quinta-feira, 20 de outubro de 2016

PREFÁCIO ÀS "CONVULSÕES DO MEU PENSAR"


PREFÁCIO

Nesta fase delicada do uso da Língua que nos faz Nação, em que boa parte da nossa juventude vive os dilemas do “Enxaguar ou Ensaboar”; do “através ou por causa” e ainda do “lhe em vez de o-a” (vou lhe visitar ou vou visita-lo?), fiquei positivamente surpreendido ao folhear os textos versificados do Edy Lobo. Parabéns pela forma cuidada com que usas o nosso principal veículo de comunicação e de literacia.

À semelhança dos caminhos que me levaram ao meu padrinho literário, Tazuary Nkeita, Edy e eu conhecemo-nos pela via (através) da rede social Face Book, tendo me sido encaminhado pela amiga comum Luísa Rogério com quem trilho léguas profissionais.

Surpreendeu-me a humildade de um jovem desse tempo em que mais se grita do que se conversa e mais se conjuga o verbo ter do que o ser (valores). Para além de imaginativo e laborioso (a arte da escrita remete o executor à inspiração e transpiração), Edy Lobo é também um bom conversador, recheado de maneiras e polimento. E é também isso o que o leitor encontrará na presente obra: puros diálogos versificados.

Teu amor não me é suficiente...Teu amor não me chega! | Ao mar quero pedir razões para uma só mulher amar. (In: UM SÓ AMOR NÃO ME CHEGA).

É, de facto, o amor, nas suas distintas dimensões, que Edy Lobo apregoa em todas as páginas deste livro.

Para mim, é uma das características da poesia dizer grandes coisas com palavras poucas. E, recriando Arlindo Barbeitos, diria mais. O poeta não grita mas também não emudece perante situações que do quotidiano que despertem o seu olhar crítico.

Nessas “Convulsões do pensamento”, Edy Lobo procura trazer-nos ideias sobre as pessoas, a vida e o amor. O leitor aperceber-se-á disso nas leituras que permitem o texto poético.

À guisa de isco e cônscio da intangibilidade do texto poético, dada a sua acentuada polissemia, convido-o à leitura do poema-título “Nas convulsões do meu pensar”, (pág. __) que confirma as preocupações do autor com o homem, enquanto ser social, gregário e racional, doptado de valores universais que se deviam manter invioláveis.

Edy Lobo lança-nos, nessa sua obra primeira, um alerta para o despertar do sono e da apatia, ante o surgimento de novos fenómenos que ensombram a nossa (co)existência. E, o nosso poeta “convulsiona” ao se debater com “Amores económicos (que) gritam em qualquer esquina|Ventos corruptos (que) incentivam a mais inocente menina| Adultos logros despidos totalmente de juízo...

Lida proposta em presença, encontro em Edy Lobo uma picada aberta (que como qualquer arte e artista deverá ser trabalhada) para uma longa jornada literária. Muito mais reterá, para além destas humildes palavras, depois de percorrer a totalidade das páginas que fazem esse livro, missão para a qual lhe endosso o convite.

Ao terminar, consolo-me com a riqueza da sabedoria bantu que nos orienta: O caminho faz-se caminhando.

Segue o teu caminho, poeta Edy Lobo!

Soberano Canhanga, Luanda, 18 de Janeiro de 2016.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

MULONDOLO PARA DOR DE COLUNA E "OUTRASCOISA" DOS MAIS VELHOS!

Viajávamos da capital ao interior, minha terra natal. Ao longo do trajecto de 270 Km, revezados entre pavimento selado e buracos que ameaçam os automóveis, é Man Prole, o músico do Kwanza-Sul, quem nos faz companhia com as suas  melhores quetas de todos os tempos.
- Papá, ele está a cantar o quê? - Pergunta o filho derradeiro, algo aborrecido. A queta que me leva aos anos oitenta do século finado nada lhe diz. Pior ainda porque cantada em Kimbundu, língua que só ouve soar quando é visitado ou visita a avó que intercala sempre expressões lusitanas e o seu Kimbundu materno.
- Ele está a cantar que a mãe está a pensar e a chorar o filho desaparecido na tropa. - Traduzi para o infante.
- Papá, na tropa é longe?-  Voltou a indagar o petiz, agora interessado na explicação.
- A tropa não é um lugar. Tropa é o militar. No passado todos os jovens rapazes eram obrigados a ser tropa e muitos morriam na guerra.
- Guerra é o que papá? É como no filme que fazem tiros?
- Sim, filho. Faziam disparos mas eram de verdade e as pessoas morriam mesmo. Morreu muita gente longe de casa e sem que os familiares tomassem conhecimento do óbito. Havia pessoas que eram choradas devido a falta de notícias mas que reapareciam. Quando assim sucedesse, as famílias faziam festa grande. Outros jovens idos ao serviço militar eram esperados e nunca mais vinham. Mas as mães nunca desistiam de procurar por notícias dos filhos ausentes ou de lamentar. É isso que Man Prole canta.
- E o papá também foi tropa como o meu padrinho?
- Sim, filho. Fui tropa mas estive na rectaguarda, a guardar a vila de Kalulu enquanto os tropas mais velhos iam fazer barreira à frente.
- E o papá andava de traz como o carro quando anda de rectaguarda? É por isso é que a casa da avó ficou muito distante, n´é papá?
A conversa entre pai e filho ia animada. O volume da música tinha sido baixado ao máximo. Com o gotejar furioso da chuva só se ouvia mesmo um ruído imperceptível o que parecia agradar o infante que questionava com mestria.
- Papá o meu padrinho me disse que a guerra já acabou. É verdade, papá?
- Sim, filho. Felizmente, já não há guerra. Por isso é que viemos de carro ver a avó e agora vamos visitar a tia. Antes não era possível andar de carro em segurança porque os que estavam nas matas queimavam os carros.
- Eles, assim, eram bandidos, não é papá?
- Sim. Digamos que sim. Era assim que os tratávamos mas agora já são nossos amigos. Paz é perdoar os erros do passado e fazer coisas novas em comum.
O rapaz, seis anos ainda, pareceu ter percebido a explanação sobre os lamentos reproduzidos pelo músico Man Prole: a guerra, as mortes, a paz e a reconciliação e reconstrução nacional. Porém, antes mesmo que adormecesse, o arrastar da blindagem num buraco que se candidatava a cratera, junto à ponte do Longa (EN120), fê-lo despertar e voltar às perguntas.
- O papá disse que guerra já acabou. E porquê que o carro se arrastou?
Fiquei segundos sem responder. Enquanto endireitava o que lhe dizer, preocupei-me em encontrar um sitio seguro, já no lado da Quibala, que não prejudicasse a circulação dos outros automobilistas e parei para ver eventuais danos na viatura e esticar a coluna há muito afectada por uma lombalgia. O rapaz aproveitou desfazer-se da ureia e apreciar outros meninos, alguns de sua idade, que empunhavam umas raízes com um cheiro intenso e seiva branca.
- Papá, olha. Os meninos estão a mostrar ao papá uns paus. É quê?
Antes mesmo que ensaiasse a resposta, um coetâneo do Arlindo passou à frente e atirou:
- É mulondolo. É "midicamento" para dor de coluna e "outrascoisa" dos mais velhos. Tio, compra. É barato e se quiser pode provar na raiz ou no charope (raízes demolhadas num frasco).
Katerça, assim nomeado por nascer numa terça Luarenta, conforme narrou, frequentou a primeira classe na escola de Kikole. Tem nove anos, apesar de aparentar menos. "Me ferraram na altura", explicou-se quando o informei que o meu "kasule" tinha apenas seis. Contou que vende (raízes de) mulondolo (ao que dizem com propriedades analgésicas e afrodisíacas) para juntar dinheiro para a roupa e os cadernos que vai usar no próximo ano lectivo.
- Aqui é assim. Os mais velhos vão redar (pescar com tarrafa) e vendem o peixe que sobra para ter dinheiro. Nós crianças, assim que o rio (Longa) está muito cheio, para não nos arrastar na água, cavamos mulondolo e vendemos "nos" tios que vão a Luanda ou no Huambo. Outros, conforme o tio está a ver, ficam a tapar os buracos na estrada e os motoristas também lhes oferecem dinheiro. - Explicou o petiz, sem gaguejar e acrescentando: se o tio não gosta de mulondolo pode comprar milho fervido "na" minha mana que está ali, na sombra.
Abri a porta moedas da viatura e descobri uma nota de valor modesto que estiquei ao bracito do rapaz.
- Toma Katerça. É para comprar mesmo um caderno. Espero que chegue. É uma pena o tio não ter mais...
- Obrigado tio. Deus te ajude e te faça vir mais vezes aqui. E mulondolo vai deixar? Não quer um "kabucado" de favor? – Retribuiu o rapaz.
Agradeci a oferta desinteressada do Katerça e aconselhei-o que estudasse sempre, não se esquecendo, todos os dias, de fazer os exercícios do livro de matemática, para além de exercitar a leitura.
Na minha terra há um adágio que reza “kayete lya sapo kayoto”! (o que não se exemplifica não convence ou não anima!). Para que ficasse claro, contei-lhe um pouco da minha experiência.
- O tio, quando era pequeno, também vendeu, ajudando a mãe. Hoje tenho emprego graças à escola, exemplifiquei.
Katerça agradeceu e eu parti, debaixo dum teimoso chuvisco, quase a verter a terceira lágrima.
Os instantes seguintes foram novamente do Arlindo que meteu a limpo as dúvidas sobre mulondolo e aquela estória contada ao menino Katerça sobre as vendas do tio enquanto miúdo.
-O papá vendeu o quê? O papá fez o quê com o dinheiro? – Foi um perguntar sucessivo a que se seguiram respostas que já não ouviu. Embalou com os batimentos da chuva sobre o tejadilho da viatura e quando despertou já tínhamos chegado à casa da tia Júlia.

sábado, 1 de outubro de 2016

QUEIXUMES DE MARIA


- Mas, ó Kanyanga, dizem que és Soberano. É verdade?
- Sim Maria. Sou um soberano. Soba grande que é saudado com rajada de palmas e de joelho curvado.

- Hum? Soba ou sopa? - Voltou a questionar Maria.
- Soba. S+o+b+a. Autoridade. Gajo que "mija" de acordo ao legado histórico-cultural do povo bantu, associando o direito costumeiro e o positivo. - Expliquei para que não houvesse mais equívocos.
Maria, porém, parecia não estar satisfeita e intercalava a música suave do seu motor com queixumes, próprios de quem está prenhe e que desliza sobre solo acidentado.

- Conheces o governa a dor Júnior Henry Quê? - Perguntou.
- Sim. Conheço. Já estive com ele algumas vezes no tempo em que andava a chefiar os pesca a dores.

- E o chefe Brita masculina? – Voltou a indagar Maria. 

- Brita masculina? Como assim, Maria? - Retorqui, aproveitando engatar-lhe uma carinhosa quarta farfalhada.

- Sim. É isso mesmo que ouviste. Se brita é feminino como seria o masculino caso houvesse?

- Hum?! Já sei aonde queres chegar. Também conheço, embora seja só de ver na televisão e ler nos jornais.

- Mas, um soberano que conhece tanta gente que manda, com tantos poderes que tens, nada fazes para aliviar o sofrimento da tua dama?

- Mas, Maria, (fiz pausa para endireitar o discurso) que queres, afinal de contas e que não dizes logo? Aprecio a tua música quando estás embalada. Aprecio também os teus gemidos prazerosos, quando nos encaixamos um na outra. Dizes que gostas de ficar comigo nessa aventura. Que mais está em falta ou que não corre à feição, Maria? - Falei-lhe, quase em súplicas amorosas.
- Estou passada com os administra as dores de cinco municípios. - Atirou ela, sempre em meias-conversas, nunca indo ao concreto. Se calhar, para manter acesa a minha curiosidade e tornar o nosso envolvimento mais profundo, mais íntimo, com mais cumplicidade. Uma conversa com rodeios, mas que chega sempre ao final e ao contento dos dois.
- Pois é, meu Soba - Maria pareceu abrir-se mais para deixar-me aplicar-lhe a quinta farfalhada - se eu fosse você ou se no mínimo tivesse o teu poder, os teus conhecimentos e influências teria procurado o Vida Boa, o Henry Quê e o Brita Masculina para lhes propor uma averiguação aos administra as dores de Kambambi, Lubolu, Kipala, Waku Kungu, e Kwitu. Já viste os buracos na via Zenza-Ndondu?

- Sim, vi, Maria.
- E os buracos do desvio da Munenga ao Longa?

- Sim. Também os vi.

- Viste ainda as crateras do Longa ao Kimone? Parece que esses administra as dores não andam a ver a dor. - Atirou cómica.
- Sim, Maria querida. Passamos por cima deles ou soubeste contorná-los.
- Sim, mas com essa gravi-carga que me meteste, estou com a barriga, as pernas e os braços todos retorcidos. Viste ainda como está o caminho de Katofe ao Keve? Eu que não sou Maria Vagarosa tive de me arrastar devagar, devagarinho, parece dia de parto é hoje?
- Compreendo a tua mágoa, Maria. Vamos diligenciar. Procurar fazer chegar a tua reclamação, através de uma petição aos camaradas governa as dores das provinciais. Só há um senão, Maria. A EN 120, e mesmo aquela que me esqueci o numero, que nos leva do Zenza ao Ndondu, são da responsabilidade do vai (go) ver no central e os administra as dores não se podem meter, senão arranjam doença de se coçar.
- Já viste quantos carros carregados de burgau, pedra intacta ou britada e terra circulam pelas rodovias em que passamos? Já imaginaste se cada um desses administra as dores pedisse aos donos das burgaleiras e donos dos carros para implementarem um projecto de responsabilidade social rodoviária?
- Sim, Maria. Mas como seria essa tal responsabilidade social com pedras, terra e burgau? Essas empresas, calculo, não têm capacidade para arranjarem estradas. E mesmo que tivessem kumbú arranjariam também sarna diante do vai (go) ver no central que é dono das estradas que começam com EN.
- Tu és mesmo um soba distraído. Vou baixar-te de soba para sopa. Estás bwezeza tipo sopa de restos. - Disse gozona, mas cantando alegre.
O nosso quinto round estava quase no auge. O ponto G estava à vista. Maria flexava excitada, mas sempre conversadora.
- Já pensaste se eles, os administra as dores dos municípios, chamassem todos os exploradores de inertes, os carregadores, os construtores e todos os demais beneficentes a se juntarem para, no mínimo, taparem os buracos enquanto o vai ver central leva alcatrão aonde ainda não há? - Propôs Maria, mis assertiva.

- Sim, Maria. Agora te percebo. É uma excelente ideia. Vou propô-la aos camaradas administra as dores municipais e aos governa as dores provinciais dos Kwanzas.

- Se eu fosse você, prosseguiu Maria, com todos os poderes, conhecimentos e influências que dizes ter, mandava as sugestões sobre responsabilidade social rodoviária já com um pedido de inquérito sobre o que os administra as dores não andam a fazer e outra sugestão aos seus chefes para que os que pouco fazem sejam afastados. A dor que sinto é grande e penso que não andam a administrá-la como devia. - Disse, queixosa.
- Está bem, minha pinta vermelhinha. Vou redigir a petição com tudo quanto sugeriste.

- E não te esqueças de notificar o Dr. Vida Boa, por causa do Kunje. Aquelas crateras fizeram-me lembrar o tempo do tri-ti-ti, quando havia mais buracos do que estradas. - Concluiu Maria.
A conversa estava doce. Como sempre, o soar máximo do batuque é prenúncio do fim da festa. Ou acaba o walende e todos se espalham, ou rebenta a pele do ngoma. Com a Maria foi o gasóleo.

Obs: Publicado pelo semanário angolense de 13 de Junho de 2015