sábado, 15 de julho de 2017

OS MONSTROS QUE AS QUEIMADAS POEM A NU

O suprimento da saudade que os sufocava, havia já mês e meio, fê-los sorver aquele momento único em surdina. Era como sugar o tutano na mais profunda intimidade. Ele instalado nela (carrinha) e ela dando gozo ao longo de léguas que separavam o nordeste do centro-oeste para aonde se dirigiam.

- Lembras-te, Soba, quando viemos parecia não haver ferro retorcido ao longo da via. Vês que a paisagem hoje mudou? - Disse ela em ruídos apaixonados.

- Sim, Maria. Temos ainda muitas sobras das guerras. - Respondeu o companheiro, enquanto a afagava com mais uma mudança de força.

Mas, Soba, donde vieram então esses monstros todos, já sem cor nem forma, e que fazem recordar os tempos do tri-tri-tri-buummmm?!

- Estavam escondidos, Maria. Eu também pensava que os catadores de ferro já tivessem recolhido todas essas lembranças das guerras e levadas à siderurgia nacional. Pensava que já estivéssemos a usar arados fabricados com despojos e destroços das guerras. Ainda bem que as queimadas à beira da estrada estão a colocar tudo à mostra dos recolectores de ferro velho. É tempo de obra para os ferreiros. - Explicou o amo.

A travessia de um grupo de adolescentes com pás nos ombros fê-los interromper a prosa oral para reflectirem sobre as pás que sulcam terra em busca de incertezas escondidas no subsolo, numa altura em que a paz permite ter escolas à dimensão dos aglomerados, porém algumas chorando por alunos refractários.

- Esses assim vão à tonga ou à campanha sabatina de limpeza escolar? - Atirou Maria inocente.

- Acorda, filha. Estamos em Xamikelenge. Aqui e na Muxinda as pás, mesmo em tempo de paz, significam ainda a busca de kamanga. As escolas têm ainda as carteiras vazias à espera desses mancebos. - Explicou irónico o dono dela.

- Soba, voltou a interromper Maria, quando falávamos sobre as sucatas acastanhadas de ferrugem e já sem as chaparias que ajudariam a descortinar de que tipo de veículo se tratavam, falavas em sobras das guerras, no plural. Houve por cá muitas guerras? Gostaria que me explicasses tim-tim por tim-tim. - Solicitou Maria quase suplicante e cortado já, a meio, a encosta de Kabatukila, Xinje, onde, por ironia, um camião carregado de ferro velho repousava ad eternum no meio da rodovia, entregando-se também à interminável quantidade de ferro por recuperar país adentro, recortar, transportar, fundir e transformar. - É preciso, afinal de contas, dar vida à agricultura e à construção de infraestruturas, o que passa pela reactivação da indústria siderúrgica, cogitou, sem no entanto o pronunciar.

- Sim Maria. Usei mesmo, e propositadamente, o plural.

Houve a guerra dos movimentos contra o colono, durante 14 anos, em que muita técnica das tropas ocupacionistas foi aniquilada nas emboscadas. Depois foi a guerra civil que também destruiu a técnica militar automóvel e rodo-transportada das partes conflituantes ao longo de 28 anos. Temos ainda a guerra infinita entre a estradas e os veículos, entre os automobilistas e as vias, que parece ser a mais dura e lúgubre. - Explicou seu amo.

Maria aprovou o discurso, solicitando uma mudança de menos força e mais corrida ao que Soba prontamente compreendeu e anuiu.

Prosseguiram a viagem entre silêncios, diálogos e afagos carregados de recordações e afectos. Maria, no auge da força e jovialidade. Ele, Soba, no auge do poder, vigor a paciência em contornar as inúmeras armadilhas e os incautos camionistas que, vezes sem conta, colocavam o traile no eixo da via, submetendo em risco a vida daqueles com quem se cruzam nesta batalha da busca do pão comum para o estômago vazio.

- Esses assim pensam que a estrada é propriedade privada deles ou que os outros não têm vida? - Desatou Maria, que não poupou um estrondoso muxoxu que lhe invadiu a boca. - Vão mazé, seus sacanas de merda, e tenham juízo nas vossas cabeças de gafanhoto, pá! - Concluiu resmungante Maria.

- É isso, Maria. Isso é pão de cada hora. É isso que alimenta os esqueletos metálicos na via. Alguns camionistas só se dão conta disso depois de entrar em prantos, envolvidos num sinistro, ou quando tripulando um veículo menor se depara com semelhante corneada. É essa a luta desigual que mais me preocupa. - Falou- lhe filosófico o amo antes de ser parado para uma fiscalização preventiva dos homens do apito laranja.

- Donde vem, senhor condutor? - Atirou o agente de farda verde e colete laranja.

- Do nordeste, senhor agente. – Respondeu o soba, já com a papelada da Maria e a sua em mãos.

Conferida a papelada, acto que se repetiu outras nove vezes ao longo do trajecto, o agente, caprichosamente aprumado com gravata e luvas, devolveu os documentos e fez o sinal de partida. Aliás, não faltaram as perguntas do costume: como vai a viagem e que notas de realce nos reporta, senhor automobilista­?

Não havendo acidentes ou incidentes graves ao longo de tudo quanto tinha percorrido, preferiu soltar um NADA CONSTA e seguir viagem até à cidade erguida sobre a encosta da montanha das cobras Ndala onde tomou a primeira refeição do dia que se acrescentaria ao meio litro de café que tomara ao longo das oito horas de estrada. Maria também reclamava pela segunda refeição, o que lhe foi servida sem hesitação. Havia ainda perto de duas centenas e meia de quilómetros pela frente. O sol despedia-se a caminho do grande Kalunga-Lwiji, ao ocidente. Sábado da batida e da Ngwenda na capital e arredores, na Catedral do amor católico, bem nas barbas do Kwanza que dá vida e dinheiro aos akwaxi, as devotas pediam dinheiro, maridos, felicidade e tristezas para as concorrentes. À espera de uns incautos desconhecedores das regras de trânsito ou das leis estariam outros akwaxi. É a lei da vida urbana e da selva. É a lei dos opostos. Maria que ouvira até aí os desabafos do seu amo voltou a questionar.

- Mas por que pedem algumas pessoas a morte de rivais, Soba­?

- É a lei dos opostos, filha. O que te faz bem pode não me fazer bem. O que pedes pode ser o oposto do meu desejo. Já vi duas rivais a rezarem para que a consorte desaparecesse do mapa. – Troçou o amo.

- Ai é­? Então leva-me à Muxima. Pretendo pedir que nessa estrada, da Capital aos Kwanzas, passes a andar somente com o António (nome de outra viatura), pois há muito que ando com a coluna sôfrega.

Entre curvas e lombas, sol poente, sombras e penumbra, seguiram seu caminho até à próxima paragem...

Obs: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 09.10.2015

sábado, 1 de julho de 2017

A ORAÇÃO DO KAPITIA

A amizade que carregam, há mais de meio século, dá-lhe a ousadia para falarem de tudo e sobre tudo. Entre eles, nada é segredo. Apenas há segredos que desvendam só quando a fila ande. Aí sim. Abrem um espaço nos epitáfios e levam ao conhecimento dos parentes mais chegados as extravagâncias inauditas do de cujus.

 
Chegados da Kibala, Kitembo e os amigos Kanhanga, Kilole e Kapitia notaram a ausência de Kandungu. O homem tinha o telefone desligado, não mandava os habituais recados aos manos da sua geração e igualhagem, nem pedia dinheiro para a cura de reumatismo que ardilosamente desviava para as "baixinhas espumosas", como gostava de tratar as cervejas de garrafa curta.

- Compadres, o gajo deve ter ido para a pior ou a caminho disso. Depois do culto, é melhor irmos espreitar, se ainda encontramos o corpo quente. - Kanhanga aos coetâneos que depressa concordaram.

Juntaram moedas, as que haviam sobrado de um domingo de muitos balaios: fundo de construção, acção de graças, dízimo do Senhor (roubará o homem a seu Deus? Questionara o pastor para melhor penetrar-lhe o cérebro e a algibeira), oferta dominical, etc. Tinha sido uma fina peneira, mas, mais-velho é já mais velho, tem sempre reserva estratégica. E foi com o sacudir dos kafokolos, onde normalmente fica enfiada a reserva estratégica, que fizeram a vaquinha com que se meteram a estrada, ao encontro de Kandungu.

Encontraram-no vivo, mas degradado. Isso mesmo degradado e em estado lastimável. Os saltos, provocados pelos buracos na via que separa a capital da sede de Kibala, haviam debilitado a sua coluna de sustentação. Os antibióticos e analgésicos para afugentar as artrites foram substituídos pelas "pequenas espumantes". Encontraram um amigo vivo mas transfigurado. Mais morto do que vivo.

Primeiro entrou Kitembu, amigo e tio, embora dois anos mais novo do que Kandungu. Seguiram-se-lhe Kanhanga e Kilole. Kapitia chegaria meio atrasado, pois fora ver a filha nas cercanias.

- Boa tarde sô Kandungu. Esta hora já estás calibrado? - Saudou, gozão, Kitembu.

- Não brinques assim. Se me encontraram com vida é já sorte. Quanto à bebida com que sempre te embirras, hoje só bebi mesmo uma. Estou mesmo a morrer e nem sei porquê que Deus não me leva já. - Respondeu Kandungu, resmungão e com a voz trémula, como se lhe faltassem apenas instantes para transitar para outra dimensão da vida.

- Mas ó Kandungu, é mesmo morrer que queres, quando pessoas com noventa fogem da morte como satanás foge da cruz? - Indagou Kilole?

- Sim, mano Kilo. Aqui já não está a dar certo. Sofrimento é muito. Morrer é descansar.

Os amigos, algo co condoídos, algo chateados, com o indivíduo que degradou o corpo por livre vontade, decidiram retirar-se e voltar no dia seguinte. Eram todos reformados e Kitembu tinha um bom jeep em que se faziam transportar, quando não fosse na carrinha de dupla cabina que Kanhanga acabara de receber de oferta do filho.

- Vamos. Quando voltarmos trazemos outras ideias e esperamos não te encontrar mais nesse leito e nessa desgraça. - Disse Kitembu a despedir-se e puxando pelos amigos.

Kapitia, que acabara de chegar, tentou ainda convencer Kandungu para se livrar da ideia de se eutanasiar.

- Mas, ó mano Kandungu, ainda a semana passada que choramos o irmão Domingos João, até as lágrimas nos olhos ainda não se secaram, você quer já nos deixar?

- Sim, Kapitia, é melhor eu partir. Se vocês acham que estou a brincar, amanhã mesmo não vão mais me encontrar.- Disse Kandungu com as últimas forças que lhe restavam.

Kapitia, entre sarcasmo e compaixão, decidiu solicitar uma oração, mesmo Kandungu não sendo mais membro da igreja, ao que todos concordaram, até o inferno que se achava sem forças para se pôr em pé.

- Oremos: " Pai nosso, nosso Senhor, Deus que dá a vida é que a retira quando quer, estamos aqui perante nosso irmão que jazz nesse leito, mais pra lá do que cá. A vida que o irmão Kandungu leva é de muito sofrimento e miséria, pai. Já que ele mesmo está a pedir, por que é que o pai não manda essa noite seu anjo busca-lo? Ao menos ele descansa perto ou longe do Senhor, em função das suas obras no mundo. Que assim seja. Ámen!

- Ámen! - Confirmaram os amigos.

Kapitia ainda não tinha ainda terminado a oração, já Kandungu se sacudia de pé, entre os amigos. Afinal, não era a morte que desejava.