quarta-feira, 1 de maio de 2019

BALA ESCONDIDA (II)

A tarde era de rocio. O kasimbu fazia as pessoas anteciparem-se nos leitos e lá permanecerem até chegar o sol seguinte.
Nessa lesmice viscosa que afecta a humanidade em relação ao cuidado ambiental, até as aves chilreavam preguiçosas, também sufocadas pela temperatura que só baixava. Os que mais se punham entre os becos com quintais de chapas metálicas eram jovens e uns meio-idosos agarrotados pelo vício estupefaciente.

Pouca Sorte tinha preocupação em visitar alguém cujo ponto de encontro seria o local de culto. Ao meter o nariz no beco, a fumaça recordou-lhe tempos do Poeira, quando a camioneta da administração passava, tarde sim, tarde não, a distribuir o fumo mata  mosquitos pelo museke.

- Xê, kandenges, quê isso, a esta hora? - procurou dissuadi-los daquilo que todos os papás repudiavam aos makwenze de então.

- Xê, wi! Cuidado com a boca. Tu não sabes quem sou eu. Se abrires mais essa mandíbula, vô te bondar e vô te cumprir.

- Xê?! O quê? Te duvido. Achas que sou civil ou quê. Vamos se cumprir. Ou melhor, eu te bondo primeiro e te cumpro, sô meu cão de merda.

Já não era o início da briga. Era mesmo o meio da confrontação verbal, da troca de argumentos e, sobretudo, de músculos e adereços que se achavam à cintura...

Pouca Sorte estava ali ocasionalmente. De passagem para o culto nocturno em sua comunidade religiosa de proximidade que os metodistas designam Classe. Ao passar pelo beco, dois kangonyeros aqueciam os motores com fogo de artifício.

- Pá, pá, pá, pá. - Estoiravam as sementes submetidas a fogo, seguidas de um "passa o mambo” que Matengó, outro transeunte, entendeu ser ordem para desmonta.

- Porra! - Gritou Matengó. - Sou kwemba e já vi muito sangue, mô ndenge. Noutras bandas já fatiguei muitos putos. Mas aqui, sei que são kandenges da banda.

- O quê, kota? Cuidado, vou te fatigá! - Atirou um dos mizangala, empunhando uma baioneta.

Matengó, mexicano puro, antigo craque no desmonta tia zaikô que se tornou pistoleiro na tropa, em Kahama, Kwamato e Xangongo. Só faltou-lhe entrar em Môngwa e Ndjiva. Matengó, mesmo desmobilizado, da greguice e da tropa, não deixava créditos em mãos de estagiários.

- Porra, pá. Filho de rameira! Vais me quê? Eu Matengó?!

Sacou da sua "esposa”, a "Tt” que se achava já com a patilha desguarnecida e fez dois balázios a queima roupa.

 - Pum-pum (disparos). Mãos no ar, filho de meretriz! - Ordenou.

Um dos bandidos, que lyambavam no beco, pôs-se ao fresco. Teve tempo de pular umas aduelas e correr sem norte. Parecia ter sido atingido, mas o disparo de Matengó foi só de controlo. O outro que tentou torrar farinha com o kota estava banhado de mijo.

- Me balaziaste, kota. Só brinquei contigo e me fatigaste já? Assim mesmo está bom, mô kota da banda?! - Implorou.

Sem a argúcia que a lyamba e a baioneta lhe conferiam inicialmente, Nguma teve de entregar o corpo ao deleite de Matengó que era considerado em todo o bairro do México como "bom em porradar”.

Pouca Sorte viu tudo aquilo. Parecia um filme. Desistiu do culto e foi a correr à casa. Felizmente, aquela bala disparada por Matengó se escondeu na terra húmida do Beco 3 do Kaputu. Não estava perdida e não daria a reclamação futura de um ser vivente, senão da conduta de água ausente em que ela se alojou.

Veremos no que dará quando o SMAE, empresa que cuida do abeberamento, reabrir as torneiras!