao Namibe, Humpata é também um local turístico e de recreação. Tem um mercado municipal recheado de frutas de vontade e pousadas com camas fofas.

Chegados à grande cidade do sul, o caminho seguinte foi o que dá ao Kunene.  Perdidos entre as mulolas e rios caudalosos em tempo de chuvas fartas, mas que se tornam desérticos em horas seguintes, precisei de tradutores para "assuntar" que precisava de fazer fotos com as mulheres mundimbas trajadas a preceito. Estava na Xibya (Chibia), famosa pelos seus campos agrícolas onde se haviam estabelecido colonatos luso. Conta-se que Sá da Bandeira, nome por que fora baptizada a capital huilana, ter-se-á enamorado pelo clima da Xibya... 

Dois tradutores de ocasião ajudam-me a transmitir a ideia, na língua nativa, às mulheres mundimba que ignoram o idioma trazido por Sá da Bendeira e conterrâneos.

- Ele veio nos visitar e quer tirar fotos para recordação. Também promete dar algum dinheiro para os que ficam comprar recordação. - Terá dito, mais ou menos, um dos tradutores, antes de reclamar: - eu que estou a “assuntar” com as mamãs também me põe na conta da recordação. A ele se juntou outro jovem, também pretendendo a boleia da tradução.

As senhoras, caprichosamente trajadas em seus panos e bijuteria de misanga (missanga na grafia convencional) ao pescoço,  acederam sem resistência. Até apareceram mais do que as minhas previsões, mesmo sabendo que a quantia prometida era, para mim, irrisória. Mulher mundimba também gosta de se ver na foto registada e guardada na memória do telefone. E foi o que pediram.

Havia prometido dar cem kwanzas a cada uma das cinco senhoras que contactei inicialmente. No fim, lá estavam onze mulheres. Para manter o que anunciara paguei mil e cem às senhoras, juntando mais duzentos para os dois homens  que ajudaram a manter tangíveis os discursos.

No momento de despedida, soaram rajadas de palmas. Todos agradecidos. Numa picada interior da Xibya (Chibia) onde quase nada se compra, senão as misanga (plural de musanga) e o álcool que "afugenta" o frio que vai e vem sem parar, onde a água pluvial corre furiosa da montanha para lado desconhecido, de tanto não poder adentrar o solo pedregoso, cem Kwanzas terá sido dinheiro.

Não foi dia de turismo. Caminho não havia para chegar à tão recomendada cascata que, afinal, estava antes, na comuna da Huila. Também guias turísticos e bons entendedores da Língua de Camões estavam raros.

Do turismo passamos à aventura. E valeu. É que nem a Maria (viatura) decepcionou na transposição dos obstáculos pedregosos, quanto não lamacentos, que se apresentavam na picada escarpada que risca a nuca da montanha que se estica da Xibya ao Namibe.

Regressados a Luanda, verifico de novo o contador de distâncias e este me informa: consumidos dois mil, trezentos e quarenta e nove quilómetros.

Bem haja turismo!

terça-feira, 10 de maio de 2016

OS MANGONHEIROS DE SERVIÇO

Ouvi, em tempos, alguém a gabar-se do facto de ser um "mafioso" no trabalho.

- "Eu sou um mafioso e ninguém me aguenta". - Gabava-se.
Não que estivesse ligado a uma organização criminosa, uma máfia ou coisa parecida. Reportava-se ao facto de ser um funcionário descomprometido com o trabalho, violador do código de deontologia do Funcionário Público.

Dizia ele que faltava ao serviço sempre que quisesse, que inventava óbitos e doenças para não trabalhar e que conhecia, inclusive, uma rede de falsificadores de documentos que lhe passava as receitas médicas e os boletins de falecimento, com os quais justificava as inúmeras faltas (pois estava mais ausente do que ausente) que lhe eram marcadas. E gabava-se ainda o individuo que "o chefe é meu "panco" (cúmplice), pois fechava os olhos aos seus desacatos e desleixos para com a actividade profissional. Era um homem que conjugava, vezes sem conta, o verbo faltar.

- Eu falto sempre que quiser e ninguém me penaliza. - Gabava-se, ao mesmo tempo que infectava os demais colegas com o seu vírus da indisciplina.

Há ainda os useiros e vezeiros na conjugação da forma negativa do verbo fazer. Não faço. Embora sejam corpos presentes no local de prestação de serviço, esquivam-se sempre das tarefas. Se as fazem não com o esmero necessário e esperado. Estão apenas para assinar o livro de frequências (ponto) e esperar pelo ordenado. Têm sempre um parente ou um amigo enfermo por visitar em hora de trabalho. Nas reuniões nunca contribuem de forma a melhorar as ideias expostas pelos colegas mas estão de boca sempre pronta para lançar críticas ao trabalho realizado pelos outros. Aos seus líderes levam problemas mas nunca apresentam soluções. Estão sempre à mão quando é para transmitir energia negativa. São recolectores de infelicidade que transportam e distribuem pelos colegas. Em conversas sobre a apatia que se instala nas instituições omitem as experiências positivas doutros Departamentos, trazendo apenas os exemplos mal conseguidos, como se o anormal fosse a regra.

- Chefe, não é só aqui, ali também é assim. – Dizem, como se desta forma estivessem a contribuir para transformar a instituição e o país.

Uma minha ex-colega de formação gostava de enfeitar a boca com o termo "eu sou filha de fulano de tal" e por isso ninguém me penaliza. Também não assistia as aulas, mas no final do semestre ou do ano lectivo passava a vida a reclamar dos professores afirmando que os mestres tinham sido maus para com ela. Calculo que no trabalho ela continue a conjugar o verbo ser (fidalgo) e a reclamar dos responsáveis sempre que a avaliação do seu desempenho corresponda àquilo que não faz durante o ano. A minha ex-colega, fruto do facto de ser fidalga, também gostava de conjugar o verbo ter. – Eu tenho influências e, por isso, ainda que não estude, ninguém me pode reprovar. – Afirm,ava de boca cheia.

Hoje, estará igualmente a dizer que tem influências e, ainda que falte ou que não trabalhe, ninguém a pode penalizar ou responsabilizar pelo incumprimento dos seus deveres.

Certa vez, quando estávamos a estagiar numa empresa, veio à baila uma conversa sobre o comportamento no local de trabalho, com realce para o cumprimento dos deveres e a reclamação ou usufruto dos direitos.

A minha colega, cujo nome omito, dizia, de boca cheia, que procurava mais por um salário do que por um emprego. Um dos colegas que não deixava conversas azedas para o dia seguinte enfrentou-a nos seguintes termos:

- Jaja, perdeste o teu tempo na formação para ser uma lesma no serviço? Se for para fingires que trabalhas ou apenas para mostrares aos vizinhos que tens um emprego, monta uma barraca em frente à porta de casa e faz negócios. Sendo tu mesma a patroa, apenas as tuas necessidades financeiras te obrigarão ou não a te desempenhares com maior acuidade. Como te podes orgulhar em ficar oito horas no trabalho em vez de trabalhares oito horas? – Questionou o Dito, conhecido como "O Bombeiro Diligente" por seu pau pra toda obra, sempre motivado e sorridente, fazendo as coisas com perfeccionismo, precisao e celeridade.

Ainda bem que  o meu leitor se escusa em ser pregador de maus exemplos, pois sabe que em todas as situações, domésticas ou laborais, há sempre quem tenha menos do que nós e que vive feliz, apesar das dificuldades. O meu leitor, tenho certeza, é dos que espalham sorrisos por onde passa, planta alegria e colhe bons resultados profissionais.

Na sua instituição, é dos primeiros a entrar e dos últimos a sair, depois de um dia sempre produtivo e inovador, valendo-lhe, por isso, uma boa carreira e reputação. O meu leitor é daqueles que conjuga o verbo agir, servindo-se do equilíbrio nas suas posições, respeitando as pessoas e as normas instituídas. É dos que se colocou, à partida, uma pergunta a si mesmo e cuja resposta é fornecida pelas suas acções diárias:

- Como quero ser lembrado(a), no futuro, pelas pessoas com quem lido ou que passarem por cá e ouvirem falar sobre mim?

A resposta define a estrada que vai construindo no seu dia-a-dia.

Nota: text5o publicado no Semanário Angolense de 01.08.2015

 

domingo, 1 de maio de 2016

TOPÓNIMOS BANTU: CÊS OU KAPAS?


Mas, ó kota, assim mesmo está bem? – Bernardo Njamba, meu companheiro de viagem do Cuito a Menongue é moto-taxista, vulgo Kupapata e trabalha na capital do Cuando-Cubango. Apesar de a profissão que exerce não ser das que exigem grandes níveis de escolaridade, Bernardo é bem informado e diz que “ganha-se mais trabalhando em Menongue do que no Chitembo ou Cachingues, sua terra natal, no Bié”.

Sem mesmo saber, antes, quais as minhas habilitações, ramo de formação e interesse pela questão linguística e grafia dos topónimos angolanos, Bernardo, como quem lê o pensamento alheio, atirou a sua pergunta (mas, ó kota, assim mesmo está bem?) ao passarmos pela renascente vila de Cachingues, cujo tabuleiro, no seu entender, devia estar escrito como se pronuncia em umbundu.

Antes mesmo que obtivesse de mim algum pronunciamento, Bernardo endireitou o tiro e falou sobre si.

- Nasci, ali mesmo naquela aldeia, onde o mano parou para me levar. Estudei a oitava classe no Chitembo e “através” da guerra fui rusgado duas vezes. Primeiro me levaram na tropa do governo e combatemos nos lados de Camacupa. Quando vi que as mortes eram demais, fugi. Mas por azar, também fui raptado pelas forças da Unita. Ali já era demais. Recuar era só recuar. Todos os dias era só fugir da tropa do governo que estava bem equipada. Txá, aquilo era demais! Nem mesmo comida ou fardamento tínhamos. Ração era milho torrado e roupa que te apanham com ela é a mesma que serve de farda até rasgar.- Contou, para depois perguntar se “o kota é daonde e combateu ainda aonde?”

- Sou do Libolo. Na tropa, apenas espreitei e fugi antes de jurar a bandeira, pois era recruta menor e ninguém me perseguiu quando entendi fugir dela. Depois fui a Luanda estudar e trabalhar. – Expliquei-lhe.

- Siti, kota watanga (o mais velho estudou mesmo). – Exprimiu-se em umbundu, Bernardo. – Mas, o kota estudou o quê? – Voltou a questionar, tentando procurar um caminho para chegar ao assunto da grafia no tabuleiro deixado na comuna de Cachingues.

Ele como um cavalheiro que aos poucos, sem fazer-se perceber, esquarteja a sua dama, e eu na defensiva. O assunto era do meu interesse mas pretendia saber até aonde Bernado Njamba chegaria com aquela pergunta inicial. A nossa viagem consistia numa troca de favores: eu levá-lo-ia até ao seu destino, Menongue, e ele mostrar-me-ia, em troca, a cidade a que me dirigia pela primeira vez, e o Instituto Médio de Administração e Gestão, IMAG- 23.

- Sou jornalista. Meu nome é Soberano. Nas universidades estudei História e Comunicação Social. Também gosto de estrada e aprecio as coisas velhas e novas que vão surgindo pelo país. – Disse-lhe, aguçando o seu desejo de prosear.

Bernardo sorriu de leve. Pegou em duas latas de bebida energética que tinha no saco, ainda frias, e passou-me uma das latinhas.

- Kota Soberano, posso trata-lo assim? Questionou, já com um à vontade nunca esboçado.

Apenas anui com a cabeça, procurando por uma música que nos fizesse companhia. E ele prosseguiu:

- O kota que entende de História deve também entender lá um kabocado de línguas nossas. Acha mesmo que a forma como escreveram os nomes das aldeias, comunas e municípios, até mesmo os nomes das cidades está correcto? É que nós, kupapateiros quando falamos, mesmo tendo razão, nos falam você é burro.- Desabafou, algo aborrecido.

Meu amigo, sou um dos que se debatem contra a forma como os topónimos estão escritos nos tabuleiros ou a forma como nos habituamos a escrevê-los. O ideal seria que os topónimos e antropónimos fossem escritos e registados de acordo com a estrutura gramatical da língua em que são enunciados. Aqui, entre nós angolanos, o assunto da troca dos kapas pelos cês na grafia de alguns topónimos bantu ou pre-bantu e a manutenção dos kapas noutros vocábulos tem sido motivo de muita celeuma. Veja bem, amigo Bernardo, abri o rosário, há meses, quando se fez o registo eleitoral o MAT mandou os jornalistas escreverem os nomes como se escrevia no tempo do kaputu. Então, uns ficaram “fulu”. Disserasm assim é regresso ao passado e não pode ser. – Recordei-o.

- Pois é mano. :Respondeu Bernardo. – Veja, por exemplo que o rio, esse que nasce mesmo aqui perto, no Chitembo, é Cuanza mas a moeda que ganhou o nome “através” do rio, é Kwanza com kapa e se justifica que se atribuiu à moeda angolana o nome do maior rio que nasce e desagua em território nacional. Isso assim mesmo está correcto?


- Não acho correcto. Fui e sou ainda dos que mais discorreram tinta sobre o assunto que, afinal de contas, não é tão complexo nem confuso quanto os comunicadores do MAT o fizeram parecer. Aqueles "doutores" em vez de saírem de peito aberto para explicar em miúdos o que se passou com a remissão daquele instrutivo aos Meios de Difusão Massiva para, de um dia para outro, cortarem os kapas e os substituírem pelos cês, deviam é estudar o assunto e explica-lo não só aos MDM mas a todos os angolanos. Ontem mesmo, um meu amigo, já mais velho e doutor de verdade, explicou-me me que os nomes, mesmo os das pessoas, só se tornam oficiais quando cadastrados num livro de registo que lhes dá respaldo legal.

- Ai é? – Interrompeu Bernardo que parecia gostar das explicações e de ter encontrado a pessoa certa para o seu desabafo.

- Sim amigo Njamba. Vejamos: o único registo existente quanto aos antropónimos angolanos é o que foi deixado pelo colono. Não foi produzida uma lei que alterasse os nomes das localidades, de acordo ao que alguns angolanos defendem, eu incluído, que é redigir com kapa aí onde a estrutura da língua africana originária o exija.

- Mas o mano Soberano me disse, na passagem pretérita, que era contra a forma como se escrevia antigamente e como se escreve também agora. Assim então fica como?

- Pois é, Bernardo, aí está o problema. Temos as localidades já antigas que foram mal registadas pelo colono. Umas mudaram de nome depois da independência, mas ninguém fez o registo em livros. Os nomes não foram oficializados nem escritos correctamente. Temos também as novas localidades surgidas depois da independência, como a cidade de Kilamba ou a moeda Kwanza. Essas estão bem escritas e fora de discussão. – Esclareci.

Bernardo Njamba parecia ter ainda algumas dúvidas embora tenha por diversas vezes balançado a cabeça, em sinal de aprovação do discurso. E não tardou a sua pergunta derradeira.

- Assim, mano Soberano, os nomes então devem se escrever como? Cachingues, Mumbue, Chitembo, Catabola, Chicala-Choloanga, Babaera, Bié, Cuito e Cachungo é mesmo assim que se escrevem ou devem levar kapa no princípio?

- Olha, Bernardo, Mumbué, Babaera e Bié não levam kapas, mas devem ser escritos de forma diferente. Devem passar para Mumbwe, Vava-Ayela e Vye. É assim que se escreve em umbundu. De igual forma, para corrigir os topónimos que enumeraste, deve escrever-se Kacingi, Citembu, Katabola, Cikala-Colohanga, Kwitu, Kacungu, etc. É preciso que se escreva bem e se crie uma nova lei do registo desses nomes bem escritos.

  
- Então é isso que o amigo do Kota explicou na conversa que tiveram ontem? - Voltou a questionar Bernardo, sempre interessado nas explicações, se calhar para lhe servirem de argumentos perante os debates com os colegas, na praça da Paz, em Menongue, onde presta serviço de moto-taxi.

- É mais ou menos isso. Ele pediu para que todos aqueles que podem esclarecer aos outros aprendam e façam-no para que o povo reclame com razão. Perante a douta explicação do meu amigo, devemos é redireccionar a NOSSA "luta" ao mesmo MAT, já não para repor os kapas que achávamos terem sido arbitrariamente cortados, mas para que no mais curto espaço de tempo crie a lei que coloque, em definitivo e de jure, os kapas, ipsilons e dablius nos topónimos como Kwanza, Kacinge, Mwmbwe, Cikala-Colohanga, Kalulu, Kwitu, Katabola, Vav'ayela, etc. e se escreva correctamente os nomes dos rios, das localidades e até das pessoas. O que peço hoje, espero que você também seja parte desse esforço, não é a colocação arbitrária de kapas, mas a grafia correcta dos hidropónimos, topónimos e antropónimos conforme a estrutura morfológica das línguas locais.


- Ok, mano. Estou de acordo. Assim mesmo, quando chegar a Praça da Paz, vou já começar a explicar aos meus colegas. Não pedi antes, mas gravei as explicações do mano, para servir de testemunha. – Concluiu Bernardo que ao longo do percurso foi fazendo as correcções sobre como seria a grafia correcta, seguida de registo, das localidades que fomos encontrando.

- Kota, a província do Kwandu-Kuvangu começa aqui e a cidade de Mwene Vunonge fica a cento e cinquenta quilómetros. – Atirou, mostrando que domina já o assunto.