terça-feira, 14 de março de 2017

O ÚLTIMO CACHORRO DE TURBINA

Nasceu Luzia, nas imediações da Pedra Santa, no Musafu. Cedo mostrou ao mundo que veio bem prendada fisicamente, atributos que lhe valeram, ainda lactente, o epíteto de Kimbundaria. Com o andar do tempo, Luzia, nome de baptismo e bilhete, foi esquecido, sendo Turbina ou Kimbundaria os nomes por quem mais ficou famosa em Kalulu e em Luanda.
Seus pais, católicos praticantes, sempre sonharam a filha vir a vestir-se de véu e grinalda, subindo a calçada e o altar da missão. Mas, sendo ela apóstata, não foi o que receberam seus pais de presente, até ao pó retornarem. Turbina foi, durante muito tempo, mulher da vida. Na vida ganhou tudo: casa, carro, mais tarde filhos e fama de mulher-produto.
Um pouco desencoraja pela idade e pelos filhos que já colocavam questionamentos sobre os vários rostos que se faziam à casa, Turbina foi trocando a casa-loja por outras formas de vender o corpo-produto, até que os revezes económicos que o país viveu fizeram o seu negócio minguar.
Os dias de fome chegaram, os arranjos que conferiam beleza onde a idade fez razia escasseavam. As picanhas, antes recauchutadas e confortavelmente guardadas em roupas justas, entregavam-se baloiçantes ao léu como cão sem dono. Só a carroça se mantinha avantajada, embora desmazelada. No seu imaginário, a solução passaria por arranjar marido. Só que àquelas que já sobravam no tempo das vacas gordas se juntaram outras que, empurradas pela crise, acabariam demitidas da missão de concubinas ou simplesmente kapurenquanto.
- O mercado marital está agressivo. Umas coladas aos maridos que nem nesgas, umas a ser desmobilizadas e outras com vida de pedra. Como vou conseguir meu homem? Como manter cama quente? - Interrogou-se Turbina, antes de seguir à reza.
Ao voltar da igreja, daquelas que prometem o mundo e todo o recheio, apercebeu-se de um movimento estranho no segundo quarteirão do bairro. Turbina ligou as antenas e depressa se informou. Na aldeia, as notícias, boas e más, correm a passo de vento.
- A fila andou na rua de baixo.- Disse a informante, também uma coleccionadora de tesouros.
- Aquela mana de cabelo longo morreu? Aí meu Senhor?! Como fica o mano Jordão? Quem vai cuidar dos filhos pequenos? Ai sofrimento! - Turbina soltou o grito de inundar o bairro e convocar a vizinhança que chagava ainda tímida dos afazeres patronais, naquela quinta de sol ardente.
No bairro, Jordão e Turbina ou Kimbundaria já tinham trocado muitos olhares e alguns prazeres. Fora cliente dela e naquele descompasso que o êxtase provoca, chegara a propô-la casa e lar. Com dona Eunice adoentada de morte, Turbina passou a espiar a casa de Jordão, com a artimanha de visitar a vizinha, ao mesmo tempo que engolia hectolitros de cuspo, na espectativa de se acaparar do homem alheio.
Na noite de velório, Turbina, baloiçando a Kimbundaria, parecia mais preocupada com a hora do funeral, ainda incógnita, do que com a dor de Jordão que até aí fingia com destreza os seus apetites kimbundásticos.
Fingindo muita dor no peito, volta e meia distribuía perguntas dobre quanto tempo deveriam esperar para despachar Eunice à última morada e consumar-se a passagem sagrada que dita "até que a morte os separe".
O funeral foi na tarde do terceiro dia. Ao sétimo, Jordão estava mais descontraído ao passo que Turbina aumentara o cerco e com as armas em riste: um ousado decote e o arsenal turbinado de que era detentora desde menina.
A mulher conhecia os hábitos alimentares de Jordão: funji de bombó, verduras, pevide, e boa pomada. Mesmo sem delegação, e perante a passividade da parentela, Turbina fez-se comandante, dirigindo a cozinha e levando os parentes que iam chegando ao quarto em que Jordão recebia condolências.
Quando os familiares mais distantes, começavam a se dispersar, e antes mesmo de acontecer a missa do sétimo dia, aprazada pera aquela noite, cumprido o ritual mínimo de confinamento do viúvo, Kimbundaria que via a "migação" quase confirmada, planeou o ataque final
Começou por se enfrascar até tropeçar na próxima sombra. Fazendo-se passar por una espécie de protocolo, anunciando a chegada e a saída de visitantes, a mulher de nádegas e lágrimas fartas, como era conhecida, encostou-se ao viúvo e soltou o último cachorro:
- Ó mano Jordão, as visitas para a missa de logo já estão a chegar. Não acha que já é tempo para me "amigares"? Me faz só esse favor, hoko?!

Texto publicado pelo Jornal de Angola de 8/10/2017

quarta-feira, 1 de março de 2017

O SAPO E O SALALÉ

 
(A propósito de um post inspirador que acabei de ler no mural do confrade Gociante Patissa)
 
O sapo, borbulhento e nojento, e o salalé, que ao sair da terra húmida se sente muito gingonçoso e importante, sempre se desafiaram. O sapo sempre faminto e salalé ou térmita gordinho, fresquinho e proteico.
O sapo aguarda pelo salalé que sai do buraco. Tem-no no olho e com os dentes e saliva preparados. Lá dentro, na cavidade abdominal, ronca o estômago como moageira sem milho para moer. São as peças que se roçam barulhentas. Mas, o salalé, mesmo talhado para morrer, sai protegido pelos guerreiros soldados de sua brigada munidos de tesouras frontais e acaba voando.
No ar, espalha-se diante de majestosa beleza e grandiosidade do céu azul ou acinzentado do pôr-do-sol, quando não é dia e não é surpreendido pelos mochos de lâmpadas largas e redondas.
Mesmo escapando das aves,  acaba-se-lhe o combustível, ou melhor, caem-lhe as asas, sem muito tempo de desfrute no espaço em que se perde, caindo como objecto sem vida directinho a frente do sapo que o degusta com prazer.
Quanto mais sofrível for a caçada mais saborosa é a carne. Não será?
Cuidado senhor(a), não te importantes tanto por estares naquela posição. Não tenhas asas de salalé.