terça-feira, 20 de dezembro de 2016

EXODO NA ENHANLA


Enhãnla, Estado ribeirinho, cercado pelo reino de Kamunda, é um território do continente Acirfa de Júpiter. O povo de Enhãnla, modesto nas posses e excessivo na ostentação, vive de pequenos plantios nos seus solos ricamente abençoados e cravados por ribeiros caudalosos e de águas lúcidas que permanecem durante as duas estações do ano jupteriano. A indústria, ainda nascente, se reporta à abundante mineração carboniana, material pedregoso, ouro e outros que enfeitam as lendas que trespassam gerações e gerações sem nunca os habitantes aplicarem a força dos cérebros e das máquinas ao solo cravejado de riquezas improvadas e incalculadas.

Próximo de Enhãnla, no reino da Kamunda, vivia um rei, já velho e de respeito incomensurável, Ngan’Ebata, o Senhor da Casa ou Senhor do território, cujo poder, às vezes, escapava as suas fronteiras e adentrava a Enhãnla do presidente Ndvumba, ainda jovem  e muito apegado às civilizações terrenas, um planeta com o qual a Enhãnla pleiteava a órbitra solar. Na Kamunda, território que aos olhos dos seus habitantes parecia sem fim, o povo era monoteísta. Ngan’Ebata era a razão de ser e o fim último dos seus súbditos que o adoravam de sol em sol e de chuva em chuva. Os agnósticos e hereges há muito tinham sido convidados a abandonar o reino ou se refugiado voluntariamente na Enhãnla para escapar da espada vermelha do rei-deus do território maior de Acirfa que se preparava para liderar um único Estado-Continente de Júpiter.

Ainda na Kamunda, as artes haviam sido divididas entre maiores e menores, com primazia às vocais por serem as que melhor deificavam o rei-deus. Os desportos cantavam a sua glória e até o que restava das três mais antigas organizações sociais curvava-se aos pés de Ngan’Ebata, também cognominado de “O Senhor do Poder sem medida e sem fim“.

- Ao rei toda a glória. A mim todo o respeito! – Apregoava nas suas homilias, Ngan’Ebata, nos eventos que os súbditos organizavam em sua homenagem em seus sumptuosos castelos e palácios ou quando se fazia circular nas suas riquíssimas fortalezas automóveis.

- O poder me foi delegado pela divindade extraplanetária e só a ele o entregarei quando o tempo chegar. - Dizia outras vezes, mas sempre interrompido pelos súbditos da “escova mais lustrosas “ que não se cansavam nos elogios. E Eufóricos replicavam:

- Por que não a seus herdeiros, Sua Majestade Santíssima?

Assim ditas, as palavras rejubilavam a corte inteira que encontrava encostos almofadados num povo que, aos olhos dos seus vizinhos da Enhãnla, se parecia exausto, depauperado e com riquezas subjupterianas exauridas, depois de uma extracção massiva e concentrada nas mãos de Sua Majestade Santíssima. Foi assim que começou o êxodo para a República vizinha da savana húmida e arbórea onde tudo parecia ainda em estado virginal. As riquezas ocultas no subsolo; a vida política, embora começasse a ser influenciadas pelos maus ventos da Kamunda, e toda a organização social estavam ainda pintadas de rosa. Era, realmente, um mar rosado e esverdeado, encravado num manto plano que se mostrava a nordeste.

Primeiro os homens, depois as crianças e por último as mulheres fizeram-se além marco, seguindo caminhos vários há muito traçados, cujo destino era um só: Enhãnla onde confluíam novas crenças e certezas.

Uns creram em refundar suas vidas longe da Kamunda. Outros alimentaram esperanças caducas de verem sua Majestade Santíssima voltar aos tempos da sua regência jovial. Outros ainda esquadrinhavam o sonho de inundar a República de Enhãnla com metade da população de Kamunda para passarem à fusão dos territórios e encontrar um governo de centro que aglutinasse todas as vontades.

- Apenas a geografia nos diferencia entre montanhenses e pradianos. Todo o resto é igual. - Apregoavam os unionistas que eram compreendidos na terra de exílio, sendo dos mais respeitados e  tendo ganho a simpatia da autoridade republicana de Enhãnla que lhes concedia espaço para o desenvolvimento da actividade económica que ia da cultura de vegetais à pecuária e do comércio à prospecção mineira e indústria extractiva de recursos ocultos. Ngana Kyombo era o líder dos unionistas saídos da Kamunda e refugiados na Enhãnla.

Exilado há vinte e nove anos, os negócios de Ngana Kyombo tinham já tentáculos vários e exalava influências por onde quer que passasse. Com a ajuda de alguns notáveis da Enhãnla tinha conseguido algumas conceções mineiras em Ekaproville, região a leste do Estado, onde despontavam granadinas e relatos sobre ocorrências de carbono tenaz.

- Vamos fazer dinheiro com as brilhantinas carbónicas e restaurar a Kamunda. – Dizia Ngana Kyombo, aos seus mais próximos, com a mesma energia com que os impelia a se formar e aperfeiçoar na gestão de negócios e organizações empresariais. Tudo corria de vento em popa, como era comum dizer-se em Enhãnla, quando os negócios corressem de forma maravilhosa. Mas um dia, daqueles dias de sol ausente e frio presente, quando é a neblina friorenta e translúcida que se sobrepõe à luzidia bola amarela carregada de calor, um leão faminto fez-se presente entre os seus homens que realizavam a prospecção de moléculas de carbono compactado por pressão secular e calor subjupteriano. Instalou-se o pânico. A primeira ideia foi a de “fugir antes de tudo”. Depois viriam as ideias. Junta-las, seleccionar as melhores, mediante a exclusão das piores. A legislação ordinária, o direito consuetudinário e o costume seriam também postos na balança. Os gritos do planeta e mesmo a moda reinante na esfera inter-planetária apontavam para a busca da coabitação entre felinos e jupterianos. Os habitantes de Enhãnla não eram humanos. Apenas jupterianos, uns ET na análise racional de seus coetâneos do continente África do planeta Terra. Mas havia também felinos jupterianos, semelhantes aos leões de África.

A concessão de Kalimarc, no distrito centro de Enhãnla, carecia de injecção de dinheiro fresco dos accionistas. O dinheiro estava sendo dificultado pelos relatos dos prospectores que alertavam, dias sem fim, a presença dos felinos que colocavam as suas vidas em constante perigo. Apenas a teimosia dos carreiristas e o caloirismo dos jovens estagiários, que pretendiam dourar os curricula, permitiam pesquisas residuais naquela concessão mais à beira do fecho das operações do que da injecção de dinheiro fresco pretendido. Matar o animal e preservar os jupterianos ou deixar o espaço aos seus habitantes naturais? A pergunta ecoava de canto a canto da coutada de Kelimarc, concedida, contra natura,  para exploração mineral e um pouco por toda a Enhãnla.

Barbatana, um jupteriano com experiência de direcção em campanhas de pesquisas semelhantes no reino da Kamunda, enquanto chefe da equipa jupteriana, sabendo que “matar a razão do medo podia redundar em aposta na pesquisa”, decidiu premir o gatilho.

Bumm! Disparo certeiro no centro da encefalia. Jazia defunto o temido bicho jubento e com dentes há décadas cariados. Acto contínuo, Barbatana carente de dinheiro, mobilizou a media e mostrou a fraqueza do temível animal abraçando o máscula rocha superficial jupteriana. Choveram elogios. Barbatana de herói se fez e corou encomendou.

Não tinha entretanto sido contada toda a estória. O filme ainda desenrolava. Minutos depois, o telefone tocou.

- Aló! É o inspector Barbatanas? – Questionava o conselho transplanetário do ambiente.

- Sim, Vossa Excelência Generalíssima. – Respondeu arrítmico na vocalidade o “general Barbatana” como era conhecido entre os prospectores. Era ele o chefe das operações.

- Pois é, Senhor Barbatana, gostaríamos de saber de onde terá a sua equipa recebido a ordem para abater o animal felino. Foi da corte enhanlense ou da coordenação planetária? – Indagou o responsável supremo da preservação biosférica.

Ente medos e razões, a cobardia falou alto. Barbatana, apesar de longevo residente, era expatriado e sabia que as autoridades enhanlenses, se pressionadas pela coordenação planetária, não vacilariam em manda-lo de volta à terra de Sua Excelência, Majestade Santíssima, a Kamunda. Decidiu desfazer-se dos feitos heroicos e oferece-los ao autógene local.

- Excelência, nós apenas fomos chamados como testemunhas de um facto de que nos congratulamos por um quarto e condenamos por  três quartos. É que, apesar do enorme perigo que enfrentava a nossa equipa de prospecção, jamais nos passaria pela cabeça extirpar a vida de um pacato felino. O autógene local, sem o nosso conhecimento, teve a infeliz iniciativa de acabar com o felino que o surpreendeu na flora abundante, quando procurava resgatar um babuíno de estimação. Do confronto, narrou-nos o autógene, resultou a morte do felino que, até à consumação dos factos, era caracterizado por um pacifismo inaudito. - Relatou eufémico Barbatana, acrescentando ainda que o premir do gatilho da caçadeira “22 longos” só ocorreu depois de o autógene amedrontado pelo animal ter permanecido cinco horas no último ganlho de um arbusto de dois metros.

A estória ainda corre. Sabe-se que Barbatana está por responder se “entre a preservação da vida dos jupterianos em busca de riquezas e o abate do felino qual dos direitos se sobrepõe a outro“. Sabendo-se que descartou o feito que o levaria a herói da Enhanla, resta saber que passo dará quando for chamado a depor na audiência jupteriana.

sábado, 10 de dezembro de 2016

A HORA DA GOVERNAÇAO ELECTRÓNICA


Era hora de almoço. No serviço, uma repartição pública da cidade alta do Huambo, Job Katende e seu amigo Manuel Duas Horas, falavam sobre os avanços tecnológicos entre o cruzamento dos Séculos XX e XXI e as dificuldades e resistências que ainda se verificavam nas Organizações do Estado e também em algumas privadas.
- As máquinas de dactilografia fizeram o seu papel, tornando legíveis, padronizados e ágeis processos de elaboração de documentos institucionais. Depois vieram as máquinas electrónicas, programáveis, rápidas e com um output mais vistoso. Quem não se lembra de como eram tão lindos aqueles documentos processados numa máquina movida a impulsos electrónicos e que ficava a meio caminho entre a velha máquina mecânica de dactilografar e a moderno computador? – Atirou  Manuel Duas Horas, com o garfo entre a boca e o prato de pirão.
 
Ainda hoje me fazem saudade. - Interrompeu Job Katende, regressando às memorias com já meio século de tamanho. O Governo Electrónico deve ser um caminho para ultrapassar os problemas que estamos com ele. Pode não ser longo, até porque hoje o maior inimigo do homem é o tempo e o melhor amigo é a tecnologia. – Reconheceu puxando o colega para mais dissensões a respeito do assunto em pauta. Era hábito entre os dois buscarem uma conversa inovadora e actual para regar os manjares.
Pois é, mano Manuel. ‘ Retomou Job Katende. A adopçao da Governação  Electrónica deve ser um plano institucional com etapas bem delineadas, com recursos, capacitação do capital humano em todas as frentes da pirâmide hierárquica, e sobretudo, exige mentalização do liderança da organização. Não pode ser chamada ou evocada apenas para fazer frente a falta de papel, tonel e tinteiros, quando as pessoas não têm computadores nem usam Outlook, quando algumas organizações correm para século XXII e umas ainda teimosas no século XX. Não se deve falar de Governo Electrónico quando na mesma organização uns navegam na internet e outros nem à velha máquina sabem dactilografar. É preciso saber que o governo electrónico das empresas requer uma mesa e uma cadeira por pessoa, uma máquina que se deprecia com o tempo, mesmo que aparentemente pareçam estar em condições. Essa crise que estamos com ela passa. A crise vamos combater com inteligência, chamando soluções adequadas a cada momento e circunstâncias. Porém, chamar soluções para as quais não se esteja estruturado pode ser paradoxal.
 

Mal Katende terminou o seu rosário, a sala viu entrar Nkosi Mwenaxi, especialista em tecnologias de informação a quem sempre se recorria quando o assunto fosse internet e conexos.

- Boa tarde Mano Nkosi, já sabe que andamos sempre a tertuliar para empurrar o pirão quando o almoço é em branco. Sinta-se convidado à nossa mesa e a água fica já sob nossa responsabilidade. ‘ Convidou Manuel Duas horas ávido de mais conhecimentos sobre Governo Electrónico que só há poucos dias começava a entender, deixando de o confundir com a estrutura política que rege a organização e gestão do Estado.

Atento e interessado no assunto, Nkosi Mwenaxi começou assim a sua preleção: numa era de carências, as mentes são chamadas à exercitação diária para afinar-se mecanismo e se encontrar vias expeditas que permitam o andamento da engrenagem administrativa. Sem recursos nalgumas organizações para a compra de insumos administrativos como papel, tonel, tinteiros, combustível e outros materiais de reposição permanente, a palavra Governação  Electrónica é evocada de hora a hora e sempre que os procedimentos tradicionais de elaboração e expedição de documentos se mostre impraticável.
O que é então governação electrónica e qual é a demanda da governação electrónica?
O bloguista moçambicano Viriato Caetano Dias, na sua pág: http://macua.blogs.com/moambique_para_todos, afirma que a Governação Electrónica não é mais do que o uso das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no sector público e não só... para a melhoria de vida (das organizações) dos cidadão e do país em geral.

Segundo o mesmo autor, a aposta na Governação Electrónica, entre os mais diversos objectivos realizáveis, visa:

» ”Proporcionar o acesso universal à informação a todos os cidadão e funcionários  para melhorar o seu nível e desempenho profissional (administração, educação, ciência e tecnologia, saúde, cultura, etc.).

» Criar uma rede electrónica do Governo que concorra para aumentar a eficácia e eficiência das instituições do Estado e contribua para a redução dos custos operacionais e melhoria da qualidade de serviços prestados ao publico”.

Remete-nos tambem à ideia de facilitar o cidadao na interaçao com as instituiçoes do Erstado e outras, proporcionando informaçao adequada e actualizada aos contribuintes, disposiçao de bens e serviços aos utentes, através de redes cibernéticas ou portais que facilitam a informaçao, acesso aos serviços, usufruto e prestaçao de deveres e obrigaçoes como o pagamento de coimas, escolha de representantes, constituiçao de orgabnizaçoes, etc.

Para a materialização dos pressupostos acima elencados torna-se necessário suprir quesitos como: equipamento, modernização, manutenção e capacitação do Capital Humano.

- O quesito equipamento remete-nos ao apetrechamento das instituições com tecnologia electrónica para dar vasão ou  fluidez aos processos. Computadores, impressoras, data shows, scanners, instalações para trafegar as informações, softwares, servidores, contas de e-mail corporativo (informação institucional não deve ser trafegada em caminhos alheios) entre outris, são imprescindíveis para que haja uma cultura de governação digital.

- A modernização tem a ver com a atualização dos equipamentos e programas cujo dinamismo de evolução não pode ser ignorado. Torna-se necessário que as organizações estejam a par da revolução tecnológica, não ficando distanciados dela, pois programas e máquinas em desuso podem complicar mais do que facilitar ao não corresponder com os exemplares modernos nem reagir no tempo e performances deles esperados.

- A manutenção é o pilar da durabilidade e fiabilidade: programas de combate às invasões virais, manutenção preventiva e reativa dos hardwares, testagens dos sistemas operativos, entre outros, devem ser permanentes para que não haja estrangulamento na recepção, processamento e saída de informações ou dados.

- Capacitação: para além da autossuperação, as pessoas e organizações a que o Capital Humano pertença têm de estar envolvidos em planos e programas de capacitação e refrescamento contínuos em TIC. Como conceber a Governação Electrónica numa organização em que haja pessoal administrativo sem conta de e-mail ou que ignore as vantagens da internet?

Podíamos elencar outros elementos, mas esses bem servem para uma reflexão preliminar. A todos eles se deve agregar o Capital Financeiro que é de extrema utilidade e condicionante.

Sendo que a necessidade nos impele a pensar fora do comum, uma vez aqui chegados, é tempo de despertar os assessores, consultores e orçamentistas para o exercício de uma magistratura de  influência positiva junto dos decisores de topo para um olhar mais atento e  agregador aos factores que podem ou não alavancar uma eficiente Governação Electrónica nas organizações públicas e privadas: é necessário investir em materiais informáticos, seguir a sua evolução, desmobilizar o  equipamento com vida útil vencida, investir em programas ou softwares de protecção, proceder as manutenções preventivas, actualizar os softwares, substituir os periféricos que se tenham avariado, etc. É desta forma que as organizações afectadas pela crise financeira ultrapassarão a crise de resultados laborais. Mesmo em agricultura, as boas safras muito dependem da forma como as campanhas agrícolas sao preparadas e como o plantio foi seguido ao longo do seu crescimento.

Boa reflexão e crítica.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

REENCONTROS E DESENCONTROS

Nascia o mês de junho de 2005. Luanda transitava entre o calor do meio-dia e o frio da meia-noite. Viana, Terraço, tinha sido o destino depois de uma semana repleta de trabalho e provaçoes. Três colegas de serviço, em companhia da irmã de uma das co-laboradoras voltavam a Luanda sonolentos e cansados, depois de pé de dança para os dotados nesta vertente lúdica e alguns tragos para outros. O Vemba tinha aproveitado fazer as suas, sempre oportunas, reportagens que alimentavam a sua página cultural nos noticiários nocturnos da estaçao radiofónica LAC. A viagem de ida, numa mini-coluna de duas viaturas e sete pessoas e o convívio até ai corriam à feição.

- Sigamos com calma (vagar)e os condutores, Vemba e Adilson, não devem ultrapar os cem quilómetros horários. - A voz Soberana fazia-se ouvir, apesar de meio turva, dada a madrugada. Reclamava caldo regado para às seis abrir a emissão da 995, também baptizada como Estaçao Azul.

Já a primeira das duas viaturas se tinha afundado no horizonte visual. A cidade sonhava ainda, antes de acordar.  Mal se fizeram anunciar as luzes da Avenida Deolinda Rodrigues, o Kia Avla, em que seguiam os tres mais uma, decidiu ziguezaguear, levando-os à assassina árvore engordava e se pintava de sangue nas barbas do que é hoje o Comando Provincial da Policia de Luanda.

Era ainda no tempo das vias estreitas, entremeadas por um largo e longo "chourição" arborizado que separava os veículos a caminho de Catete e aqueles que visitavam a capital. Do outro lado da via, qual Lucifer vestido de branco, com os braços abertos, aguardava-os a Snt'Ana sepulcral antro com seus lúgubres lençóis.

- Sono? Embriaguez? Imperícia? Outra coisa não verbalizada? - As perguntas gritantes e mudas permanecem. Quem as podia responder já cá não está. Porém, a embriaguez e outras coisas meditadas em surdina posso descartar.

- O rapaz que girava o volante e pedalava a velocidade nao era de trambiquices nem bebedices. Era rapaz de muito juízo na cabeça. Só podia ser sono. Embriaguez nao. Malandrice também nao. – Declararam as velhas e kotas do bairro que o viram nascer e crescer.

De repente, tão rápido quanto o acidente, curiosos, polícias, bombeiros e jornalistas fizeram-se ao local, qual maratona sabática em dias de campanha eleitoral. Choveram apelos na rádio Kyanda para que se mobilizassem meios e homens para salvar os infelizes.

- São jornalistas. Salvem os nossos colegas. - Verberou-se suplicante nos 999 de frequência e nas bocas atónitas dos presentes e ausentes preocupados.

Juntaram-se sinergias para o desencarceramento dos ocupantes do veículo encolhido e abraçado à árvore máscula. Três dos quatro corpos ensardinhados suplicavam socorro às vidas que rapidamente eram sugadas pelo abismo faminto.

Machados, serras, tudo que os bombeiros usam e o povo guarda no escuro para se defender na hora do "dá-me teu suor", pouco servia para cortar o volante, o tejadilho e desfazer as portas. O motor recuado no embate contra a árvore arrastou tudo para trás.

- Por favor, estiquem o carro porque temos os pés longe dos corpos. - A voz Soberana, ainda distante do seu estado físico real, fazia-se suplicante.

Ouvida, o  Avla seria esticado, deppois de amarrado de frente, à mesma árvore que também sangrava, e puxado pelo camião dos bombeiros.

Antes de terminar o desencarceramento, já um dos sinistrados, Vemba,  desfalecia no terreno. Não se ouvira dele sequer um ai.

Chegados ao Maria Pia, levados em duas viagens pela carrinha da patrulha policial, primeiro os ocupantes do lado esquerdo e depois os do lado direito, os companheiros de viagem e desgraça encontrariam Leonardo Inocêncio, jovem chegado das terras de Fidel, mãos afinadas e firmas no infalível bisturi. Sem ordenado ainda, mas com a mente casada com Hipócrates, mostrava aí a sua proeza altruística.

- Doutor será que ainda viverei? - Perguntou-o o Soba preocupado, depois de confirmar o finamento do colega e amigo Vemba.

- Vives, meu amigo. Vives, podes crer! - Respondeu convicto, o cirurgiao, no fim do seu trabalho.

Dez anos depois, sem que as imagens faciais pudessem ser revisitadas, ei-los juntos, a frequentar um mesmo curso destinado a administradores da Função Pública. Em "conversa puxa conversa", médico e paciente revivem o dia do acidente e de imediato se identificam.

- És tu que estavas naquele acidente de jornalistas? – Ingadou Leonardo.

- Sim. Sou eu doutor. Éramos quatro. Morreram duas pessoas e sobreviveram duas. - Explicou o sobrevivo Soba.

- Por favor, quero confirmar. Vamos sair e mostra a cicatriz. - Orientou o cirurgião com a mesma autoridade que usa no Hospital perante os pacientes.

Mostrada a cicatriz abdominal, o "kimbanda kya Putu" voltou a questionar: - E qual dos pés sofreu cirurgia?

- O esquerdo, Doutor  Inocêncio. - Confirmou o Soba, mostrando também a cicatriz na perna que tinha o tornozelo quebrado.

- Pois é. És tu mesmo. - Confirmou o médico. Abraçaram-se aí mesmo, no corredor longo e iluminado do edifício.

- É meu paciente. É verdade. - Disse Leonardo à vintena de colegas que aguardavam pela perícia. - "A ferida é minha". Conheço as minhas impressões. - Ironizou.

Abraçaram-se novamente perante o olhar pasmado da turma e do professor. Choveram agradecimentos e recomendações ao médico anestesista que com Leonardo trabalhou na madrugada daquele primeiro  de junho.

- Obrigado Dr. Leonardo Europeu Inocêncio, por ter, com sua perícia, impedido que o abismo me sugasse ao seu leito negro.