terça-feira, 20 de setembro de 2016

JOÃO MARIA E MARIA JOÃO


Conheceram-se crianças ainda de tenra idade. Seus pais eram vizinhos e, naquele tempo da dibinza, andavam e brincavam juntos, improvisavam os mesmos brinquedos, apesar de ele ser rapaz e ela menina.

A casa de uma tanto servia para o outro, refugiando-se do sol intenso ou frio congelante, ou mesmo dormitando, depois de cansativas brincadeiras no morro de terra deixado pelos homens do Ministério da Construção e Habitação. A amizade voluntária e desinteressada acabava por envolver também os pais que gozavam da alegria dos filhos e choravam a dor do filho do vizinho.

Certo dia, quando Maria pisou um caco de garrafa que quase lhe decepava o calcanhar, João foi o primeiro a chorar.

- João! Estás a chorar porquê se ferida é minha. Ninguém vai te bater por estares comigo. Saí com minhas pernas.- Disse Maria. Ela, corajosa como ninguém e apossado de compaixão.

- Maria, tua ferida também dói em mim. É como se esse sangue saísse daqui. E batia ele no seu frágil peito.

Àqueles que assistiram ao diálogo pareceu-lhe que havia envolvimento psico-afectivo que extravasava a simples amizade pura. Mas eles eram crianças. Apenas sete e oito anos. Inocentes naqueles dias em que contar estrelas à volta da lua completava o lugar das telenovelas desse tempo.

E caminharam até à casa de Maria onde as reprimendas e conselhos dos pais da menina serviram para os dois.

Aos olhos dos maldizentes, a menina era Maria rapaz e ele um João maria.

- Esse está perdido. Homem fica a andar com miúda à procura de bonecas quando os outros fazem fisga e carros de lata?

- Hum! Essa está perdida. Mulher, em vez de brincar de cozinha e costura fica a andar com rapazes, tipo homem, a querer ser mecânico e bate-chapa? Vizinha Nela nem só genro vai ter. Alembamento e panos de mabela azul é melhor esquecer!

Os falares das tias, vizinhas no Marçal, sempre afáveis no trato mas atiradoras da primeira pedra, eram constantes sempre que vissem aquela dupla. E as senhoras, na sua liberdade de exteriorizar pensamentos, não guardavam palavras para amanhã.

Maria e João, apesar dos elogios e das críticas, continuaram amigos na adolescência e juventude. Estudara na escola Juventude em Luta e no fim lutaram para bolsas de estudo no estrangeiro.

Em Cuba calharam em ilhas diferentes, João na Ilha da Juventude e Maria em Plaia Girón. Mas as cartas e as visitas se mantiveram intensas.

Em Angola, próximo das férias, os pais de Maria, sabendo do seu desinteresse em dar-lhes genro, decidiram surpreende-la com um presente.

- João! Imagina o que ganhámos?

- Ganhámos o quê, Maria? Bolsa de mestrado?

- Desperta, João. Primeiro é aplicar a licença e depois agregar valor. Te esqueceste?

- Então diz o que foi que aconteceu de transcendental que te faz ligar-me à meia-noite.

- Ouve, João. Os meus pais cederam-me um apartamento. Já te disse que é todo nosso. Podes lá ir ler e descansar quando quiseres.

Festejaram, à distância, aquela boa nova plasmada na mukanda recebida ainda fresquinha. Maria passava o papel pelo nariz, a ver se sentia o cheiro do pai misturado entre as letras manuscritas a preceito, Bernardo Kixinga era de pena leve e fácil. Apenas o cheiro da caneta, que se supunha ser uma Bic, resistia ao tempo.

Às cinco da manhã, João chegou com as passagens para Angola. Era mês de férias. As suas viagens eram conjuntas. Embora nunca alguém dos dois tivesse libertado os cachorros, Maria e João, mesmo aos olhos dos companheiros africanos e sul-americanos, viviam uma vida de casal, separado apenas pelo descompromisso.

João tinha outas amigas e até namorada cubana, embora na sua vida nunca chegassem aos calcanhares de Maria. Maria também tinha amizades masculinas. Até experiencia sexual teve. Mas, confessou a João que apesar do momento singular proporcionado por aquela viagem espacial, não era um João na conversa e no à vontade.

Viajaram para Luanda. De mãos dadas como sempre. Ao segundo dia, Maria convidou João para ir conhecer seu apartamento na nova cidade que se erguia pelos lados da Cuca.

- João, querido! Vai sem desconfiança nenhuma. Leva livros e roupas, se quiseres. A chave de reserva, que passa a ser tua, está com a vizinha da porta 21. O nome dela é Bela.

- E por que não te encontrarei em casa?

- Vou arranjar um Habana Club, João. Até amanhã.

No dia combinado, Maria ligou manhã cedo a confirmar a visita enquanto se aprumava como noiva de quem espera o altar.

- Vens, João? Tenho o coração aos pulos. Quero comemorar contigo... Estás bem?

- Estou cansado, Maria. Tive uma noite para esquecer.

- Foste à má vida e não me levaste? Já me deste uma concorrente que vai desistir na primeira paragem? - Questionou brincalhona.

- Oiça, Maria. Ontem fui à tua casa.

- E que aconteceu? Para que não nos víssemos? Conta em detalhes que estou a asfixiar-me de curiosidade.

- Estava eu no teu quarto. Num quinto andar. Quando me viste saltaste por cima de mim e nos amámos perdidamente. Porém, ele chegou. – Fez pausa para ouvir a reacção.

- Ele quem, João? Conta rápido essa cena que se parece ficção.- Pediu autoritária.

Pois é. Constou-me que há já bom tempo que sentia o cheiro da intrusão em tua propriedade. Entrou de rompante. Abri a janela e o chão era muito longe. Não me entreguei ao salto, embora me tivesse passado pela cabeça o suicídio. Acobardei-me e supliquei de joelhos. Tu estavas na cama sem saber a quem dar razão. Pegou-me pela goela até ao rés-do-chão.

- Ela atenta do outro lado da linha, sem poder conter a respiração e o foco daquela conversa, mantinha-se calada, lançando, de vez em quando, uns “e depois”?

- Depois levou-me à rua. Eu sempre quieto. Como uma criança consciente da transgressão e que não reage. Quando ele se aprumava para me esmurrar, peguei-lhe os martelos que balouçavam numas calças de treino e sem protecção interior.

- E daí? – Questionou Maria ainda confusa

- O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Inverteram-se os papéis. Ele gritava e eu apertava enquanto procurava por folga e me pôr a fresco. Depois meti-me no carro.

- E ele?

- Ele, recuperado, meteu-se no dele e partiu em minha direcção. E fizemos uma corrida sem vencedor.

- Mas, como assim?- Maria começava a entender e tinha a curiosidade mais cada vez mais aguçada para saber do fim, da trama.

- Pois, Maria. Acordei com a entrada da tua mensagem...

sábado, 10 de setembro de 2016

O IRMÃO PIRIGO


Gabava-se de rua em rua e de sol a sol. Era por todos conhecidos como um grande devoto e nas discussões bíblicas tinha fundamentos até para derrubar alguns clérigos menos preparados. "Foi a guerra que me tirou do ministério. O meu nome já 'encosta ‘na' lista dos 144 mil que vão 'no' céu!” Afirma convicto.

No bairro e na igreja que frequentava, era até então chamado de "irmão Catorze-Quatro", em alusão aos três primeiros algarismos que na numeração árabe ganham, à direita, três zeros para completar o número dos escolhidos, que segundo o livro da bíblia cristã, Apocalipse 14:01, vão governar a terra com Cristo, num executivo que terá o seu palácio no alto dos céus.

Na terra, dizia o irmão Catorze- Quatro, ficariam as mulheres e homens de boas obras, mas que pela sua inconsistência, não chegavam a atingir a excelência cristã. O patamar em que se julgava estar.

Catorze-Quatro tinha todos os versículos de Apocalipse e Salmos 115:16 bem sublinhados e abria-os prontamente para se defender sempre que fosse afrontado por jovens reformistas e inconformados com a maneira como o templo físico era governado pelos “kotas” da velha guarda. Era também o primeiro recurso àqueles que se iniciavam na “pregação da palavra” ou que participassem de debates inter-eclesiais.

Filho de uma camponesa alfabetizada e de um comerciante de fuba e peixe seco, Catorze-Quatro nasceu numa missão evangélica protestante e lá fez toda a sua instrução preparatória, até à chegada da idade militar que lhe “roubou o sonho de se tornar pastor ordenado”, quando já frequentava o curso propedêutico no Seminário Emmanuel Unido do Ndondi, no planalto angolano. Manteve, porém a vocação sacerdotal e fazia questão de se gabar de ser “um dos poucos escolhidos que conhecerão e trabalharão 'caralmente' com o Messias no seu governo vindouro e sem fim".

Já a descrever a curva dos cinquenta e com a berma encefálica apinhada de algodão, Pinto Kwononoka, de sua graça, lutava para ser elevado à categoria de diácono, ao mesmo tempo que se esforçava em ser um “velho-jovem", aderindo a todas as modas físicas ou virtuais que lhe chegavam pelas redes sociais.

Era um “velho actualizado”, diziam os mais novos. Há já anos que as suas roupas se pareciam à pele colada ao animal ainda vivo. Os seus telefones eram todos de último grito e tinha plano infinito de internet que lhe permitia passar a vida a dedilhar, mesmo durante os cultos dominicais. Na igreja, para não dar nas vistas enquanto trocava mensagens, escolheu um lugar estratégico para a sua nova mania: senta-se próximo de um pilar de sustentação com uma saliência que faz um ângulo recto, onde disfarça o aparelho em que palavreia com os amigos durante o culto. E foi levando a sua "santidade de mentira" com a “cipala” semi-lavada até ao dia em que foi chamado para abençoar o ofertório da igreja.

- Irmão Catorze-Quatro, leva-nos a Cristo em oração! - Pediu o reverendo Kabwiza.

O dia era de sol. A subida de temperatura era acompanhada com o vigor das vozes corais dos grupos alfa e ómega e dimatekenu nyi dizubilu. Cantaram garbosamente os coros, um a um, fazendo "descer o céu à terra". Para uns, a arrebatamento estava para segundos. O pastor tomou a palavra para agradecer os coros e os “dizimistas” do primeiro domingo daquele mês de sol e chuvas fartas.

"Convido o nosso querido papá Catorze-Quatro para nos levar a Cristo em oração", anunciou o reverendo.

Catorze-Quatro que, apenas ouvira o peido do pastor mas não percebera, se manteve pregado no acento corrido de madeira e a olhar para a “auto-cipala” que tinha acabado de fazer para brindar a amiga com quem teclava ao telefone, até que o pastor voltou a apelar, num tom mais audível e algo sério. "Irmão Catorze, abençoe a oferta, por favor".

Sem desligar o telefone, o benquisto irmão Catorze, o mais falado da congregação, elevou as mãos ao alto, antes dos habituais dois passos que separam o orador do assento, e começou a sua evocação:

- Meu Deus, mô papá, abre teus olhos e estende a tua mão aos nossos jovens. Cada dia há mais desvios. O "pirigo" está em cada esquina, em cada beco, em cada telefone, meu Jesus. Faz do teu espirito santo um pastor atento, mô papá, para nos proteger dos lobos presenciais e virtuais, mo Dedê (...) Aqui mesmo na ngelú, enquanto oramos, outros se preparam para nos devorar psicologicamente. Uns são nossos irmãos no templo e nossos inimigos na rua. Mô Dedê, sabes o tudo quanto nos falta e nos enfraquece. Derruba grilhões, retira as pedras de tropeço dos nossos caminhos… Em nome do teu filho, nosso irmão na carne, que espero me receba no seu governo celestial, te peço infinitamente. Amem!

Catorze-Quatro baixou as mãos, abriu os olhos, e ao descrever aos 180 graus, deparou-se com uma circunferência formada por jovens no seu canto preferido. Enquanto orava, a loira que do outro lado aguardava pelo "selfie", foi enfeitando o telefone do irmão Catorze-Quatro com mensagens eróticas e imagens, umas em estado animalesco e em poses “kamasutranas”, que divertiram, nos quinze minutos da sua longa petição de “perdão e abertura dos bolsos", os jovens que rápido se abeiraram das suas máquinas: um potente telefone e uma interlocutora da conversa virtual “bem calibrada” fisicamente e com tudo à mostra.

Quando se dirigiu ao assento, foi recebido com um criativo "irmão Catorze, temos de redobrar a vigilância e vergar cada vez mais o joelho, os telefones estão cheios de perigos”, ao que respondeu com um cabisbaixo “sim, irmãos. O mundo é um ‘pirigo’ permanente”, dando-se conta do "cinema sem bilhete” que proporcionou à miudagem, ao mesmo tempo que eliminava, uma após outra, as mensagens eróticas e imagens com a “cipala” e o "peito alto" da “kindoza” que se parecia a uma “kuribeka” barata e caçadora de tesouros.

"Irmão 'Pirigo'", irmão Pirigoéé?! - Zombam hoje os jovens, dentro e fora da igreja, sempre que Catorze-Quatro põe a cara fora do quintal. A sua fama ainda corre o Rangel, pois apesar do acontecimento levar já décadas, os miúdos que se tornam adolescentes e jovens ainda escrevem, e cada vez mais, em todas as ruas onde é conhecido: "por cá também passou o irmão 'Pirigo!'"

Texto publicado pelo Semanário Angolense a 19.09.2015

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

CRIANDO SOBRE A CRISE

Conversavam sobre o futuro da gestão dos seus lares, agora que a economia do país enfrenta dificuldades. Zara e Kuka são comadres e colegas de trabalho.
- Kuka, sabes quais são os princípios que uma boa administradora de casa precisa ter para cuidar bem das finanças pessoais e educar os de casa? -Questionou Zara que frequentara um curso de economia doméstica.
- Não, colega Zara. Podes explicar-me? - Kuka estava expectante, ante as conversas que ouvira durante o percurso de casa ao local de prestaçao de serviços.
- Olha bem – começou Zara. - Mapear  os alvos, as metas e a missão é de extrema importância. A isso se junta a visão que aponta o que queremos ser ou fazer e a disciplina que nos permite estarmos focados naquilo que idealizamos. É preciso também coragem e Generosidade. - Explicou à amiga que seguia com atenção.
Zara, percebi algumas coisas, mas, que tal se me deres mesmo uma lição. Sei que é mais ou menos entendida nessas coisas de economia doméstica. – Solicitou Kuka.
- Planeamento é projectar, tencionar ou elaborar um o plano. Por exemplo, queres diminuir as compras porque a receita ou o que recebes no fim do mês baixou ou o valor nominal se mantém, mas o poder de compra baixou. Nesse caso, tens de fazer um projecto de contenção de custos e eliminação de gorduras e desperdícios. – Zara ainda ai a discorrer mas a curiosidade de Kuka era tanta que voltou a interromper.
- E quê isso de gordura?
- Gordura é tudo o que é a mais e pode ser eliminado nas nossas compras. Se um par de sapatos e respectiva caixa custar mais,  deixamos a caixa e na mesma temos os sapatos. É um exemplo mas temos vários outros. É preciso gastar menos do que se ganha ou ter um equilíbrio entre o que se ganha e o que se deve gastar. Olha que o planejamento financeiro Pessoal é um plano de acção que deve acompanhar a vida das pessoas em tempos como os que se avizinham.
- Já viste, Zara? Estou a compreender aos poucos. Quer dizer que temos de pensar de forma antecipada e pensa melhor no que devemos gastar e como gastar? Devemos ser pessoas organizadas para ter sucesso financeiro na vida? Devemos fazer mais em menos tempo? –O interesse e as perguntas de Cuca pareciam não ter fim.
- Sim. É isso mesmo colega. – Confirmou Zara. - Planear é administrar com excelência. Para começar, precisamos de colocar numa folha de Excel todos os nossos rendimentos mensais e listar todas as nossas necessidades que envolvam dinheiro e distribuir em percentagens, sem nos esquecermos de uma reserva para as imprevisões. Eu já tenho a minha folha e estou a exercitar a sua implementação. - Explicou Zara.
- E qual pode ser o efeito imediato disso, Zara? - Voltou a indagar Kuka já mais familiarizada.
- Você vê, por exemplo, que só tem dez mil Kwanzas ao mês para a formação do seu menino. Com a distribuiçao de parcelas do orçamwento por rubricas, terá de encontrar um serviço compativel com o dinheiro que tem. É mais um exemplo. – Reforçou Zara. –Imagine que em sua casa vivam cinco pessoas e bebem cinco garrafas de gasosa que custam mais do que um pet de litro e meio. Se comprar o pet fica mais em conta. Já viu?
- Olha, colega, não precisas de ir mais longe na explicação. Obrigado pela aula. Vou começar por corta os nossos dois nomes: Irei cada vez menos à Zara e usarei cada vez menos a Kuka. Os apadrinhamentos, as festas, os amistosos do seu compadre ficam todos com rubricas e so acontecerão esporádicamente, caso haja cabimentaçao. Também vou começar a procura produtos alternaticvos para aqueles que estejam muito caros ou que sejam de duraçao muito reduzida. Sabes que barato, às vezes, também sai caro, nê?!  -Ironizou Kuka que estava muito feliz e pronta a transmitir os conhecomentos que obtivera às demais colegas de trabalho e à família.
- É isso mesmo, Kuka, em tempos de crise nada melhor do que criar. É só retirar o S. Comigo é: se há CRISE, CRIE! –Disse Zara, já a entrar para o seu gabinete.