segunda-feira, 1 de abril de 2019

BALA PERDIDA (I)

Pouca Sorte era um jornalista militar.
Naquele tempo de guerra apertada, a comer carne humana como porco no farelo, ir às frentes de combate para ver de perto o "ngongo-ya-mona-a-dyala" não era coisa para qualquer um.
Bernardo Manuel, seu nome de bilhete, já tinha sido das BPV e ODP, antes de se alistar nas FAPLA onde foi "transferido" para o periodismo pelos instrutores cubanos. A sua curiosidade aguçada em obter os porquês e a forma suave como arrumava as respostas que obtinha pela observação e fala dos "kwemba" levaram-no à tal "pouca sorte".
Para uns, ser desviado de tropa para jornalista era sorte grande. Porém, para ele e parentes, "jornalista dos tropas é tropa". Por isso, diziam "Bernardo é um pouca sorte", nome que lhe ficou colado ate hoje.
Numa dessas idas às zonas quentes de refregas animalescas, conheceu Avança, uma jovem militar bonita de meter os inimigos a se olharem sem disparar. É pena que não tenha sido fotografada no auge da sua beleza militar.
Conheceram-se numa noite de reabastecimento e de palavra e garfada farta. Com o passar do tempo, nas selvas de Savate, Avança e Pouca Sorte foram trocando uns olhares mais compenetrantes que não se ficaram por ali, até que um dia os seus corpos se tocaram até provocarem uma explosão.
Passou tempo. Muito tempo mesmo sem que Pouca Sorte soubesse das consequências daquele acto bom, de que não se lembra mais se houve ou não intermediação láctica.
As guerras mortíferas terminaram. Felizmente. Chegou o facebook a recordar guerras passadas e reencontrar caras do passado.
Nessas idas ao desconhecido, enquanto dedilhava, encontrou um rosto que lhe fez recordar os nove dias de Savate.
- Essa cara não é estranha. - Vozeirou alto, entre garfo e copo com amigos.
Vasculhou as fotos. Era uma jovem nos seus 30 anos. Avança? Não pode ser. Terá agora 50 anos como eu. Mas a cara é muito parecida. Aguçou a curiosidade e alcançou o ciclo de amizades e as fotos familiares.
Encontrou a imagem de uma mulher fardada, carnes fartas a congestionarem o verde-cinza-malhado que chamava de "coreana". Saltou -lhe o coração.
- É ela. Avança. Deve ser mãe da moça. Só pode ser.
Abandonou o amistoso em que se encontrava com os amigos e foi à casa contar aos filhos o achado.
- Sabem quem descobri hoje?
- Não. Conta, papá. - Pediram os filhos.
Mostrou a foto da mulher-militar, aquilo que ele aconselhava que a filha do meio, a "Faz Tudo", fosse.
Repararam nos detalhes da senhora que em 1984 travava valentemente ventos de morte ao lado de homens que choravam ao sopro de bala.
- Era dama corajosa, papá. - Atestou Faz Tudo.
Encorajado, Pouca Sorte mergulhou nas fotos baixadas no perfil de Avança. Avançou mostrando uma a uma até aparecer a da jovem aparente filha de Avança.
- E essa, quem é, papá?
- Deve ser filha dela. Repara nos traços. A tez, as maçãs do rosto quando ri. Conheci bem a Avança...
- O papá já reparou nos olhos e no nariz da moça? Deve ser nossa irmã. - Faz Tudo desse-lo de forma tão convicta e séria que o coração de Pouca Sorte se aproximou à boca.
- Vossa irmã? Como assim?
- Repara bem, papá. Repara. - Insistiu Faz Tudo, a "Tropa de Casa", como também é carinhosamente tratada.
Pouca Sorte recuou no tempo. Vieram-lhe à memoria os nove dias de Savate e os 12 dias em Nancova, sempre próximos ele e Avança. Cada dia mais próximos avançando-se com Avança. Baixou a cabeça e balbuciou qualquer coisa.
- Só pode ser consequência de Bala Perdida!