quinta-feira, 1 de maio de 2025

"A FALTA DE MOTIVAÇÃO E IMPACTO NOS COLABORADORES" AOS OLHOS DE LÍZIA HENRIQUE

 DALAI LAMA UMA VEZ DISSE “TODA ACÇÃO HUMANA, QUER SE TORNE POSITIVA OU NEGATIVA, PRECISA DEPENDER DE MOTIVAÇÃO”

Boa tarde a todos,

É com enorme prazer que vos dou as boas-vindas a esta sessão tão especial de lançamento do livro A FALTA DE MOTIVAÇÃO E O IMPACTO NOS COLABORADORES- UM ESTUDO DE CASO NO MINISTÉRIO DE GEOLOGIA E MINAS, uma obra que promete marcar não só os leitores, mas também o panorama literário nacional.

Hoje, temos a honra de contar com a presença do seu autor, Luciano Canyanga, uma figura que se destaca pela sua sensibilidade, dedicação à escrita e pela forma como consegue transformar palavras em emoções vivas.

Luciano Canyanga tem vindo a construir um percurso notável, seja através da sua escrita envolvente, bem como da sua capacidade de observação da realidade.

Este, sempre esteve ligado ao jornalismo e comunicação institucional, mas foi nas vestes de Director de Recursos Humanos que se viu digamos, "forçado” a imergir nos desafios que encontrou no então Ministério de Geologia e Minas, quando convidado a dirigir o GRH, após colaboração em uma empresa extractiva (a Sociedade Mineira de Catoca)

Eventualmente, você pergunte: Que desafios encontrou?

 Meus senhores e minhas Senhoras estes desafios encontram-se no livro!

O livro em destaque, aborda um tema crucial para o desempenho organizacional, especialmente no contexto do funcionalismo público angolano.  

 

Este livro representa não apenas uma contribuição valiosa para o campo de Recursos Humanos, mas também um testemunho do rigor, da dedicação e da paixão que o autor deposita no seu trabalho. Ao longo das suas páginas, somos guiados por uma análise profunda, sustentada em investigação atualizada, metodologias sólidas e um espírito crítico exemplar.

A pesquisa realizada revela, que a falta de motivação é um dos principais factores que impactam negativamente o desempenho dos colaboradores, sendo um desafio significativo para a gestão de actividades no setor público.

Na referida pesquisa o autor utilizou métodos quantitativos e qualitativos, incluindo questionários aplicados a setenta funcionários, a fim de explorar as causas e consequências da desmotivação no então Ministério de Geologia e Minas.

O estudo, realizado no Ministério de Geologia e Minas, identifica que a ausência de políticas e acções voltadas à motivação, como o reconhecimento, a remuneração adequada e incentivos como o seguro de saúde e a formação, contribui para a desmotivação dos funcionários, cujos resultados negativos para a organização todos os gestores conhecem.

Entre as conclusões, destaca-se o facto de a motivação estar diretamente ligada à recompensa e ao estilo de liderança, e que as variáveis sociodemográficas influenciam os resultados. É ainda sugerido, que as lideranças devem repensar as suas práticas para melhorar o ambiente organizacional e a valorização dos colaboradores.

Para além do rico conteúdo, que é uma nítida fotografia dos desafios com que se debatem muitas das instituições públicas, para não dizer todas, o autor procurou, igualmente, preservar a história de um colectivo de colaboradores que cada um ao seu nível, procuraram prestar um serviço público digno e humanizado.

Hoje, infelizmente, não podemos dizer à nova geração que no Largo António Jacinto (conhecido como largo dos Ministérios) existiu um edifício que atendeu os Serviços de Geologia e Minas e, posteriormente, o Ministério de Geologia e Minas, pois este edifício (mostrar a contracapa) já não existe.

Termino com um sincero agradecimento à Luciano Canhanga, não só pela obra que hoje nos apresenta, mas também pelo contributo inestimável que tem dado ao desenvolvimento do conhecimento.

Convido agora o autor a partilhar connosco um pouco do seu processo criativo, das motivações por detrás deste livro e, claro, do que podemos esperar ao mergulhar nesta leitura.                  

Muito obrigado a todos pela presença.

Lízia Henrique

Em Luanda, aos 24 de Abril de 2025.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

AS CHALADICES DO "BEBÊ"

Nota prévia:

O meu primo, de quem me fui despedir pela última vez (ele em outra dimensão da vida e eu nesta prevalecente e ainda racional), nasceu Kitumba. Uma razão terá existido para que lhe fosse atribuído um nome relacionado a amuleto feiticista. No registo civil, entenderam os pais dar-lhe um "pomposo" nome português e passou a Adriano Kambota. Quando fosse a Luanda, tratávamos-lhe por "Guerra fiz mal", em alusão a uma de suas calinadas quando se comunicava em língua portuguesa, dado que toda a sua comunicação era feita, essencialmente, em Kimbundu.

Também soube, da minha mãe, que o antropónimo Kambota está relacionado a uma praga de gafanhotos que aconteceu em um ano qualquer da década de 20 ou 30 do século XX. Primeiro surgiram os gafanhotos, vindos "dos céus" que devoraram tudo o que esverdecia. Chamaram ao fenómeno Ikoho [gafanhotada] e todos os que nasceram naquele ano ganharam o nome de Kikoho [grande gafanhoto ou gafanhotada].

Aditou ainda a septuagenária que depois de devorarem as lavras e o mato incultivado, "os gafanhotos ovificaram e nasceram outros menores em tamanho e quantidade. A estes insectos, menos 'agressivos' e lesivos aos interesses agrícolas do que os precedentes, tendo sido usados para 'forrar os estômagos', enquanto 'conduto', foram apelidados de kambota. Assim, grande parte dos rapazes nascidos naquele ano que a iliteracia não registou foram apelidados de Kambota".

O meu tio, que no registo civil ganhou o nome Xavier Kambota, nasceu no tal ano em que eclodiram os gafanhotos kambota, depois do ano dos kikoho.
Bem, a prosa é sobre Bernardo, rapaz do Dondo [Marginal], que me encontrou junto à barraca [cacussaria] da dona Páscoa, onde, normalmente paro para fazer a minha refeição de "meio-da-viagem" ou encomendo algo para abocanhar à chegada ao destino. Desde que o meu filho Arlindo entornou o frasco da dona Páscoa contendo a "farinha museke" que paro para adentrar a barraca dela, para pegar a encomenda feita previamente ou indico parentes e amigos a frequentar o sítio dela. Estão já transcorridos dez ou mais anos.
_ Papá, deixa-me lavar os teus ténis, é só duzentos. _ Atirou o bernardo, algo simpático e marketeiro.
_ Filho vou à lavra. _ Respondi, afagando-lhe os ombros.
_ Pai, pode limpar os ténis. É para os macacos te estranharem. _ Insistiu o Bernardo, com elevado sentido de humor.
Recebida a encomenda da Dona Pascoa, pois seguia apressado para a aldeia de Pedra Escrita [Munenga] para assistir ao óbito do meu primo Kitumba e não havia tempo para sentar e apreciar a chopa, levei a mão à algibeira das calças e a minha mão conseguiu "pescar" uma moeda de kz 50 que dei ao Bernardo. Este, sempre bem-humorado voltou a recomendar.
_ Papá, cuidado com buracos na estrada que estão a ser tratados como frangos.
_ Como frangos? Como assim? _ Retorqui.
_ Sim, Papá. Primeiro, deixam engordar, depois é que abatem [tapam].
Só quando estava a trafegar entre o desvio da hidroeléctrica de Kambambi e o [novo] Kyamafulu [ponte sobre o rio Kwanza] me apercebi que havia um trabalho de tapa-buracos que tinham deixado engordar.
...

Episódios ocorridos a 18 de Março de 2025. Texto publicado no Jornal de Angola a 23.03.2025.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Um "VIJU" NO DIA DOS NAMORADOS

(Extracto de "O relógio do Velho Trinta)

Ao chegar da viagem, no aeroporto internacional de Mwangope, uma inusitada conversa entre pai e filho atraiu a atenção de Satula que fazia contas para se desfazer, sem dinheiro, daquele recinto.

_ Pai! _ Chamou o rapaz, dez anos, mais ou menos. _ O papá não está a viajar à África do Sul por causa do seu cancro na próstata?

_ Sim filho. _ Respondeu Basílio de Melo. Sessenta anos, mais ou menos, e cabelo algodoado a embermar a pista encefálica.

_ E porquê que o papá disse ao senhor que nos saudou que tem sida, se o exame do médico diz cancro na próstata? _ Voltou a questionar o rapaz na sua inocência.

_ Filho! É preciso ser táctico. Ser vijú. Esses gajos andam de olhos no meu kumbú e na tua mãe. Assim, o boato se alastra e já ninguém colhe as minhas frutas! 
_ Respondeu Basílio, um conhecido empresário de Mwangope, desfazendo-se da incómoda pergunta do garoto que não percebeu a ironia. _ Olha, filho, vê aí se há algo que te agrada. _ Emendou.

Encostado a uma parede, Satula magicava o futuro. A reflexão durante a viagem remeteu-o para um estreito desfiladeiro. “Um empresário sem urnas e, pior ainda, sem as galinhas de ovos de ouro que eram os clientes ricos da zona baixa de Mwangope”. Faminto e cansado, sentia o chão a fugir-lhe. Faltava-lhe energia para se reerguer e chegar à casa. Decidiu caminhar até se acoitar debaixo de uma árvore, das raras que enfeitavam as ruas da cidade. Fez as contas do troco no bolso e traçou o plano: “andar num azul-e-branco até à casa custa, até ao fim do percurso que separa o Aeroporto a Vila Nova, um total de $400.00, valor dividido por 4 trechos de igual valor”.

_ Tenho que me meter mesmo neste carro da kandonga, que me vejam e comentem. _ Afivelou em voz baixa.

Umas vendedeiras da zunga que o ouviram a desabafar tentaram pôr conversa fiada, apenas para entreter.

_ Como é que um tio desses, assim com barriga tipo boss, vai andar no “conta novela” [1]?

_ Hum! Deve ser só barriga de mentira. _ Disse outra para depois troçar: _ Tio compra já mebendazol e num fica só com barriga tipo és boss, afinal é ‘mbora bichas.

Satula não deu importância à falácia e seguiu o seu caminho, trocando prosas com um companheiro de desgraça até à paragem mais próxima dos machimbombos.

_ Epá! _ Disse ele para o homem ao seu lado esquerdo _ Isso agora parece que está mais p’ro inferno do que para a urbanidade!

_ Sim, meu camarada! É só ver como andam as pessoas nos carros. Todos ensardinhados e a engolir cada vez mais poeira levantada pelos veículos...

_ É mesmo! Isso anda maluco! E nós que estamos mais no interior do que na capital sofremos mais ainda.

_ Pois é. _ Replicou Kitomangombe, o seu interlocutor, que vivia ininterruptamente na capital. Porém, a semana de ausência no Nordeste, também lhe causava estranhezas.

_ E como é que vais à casa? _Perguntou ainda Kitomangombe.

_ Epá! Eu me desenrasco... De qualquer meio que aparecer. Kupapata[2] ou mesmo “avó chegou” [3], tudo serve. _ Respondeu Satula, sempre irónico.

Kitomangombe seguiu o caminho do Roda Ponteiro e Satula dirigiu-se a uma agência bancária que ladeava a estrada da Revolução Bolchevique. Estava decidido em alugar uma viatura particular caso conseguisse dinheiro. Pretendia chegar cedo à casa, onde os filhos e a amada o aguardavam esperançosos. Afinal era Dia dos Namorados.

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[1] Nome atribuído aos autocarros devido à lentidão e demora que levava os frequentadores a contarem a novela apresentada na Tv para evitar a fadiga.

[2] Motocicleta.

[3] Motorizada de três rodas; vulgarmente usada pelas idosas provenientes das lavras ou dos mercados, transportando mercadorias.

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Publicado pelo Jornal de Angola a 16.02.2025

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O "PROSTÍBULO" DO ANDRÉ

André, jovem de 25 anos e culturista, era operador da Konica, a famigerada fotocopiadora nos anos 90 do século XX, na empresa Kuditemo Lda., maior fornecedor de kuribotices de então na regedoria de Kuteka.

Ao André Kitongo se dirigiam todas as secretárias e pessoal do expediente que, na ausência do jovem, deixavam os documentos por fotocopiar, apensando-lhes recados em post it de distintas cromagens e modelos: longos e estreitos, formato coração, verde-amarelado, verde-alface, cores quentes, frias e rosa e tantas outras que, com o tempo permitiam-lhe descortinar a origem do pedido e adivinhar a ordem de urgência.
Sempre que o André voltasse ao seu posto, executava as tarefas e levava as cópias aos solicitantes, conservando, no entanto, os post it que depositava em uma caixa para posterior contabilização e relatório de trabalhos efectuados.
Lembramo-nos de alguns:
_ André, quero frente e trás. Jéssica.
_ Querido André, hoje quero só de trás. _Bela.
_ Andrezinho, hoje tens de fazer rapidinho. Quero duas de trás. Rosa
_ André, sem demora, estou sem muito tempo. Quero de frente. Rápido... Andresa.
Tempos depois, o serviço mudou de instalações para obras de restauro. A caixinha de recados permaneceu naquele gaveto entre as duas alas do edifício. Vieram tempos de abandono, os mendigos, homeless, vagabundos e mulheres da vida fizeram das instalações o seu quartel. Alguns recados ao André foram materializados, mas a caixinha se manteve com a única alteração de ter ganhado poeira e bolor. Passou mais tempo. Vieram, finalmente os homens da empresa restauradora.
Os restauradores encontraram a caixa em que André conservara os recados, lendo, sem a devida contextualização os conteúdos ajindungados, levando-os a apelidar aquele cubículo de "prostíbulo do André".

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

BEM-VINDO, CDA WELLCOME!

As lojas eram do povo. Os governantes também. Até os malucos tinham donos, os seus parentes que deles cuidavam e com eles se preocupavam. Havia malucos, mas não os víamos desnudados e famintos como agora. Para o acesso ao pão, faziam-se filas nos depósitos, mas os malucos também comiam.


Nas cidades grandes, havia lixeiras e eram muitas. Só que quase não tinham lixo como o de agora. As ruas eram limpas. Manhã cedo, cada mamã ou sua filha mais amada estavam de vassouras nas mãos. As ruas eram varridas de ponta à outra. Cada casa agia à dimensão do comprimento do seu quintal ao eixo da via.

Os gatos miavam noite adentro, brancos pretos e malhados, e comiam ratos. Não eram tidos como bruxos. Vezes havia em que os gatos roubavam peixe na grelha, mas os maninhos ficavam de olho. Um olho no peixe e outro no gato. Não eram os irmãos dos maninhos que roubavam o peixe na grelha, nem a panela de cachupa.
E dizia-se: conselho de uma mãe servia para todos os meninos da rua. Ralhete de um pai, idem. Os desencaminhados eram banidos por todos. Não se viam tias a defenderem parentes larápios e havia tios para repreender e a tropa para os endireitar. Os tropas cumpriam missão. O salário que era "subsídio de suor e sangue" era quando calhasse. Não era salário, nem emprego como se vê, não!
Kaxarandanda ficava longe. Longe dos olhos e das pessoas da cidade grande. Tinha pessoas estudadas e aeroporto como noutras capitais e o povo de Kaxarandanda aprendera a respeitar e a bem receber os seus visitantes. Não tinham impressoras nem serigrafias. Escreviam mesmo em rolos de tecido branco, comprado na loja do povo. E era com cartazes, feitos à maneira local, que bem-vindavam os governantes.

A coisa mudou, quando algumas coisas distantes lhes foram impostas. Sim. Impostas mesmo. Mudou suas rotinas. Veja: o aeroporto era de terra batida e tinha manutenções semanais. O novo é asfaltado e cai aos pedaços. A árvore grande geradora de sombra permanente foi derrubada e a casota substituta tem nascente no tecto e mete água por dentro.

Bem, vamos à estória.
Manuel Kwaku Dimoxi era activista político. Perdera a mão numas kitotas sangrentas que tiveram lugar em Kaxarandanda. Dizem que foi no intervalo pequeno entre uma guerra e outra. O dia de sol intermitente, com nuvens que viajavam ora lentas ora apressadas pelo vento, estava no pico. As gentes caloriadas pareciam ter apanhado chuva. Era dia de visita oficial.

O Dimixi havia apenas avisado que Kaxarandanda receberia uma visita importante. Era pessoa mesmo da vila que trabalhava e vivia na capital. Por isso, para as pessoas saberem que Kaxarandanda não era um lugar qualquer, mas gerador de gente que foi longe na administração do Estado, o nome era para descobrir quando o mon'a'bata chegasse e se apresentasse por cima da escada do avião, onde os pioneiros lhe aguardariam com o lenço branco.

Kwaku Dimoxi, nas vestes de secretário para a acção política, era também o instrutor dos pioneiros e fez-se por isso à escada do avião. Os pilotos não tinham ainda aberto a porta. De cima para baixo, Kwaku Dimoxi a querer ver como estava o povo organizado para receber o camarada-conterra-chefe-grande de nome ainda incógnito, olhou para a inscrição pregada sobre a porta da casa que recebe os passageiros desembarcados. Com os conhecimentos sólidos que lhe conferem a sua quarta classe do tempo colonial leu sem soletrar: "Bem-vindo, Wellcome"

_ Porra! _ Soltou a maliciosa interjeição, num som quase inaudível, mas que despertou os dois pioneiros que tinham os lenços nas mãos. _ Nasci aqui. Cresci aqui. Fiz tropa aqui. Esse camarada Wellcome, com esse nome, é daonde? Daqui não pode ser!

sábado, 2 de novembro de 2024

A IMPORTÂNCIA DO HOMEM NAS VIDAS DE UMA MULHER

Domingo cinzento de um mês chuvoso. Tudo parecia andar preguiçoso: o cantar madrugador dos galos, o uivar matinal das lobas ciosas, o acordar das gentes cansadas da tonga semanal e o acumular das nuvens do céu ainda acinzentado, sem sol nem fundo azul. Apenas três vozes se ouviam na sanzala.

Registisso, Ignorisso e Esquecisso, contemporâneos desde a mukanda e feitos amigos para a vida, caminham em direcção à area em que fizeram lavras. É lá também onde se produz o Kanyome que afugenta o frio mais intenso de Cyapya Ndalu e transforma os homens reservados e silenciosos em falantes e filósofos momentâneos. Ignorisso é um deles. Sem esse aditivo, contam-se-lhe as palavras proferidas durante uma marcha conversante de hora e meia que abate seis quilómetros.

Naquele dia, a conversa era fiada. Registisso e Esquecisso, os que sempre tomavam a iniciativa, não teinham anunciado nada. Nadinha. Os primeiros duzentos metros, depois do ponto de encontro que foi a Escola do Povo, tinham sido de surdina colectiva. Apenas a respiração barulhenta de Ignorisso os fazia co mpanhia, até que, fazendo recurso à memória, Registisso abriu um dos capítulos de sua vida.

_ O meu pai morreu em 1982, aos 42 anos, de doença natural, cárdio-respiratória. É normal num contexto anormal em que vivíamos no início da década de 80. Talvez pela doença que o apoquentava, desde adolescente, não tinha uma estrutura corporal robusta e atraente. Viam-se-lhe os ossos e vezes há em que se lhe podiam contar as costelas desenhadas no corpo desnudado. Era, todavia, um homem dedicado e esforçado como bom trabalhador agrícola, caçador e pescador nos rios da região em que habitou. Era engenhoso. Criou peixe em um rio que não os possuía. Hábil na caça com cães. O que dele melhor se falava era a sua habilidade em levar carne para casa. Evitava tomar makyakya e não fumava. Já a minha mãe era o inverso na sua mocidade. Fumava em cachimbo (era princesa e atrevida). Como a nossa casota era pequena (redundância propositada), os seus desentendimentos rápidos chegavam aos meus atentos ouvidos. "Feio, pobre, etc." Lembro-me de ouvir estas e outras expressões que ele geria com elegância e muito silêncio. 

Os dois amigos ouviam sem interromper. Algo comovidos. Algo ansiosos em ouvir a próxima nota, até que Esquecisso interrompeu.

_ E nunca os viste a lutar? Teu pai tinha paciência. Eu quando o sangue me ferve não admito abusos...

_ A vias-de-factos, terão chegado apenas uma vez, mas longe de meus olhos. Cheguei a tal conclusão porque ambos estavam arranhados.

_ E que achavas do teu pai, em relação à tia que era mais dada a trafulha? _ Questionou Ignorisso.

_ Aos meus olhos, o meu pai valia pouco perante a minha mãe que se gabava de possuir poder: poderio político, por ser princesa, e poderio económico, por ter parentes em Luanda que sempre a podiam auxiliar financeiramente em caso de alguma necessidade mais premente. Ele, era uma espécie de "cão-de-merda que não tinha onde morrer". Mas, era um bom pai. Carregava-me ao ombro eu para a escola e ele para a tonga. Queria ter um filho professor" que, depois, ensinasse as outras crianças a sair da escuridão. Ele sabia assinar, lia e escrevia as cartas de outros parentes da aldeia. Em contrapartida, a minha mãe, sobretudo depois de viúva, esforçou-se em criar os filhos. Com e sem marido exerceu poder, mas nunca chegou a ser homem. A masculinidade é doação única e divina!

À medida que a prosa de Registisso ganhava profundidade, a cadência do passo aumentava e o destino se encostava mais aos olhos. Nisso de visitar o guarda-memórias,  Esquecisso também visitou as suas e trouxe ao conhecimento dos companheiros uma situação ainda recente.

_ Olhem! Vocês sabem que no mês passado estive na capital onde fomos nos despedir do irmão da minha ndona. Nas poucas vezes em que conversei como amigo com o meu recém-finado cunhado pude saber do sofrimento por que todos passamos em vida. A desvalorização por parte de quem decidimos caminhar juntos, mesmo nos entregando às causas até ao último esforço. O quê que somos aos olhos delas?

_ Somos meros "cão-de-merda", recebidos com reclamações, resmungos e bafos, atirando-nos ao "rosto" os nossos insucessos, mesmo nunca deixando de tentar o melhor. _ Responderam Registisso e Ignorisso que, desta vez, interagia como nunca.

Empolgado, Esquecisso continuou com as indagações.

_ Para que valemos mesmo? Vocês sabem? 

_ Pra nada! _ Respondeu Registisso, complementando o amigo.

_ O que eu assisto é que os filhos já existem e alguns são grandes. A sexualidade abranda. Algumas vezes (quase sempre), na hora do "vamos ver", o indivíduo é recebido com reclamações, quando não são ataques e ou dislates. Que fazer?

_ Nada! _ Respondeu desta vez Ignorisso.

_ Volto à estória sobre os meus pais. _ Atirou Registisso. A minha mãe foi viúva por três vezes. Um individuo que morreu sem deixar história, o meu pai que morreu aos quarenta e dois anos, deixando quatro filhos e o sucedâneo de quem a minha mãe teve um filho. Amo a minha mãe como ninguém. Todavia, me pergunto até hoje:

O que faz os homens morrerem antes das mulheres, vocês sabem? _ Atirou provocante, sem, no entanto, dar tempo a respostas.

_ Nos dias que correm, a minha mãe não pára de elogiar o bom homem que foi o meu pai. Já lá se foram 42 anos. É a imagem que lega aos netos e às minhas irmãs mais novas que tiveram menos convívio com o papá. Fez a sua parte. Engoliu os sapos e sorveu igualmente a água do charco. Morreu herói. Talvez, um dia, sejamos também lembrados assim, como herói que foi vilão! Se calhar, tal como o meu pai, o teu finado cunhado tenha já sido transformado em querido e saudoso herói e nós, quiçá, no post-morten, venhamos a sê-lo também. Que acham?

Ignorisso e Esquecisso que o ladeavam estenderam os braços e o envolveram num abraço. Estavam já prestes a chegar ao alambique do Ensinisso, irmão mais novo de Ignorisso que estava a destilar kanyome para o seu alambamento.

_ Olha, mano Registisso, quem deve ouvir novamente a nossa conversa é esse miúdo que quer ter mulher, apontou o irmão mais velho, antes mesmo do kwata-kwata.

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Publicado pelo Jornal de Angola de 27.10.24

terça-feira, 1 de outubro de 2024

AS CHALADICES DO CHICO "PÉ DE MULETA"

Nasceu magro como palito de vassoura e muito mexido, daqueles a quem a ciência actual chama hiper-activo. A vida dele foi, entretanto, marcada por um incidente que lhe "comeu" metade do pé, sendo a extremidade do pé esquerdo uma ponta que deixa uma marca parecida à de uma muleta no chão arenoso ou húmido em tempo chuvoso.
A aldeia toda apelidou-o de Lufeñeno (palito). Diz-se que a progenitora de Lufeñeno (palito) era consumidora dedicada e a tempo inteiro de destilados, desde tenra mocidade.
Numa noite de kixobo, Kamone, já endiabrada com doses elevadíssimas de makyakya a correr-lhe no sangue, meteu-se à dança de kilata. Quase à hora de os galos iniciarem o canto, a poeira e o álcool juntaram-se ao sono e cansaço. Lufeñeno ainda não balbuciava palavras. Talvez, também embriagado pelos gases alcoolizados soltos pela mãe, nem tempo para choro teve. Ou melhor, a aldeia não foi a tempo de o ouvir a clamar por socorro.
Kamone dormitava desavisada junto à fogueira. Era a guardiã, apesar da bebedice, da fogueira comunitária, onde todas as manhãs se alimentavam os fogos de todas as casas. Num gesto inexplicado, um dos pés de Lufeñeno foi parar ao lume. O resto, só vendo o resultado que faz os jovens mais atrevidos e lyambados deste tempo tratarem o senhor, quase cinquentão, por kota Chico Pé de Muleta. O nome dele de Lufeñeno quase que não se ouve mais na aldeia de Kimbilima.
Bem, estávamos num óbito. Lufeñeno e eu temos irmãos comuns. Eu pelo lado paterno e ele pelo materno. É assim quando as relações se desfazem e cada ex-integrante forma outro par. Lá em Kimbilima e no Kuteka tratamo-nos como manos.
Os cientistas dizem que a formação da consciência do homem demanda duas heranças: a biológica e a social. As percentagens que me passaram do in ao id estão nos livros e no telefone com internet. Voltemos ao Lufuñeno que herdou a copofonia da falecida mãe. A propósito, a kasule do meu pai, vendo Lufeñeno, com aquela sua perna de pé cortado a beber como se o amanhã não existisse mais, teve de soltar um desabafo malicioso.
_ O papá mesmo não tinha sorte de arranjar mulher!
Pena é que o sô António Chico pereceu em 1982 e não temos como tirar-lhe explicações.
_ Coitado. E ele não bebia nem fumava. _ Respondeu Kasola a irmã mais velha da Kethanga, a primeira a sentir pena do pai.
E o Lufeñeno começou as suas chaladices convocando os sobrinhos:
_ António, vem prá cá. Domingos, ó sô Lumingu, vem também. O Manuel num fica atrás vêm juntos.
_ É o que então, ti Chico? _ Interrogaram-se algo revoltados, arrastando outras reclamações enquanto se aproximavam a passo de lesma.
_ Esse ti Chico também quando fica xonê é chatinho. _ Atirou o Domingos.
Mas, Lufeñeno tinha uma agenda para aquela noite. Temendo usar da agressão que, às vezes, quando demasiadamente encopado, lhe era característica, os adolescentes ficaram a metro e meio, evitando abeirar-se do tio que começou as perguntas:
_ Aqui, onde estamos, é aonde? Me respondem ainda se vocês são mesmo espertos.
_ É na vila, ti Chico. _ Respondeu o Manuel.
_ E ali, onde estão aquelas luzes?
_ É também na vila, ti Chico. _ Respondeu o António, mantendo-se calado o Domingos.
_ Vocês são burros. Vê lá se ainda não conhecem a cidade. Essas casas de adobes, todas embrulhadas, sem ruas nem quintais, é que estão a dizer que é vila de Kibala? Vocês, quando voltarem à aldeia, não vale apenas se gabarem que foram à sede do município. Na Kibala de verdade ainda não chegaram. Estão a ver aquelas luzes, nê? É ali. Entre Kakungulu e Kibala-Sede ainda tem uma baixa e um rio pelo meio. Ouviram? _ Atirou Chico Pé de Muleta, quase a gritar, fazendo-se ouvir por curiosos e transeuntes.
Os moços lançaram demoradamente os olhos à elevação que libertava luzes e terão posto as cabeças a pensar no que Chico Lufeñeno lhes dissera.
_ Está bem, ti Chico. Já podemos ir?

_ Vão, mas escrevem o que vos disse, seus analfabetos. Vila é lá. Aqui é Kakungulu. Se querem se gabar que estiveram na vila é melhor amanhã pegarem mota e chegarem lá. Estão aqui os vossos tios que vieram da capital. Pedem já. Mota é só cem!

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Publicado pelo Jornal de Angola a 29 de Setembro de 2024.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O ÚLTIMO POLÍCIA

A patrulha, transportada em turismo branco, estava parada na rotunda do Cemitério do Alto das Cruzes e abordava, aleatoriamente, viaturas que vinham do Largo do Ambiente e do Miramar em direcção ao Kinaxixe.

Saído cansado do trabalho, às dezanove e vinte de uma semana prenhe de pilhas de papéis para despachar, reuniões algo intermináveis e imprevistos ao longo da jornada, apenas a casa, a filha derradeira e o netinho me vinham à cabeça.
A habitual saudação "boa noite papy" e "boa noite avô, me trouxeste o quê", à chegada, têm sido o bálsamo para aliviar toda a tortura do dia-a-dia de um meio-operário e meio-intelectual de gabinete.
Usando um carro de idade avançada, sem mais força suficiente para transpor a acelerador leve a rampa do Intercontinental e fazer a curva à direita, foi, exactamente, ainda a terminar de "escrever" o ângulo recto que o polícia se colocou à frente, fazendo-me sinal para parar e estacionar.
_ É o quê então? Fiz o quê ou o quê que devia fazer e não fiz? _ Caiu-me um céu de interrogações ditas em surdina.
À diante de mim estavam já duas outras viaturas abordadas, sendo que uma delas tinha a porta aberta, vendo-se a perna do condutor pousada sobre o pavimento, enquanto um elemento de farda azul, caki, lia os documentos ã frente da viatura que tinha os faróis à meia luz.
Meio aborrecido, todavia obediente, estacionei entre o carro branco da polícia e o que fora abordado antes de mim.
Como sempre, apressei-me em baixar o vidro e procurei pelo interruptor da lâmpada que acendi às pressas, antes que o homem, alto, 1,76 ou mais, pele escura e massa muscular a apontar-lhe uns 85 ou 90 quilogramas, me dirigisse aquelas palavras de "dá cá isso, mostra lá aquilo, por que não tem aquil'outro?".
O homem abeirou-se de mim, sem pressa, mas também não se fazendo demorar. Controlei-lhe os passos, os gestos e até as ideias e, antes mesmo de me dirigir a saudação, levei a mão ao casaco e retirei a carteira da algibeira que ficou à mostra, esperando que me pedisse os documentos.
_ Boa noite meu director!
_ Boa noite, senhor agente! _ Respondi-lhe meio desconfiado.
Antes, levei os olhos aos ombros dele a tentar descobrir o grau da patente que não tinha. Tratei-o apenas por "senhor agente" o que não é dislate.
_ Caro condutor, desculpe a abordagem. Vejo que está com a carteira na mão. Não precisarei de lhe pedir os documentos. Estamos a fazer uma abordagem preventiva e pedagógica. Sabe que há muita delinquência e não sabemos quem anda nos carros, se são pessoas em segurança, ou raptadas. Normalmente, fazemos revistas dos carros.
Enquanto se explicava, eu transformava a "raiva" do impacto inicial em cordialidade. Afinal, fora uma abordagem inesperada e primeira naquela hora e local de passagem diária, pelo menos de segunda a sexta-feira de todos os meses que já somavam dois anos e tal.
Mal o homem terminou de pronunciar a última palavra do discurso explicativo, baixei os vidros traseiros e aumentei a iluminação interior para que visse que não havia nada mais para além do vácuo e da minha vida, mas ele, diligente e mostrando que é bem-educado, retorquiu.
_ Também não precisarei de revistar a sua viatura. Muitos não gostam, por isso é que lhe estou a explicar. Aliás, para se revistar tem de haver ou mandado ou indícios que nos levem a desconfiar de algo e cumprir com esse procedimento. _ Explicou, deixando-me mais tranquilo e feliz também.
_ Afinal ainda temos bons polícias. O senhor é muito polido e cortês. Muito obrigado! Polícias como você podem até parar-me cinco vezes no meu trajecto do trabalho a Viana. Pena é que são poucos! _ Brinquei.
O homem fez uma continência e o imediato sinal de que eu estava liberado.
_ Obrigado, senhor polícia! Você transformou positivamente a minha noite! _ Disse-lhe a sair.
E como não é todos os dias que assim acontece, deixo este testemunho. Fui abordado (11.07.2024), cortês e cordialmente, por um agente da polícia. Afinal, ainda resta "um agente" que age como a sociedade espera que todos se comportem.
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Publicado pelo Jornal de Angola a 8 de Setembro de 2024

domingo, 11 de agosto de 2024

O KAMBWIJI DE 10 KG E OS 250 ANOS DA VELHA ROSÁRIA

A idosa na foto é a minha mana Maluvu-a-Kyoko ou Rosária Albano. Calculadamente, deve ter 80 ou mais uns anitos. Porém, diz que "se eu (narrador) tenho 50, ela não pode ter menos de 250 anos" e justifica que me viu a nascer quando ela já era mãe de uma kalumba.

Chamou-me com urgência, no dia 01 de Agosto, e explicou a razão:
_ Lembrei-me de uma cena ocorrida quando tinhas 5 ou 6 anos.
_ O que se passou, mana?
_ Um dia, saí da Munenga e fui ao Rimbe visitar-vos. Mal cheguei, apareceu o mano António (eu tratava por mano o teu pai, porque o pai dele era também meu tio) a carregar dois kambwiji pequenos e tu carregavas um portentoso kambwiji. Então perguntei: mano António, como é que você, enquanto pai, leva dois animais pequenos de pouco peso e o filho é que carrega o animal mais pesado?
_ Ó mana, isso aconteceu?! E o que foi que ele te respondeu?
_ Não foi ele que respondeu. A criança que eu estava a acudir é que respondeu altiva e resmungona.
_ Que eu te respondi, mana?
_ Disseste, num linguajar Kibala bem afinado, "wathithi kwamunzembe, Ndonga-a- Ngulu wandongile!"¹
_ Oh! Foi mesmo, mana?
_ Disseste e põe também essa cena no teu livro. E olha: o livro que me deste, onde eu estou, o teu sobrinho Segunda Januário "Kabengo" levou. No próximo que vais escrever me põe lá de novo.
Levei a mão à cabeça, a pensar, a matutar. Como é que uma velha iletrada valoriza tanto um livro ao ponto de tê-lo todos os dias sobre a cabeceira "junto da Bíblia", segundo me contou?
_ Não tem problema, mana! Olha, na semana passada fui à Kibala e dentre as coisas que escrevi, lembrei-me da frase "wathithi kwamuzembe" e meti na crónica que já saiu no Jornal do Kwanza-Sul e Benguela (Jornal Litoral). Quando eu publicar outro livro, essa parte dos kambwiji vai entrar e vou escrever que foi a mana quem me contou a cena. Quanto ao livro que o Segunda "Kabengo" levou, vamos já resolver.
_ Mas, vais resolver quando, ó Luciano? Eu tinha sempre o meu livro ao lado da Bíblia e quando mandasse alguém ler a Bíblia para mim, também lia o livro, naquela parte que entra o meu nome e a lavra no Kanzangiri.
Fui revistar o carro e, por sorte, havia três livros: um para o Augusto, jovem que foi meu aluno primário e que declarou coisas de me alegrar o coração, e outro para a mana Rosária "Maluvu" Albano que continuou com as estórias. E contou ainda:
_ Olha a nossa mãe Kyoko Ky'Eteta (Mariana) era oleira. Produziu panelas de barro e com estas comprou um cabrito e com o cabrito comprou uma fazenda junto ao rio Mukonga.
_ Ai é?! Não é que a irmã dela Kilombo Ky'Etinu "Maria Canhanga" também fabricava panelas de barro? Mas, no dia em que lhe recordei disso e perguntei "por que é que agora, que a mãe já é idosa e podia retomar a fabricação de panelas e outros artefactos de argila, já não o faz", sabe o que me respondeu?
_ Weli eji ki?²
_ Respondeu que era a pobreza que a impelia a fazer moringues e panelas de barro.
_ Mas, agora a mãe está cega como é que ia triturar a argila, fazer os rolos, formar as panelas, alisar e cozer?
_ Sim, mana Rosária. Eu abordei-a antes de perder a visão. Às vezes ficamos a falar do passado e do presente.
_ Continua a fazer isso, mano. Nós já temos muita idade, mais de 250 anos. Daqui a nada vamos vos deixar e vocês é que vão continuar a contar as coisas. Foi por isso mesmo que te chamei, não havia outro problema, meu irmão. Era somente esse.
Feito o mahezo³, começou a minha vez de trazer à memória alguns tópicos de sua vida.
_ Ó mana, lembro que na sua fazenda, na Mukonga, a mana trepava (com verga) às palmeiras para cortar desdém...
_ Sim. Quando eu era jovem, há homens que não torravam farinha comigo. Eu trepava mesmo como os homens.
_ Mas também se conta que um dia a mana quase caiu...
_ Quem foi que te disse? Você afinal é um pouco mais velho. O que aconteceu é que, ao cortar o cacho, vi uma cobra que estava a olhar para mim. Com medo de que ela fosse cuspideira, perdi força e larguei a verga, caindo. A minha sorte foi o facto de a altura ter sido pequena. Dali em diante nunca mais trepei em palmeiras.
= Genealogia =
Maluvu-a-Kyoko "Rosária" é filha Kyoko Ky'Eteta. Kyoko é filha de Kiteta. Kiteta é filho de Kyole Muryanga.
Eu sou filho de Kilombo Ky'Etinu⁴. Kilombo é filha de Kitinu, irmão de Kiteta, ambos filhos de Kyole Muryanga. Logo, temos bisavó comum, Kyole Muryanga.
= Notas =
1- Não desprezes o homem de baixa estatura. Quem é alto nunca toca aos céus. Ndonga-a-Ngulu (baixinho) venceu-me uma vez.
2- O que foi que te disse?
3- Introdução ao tema da conversa.
4- A antroponímia tradicional é matrilinear, ou seja, o filho (a) recebe o apelido da mãe (Maluvu filha de Kyoko). Apenas nos casos el que o progenitor é notável (rei, soba, ou destacado membro da corte) é que o filho adopta o apelido paterno (KilomboKy'Etinu).
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Texto publicado no Jornal de Angola de 18.08.24

quinta-feira, 25 de julho de 2024

AS KAPULANAS DE MAPUTO

 O "sonho de avião" é antigo. A viagem no Boeing 737-700 da companhia "Bandeiras" é que é recente. O avião apresentava o interior limpo e arrumadinho, embora não lhe faltasse um dos 120 assentos a gemer sempre que o ocupante fizesse algum movimento mais impactante sobre ele.

A viagem era de 4horas, lingando países lusófonos situados em oceanos distintos.
Para quem viaja nos livros e jornais antes de se fazer à terra de destino, a ponte que os pilotos não se coíbem de sobrevoar era prenúncio de chegada enquanto outros perguntavam-se ainda "que pont'éssa" e "que país estamos a sobrevoar"?
_ É Katembe-Maputo ou o inverso. A cidade já foi Lourenço e o país é o das kapulanas. _ A voz perfurante entre tantos outros cochichos ouviu-se saindo do meio do avião. Era do Samora.
_ Ah! Afinal chegámos? E quê isso de kapulanas? É nome de comida?!
_ Não. Comida é xima com Agostinho Neto.
_ Xima com Agostinho Neto? Como é o que nosso guia imortal entra na comida?
_ Guia imortal? Isso é o quê?
_ Guia eterno. Conselheiro de todos os tempos. Estrategista intemporal. Percebes? Mas conta lá como é isso de comida ser xima e Agostinho Neto.
_ Ah! Vocês que vêm da região austral atlântica lusófona não sabem o que ele fez em 1976? - Inquiriu António, intrometendo-se na conversa, enquanto preparava o corpo para abandonar o assento resmungão.
_ Quê que fez o amigo do presidente Machel?
_ Mandou para cá um navio de carapau para selar a amizade entre os dois presidentes e os dois povos.
_ E daí? _ O angolano quase concluía, mas esticou ainda mais a corda da conversa, fazendo com que fosse o moçambicano a dar a machadada final na conversa.
_ Eufóricos, como éramos naqueles anos do triunfo da nossa revolução, passamos a chamar o peixe carapau "presidente amigo", só quê...
_ Neto morreu...
_ Não. Ainda estava vivo. Outros países como a Tanzânia também afinaram as relações com Moçambique e "presidente amigo" ficava vazio ou impreciso.
_ Então desistiram do peixe e passaram a comer xima acompanhado de matapa...
_ Matapa também. Sempre houve. É prato típico nacional de Moçambique, assim como nhima de cabrito, mas o peixe carapau ganhou o nome Agostinho Neto e se foi popularizando. Já lá vão mais de 3 gerações.
_ Kapulana também é comida típica daqui? _ Voltou a questionar o angolano, já mais aliviado e satisfeito com a atribuição do nome do seu primeiro presidente à espécie pelágica que habita as águas temperadas.
_ Kapulana é um tecido tradicional muito popular em Moçambique. É caracterizado por suas cores vibrantes e padrões distintos e é usada para fazer roupas, acessórios e peças de decoração. A kapulana, por cá, tem uma grande importância cultural e social, sendo utilizada em cerimónias como o lobolo, oferecida como presente.
_ Lobolo ou Libolo? Para nós, Angola, Libolo é um município que tem uma equipa de Futebol que actua no campeonato principal.
_ Aqui é cerimónia de entrega de dotes e pedido de noivado de uma rapariga. Vocês também devem ter, calculo.
_ Sim. É alembamento. Na verdade, no Kimbundu vernáculo diz-se kulemba. Os portugas é que passaram a dizer alembamento e assim ficou aportuguesado.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

UM MIRAGE* SOBRE A GRUTA

O grupo de reconhecimento profundo tinha progredido no terreno durante o dia todo, entre atalhos, selva densa, asfalto e picadas. Tudo devia ser feito em segurança e máxima discrição para não serem vistos nem pela composição de três aparelhos circulantes, nem por eventuais sinais deixados na natureza como poeira e fumo. 

A chuva, fugida de Luanda e instalada permanentemente no Kwandu nyi Kuvangu,  revezava-se com curtos instantes de sol intenso que magoava as lentes oculares, tornando lenta a marcha que foi completada após penosas 14 horas. Paragem para abastecimento Logístico houve apenas uma durando não mais do que hora e pico.

Cansados, mas confortados pelo sucesso da parcela da missão, o grupo liderado pelo Comandante Jesus Cortex, teve outros desafios no terreno. Era preciso separar os integrantes em dois subgrupos e encontrar abrigos seguros para pernoitar que não denunciassem a presença deles nas margens do Rio Kwebe.

Conhecedor da área o Brigadeiro Cortex e o seu Estado-Maior, Major Buta, isolaram-se dos demais e estudaram minuciosamente o mapa topográfico da região. Analisaram, perante os olhos e ouvidos atentos do especialista em comunicação, as possíveis vulnerabilidades para intrusões e saídas inimigas, assim como as zonas de maior opacidade à penetração terrestre e observação aérea. 

Havia uma kamunda com rochedos e uma gruta que podia servir de abrigo durante a noite.  Um único desfiladeiro aberto por animais e caçadores conduzia ao local que atenderia os três dormitórios. Minas defensivas foram plantadas a 150, 100 e 50 metros no desfiladeiro para prevenir eventual penetração inimiga.

Encontrado o local, desfizeram as mochilas para retirar os mantimentos. Apenas parte delas. Era preciso atender o estómago que reclamava ração fria. Não foguearam.

_ Fazer fogo é dizer estamos aqui. _ Preveniu o Estado-Maior.

O Capitão Matoumorro, "Radista" como é conhecido entre os pares, encostado em um penhasco, conferia as mensagens recebidas do Comando Central e as repassava aos colegas, depois de devidamente descodificadas e filtradas.

_ Apenas os essenciais para a nossa missão. _ Alertou antes da distribuição. 

A noite até podia ser tranquila. Pelo menos as "camas" eram, apesar daquele cheiro de excremento de canta-pedras que tagarelavam intermitentes por perto. Havia somente um senão. Um Mirage sobrevoava a o monte de tempo em tempo, obrigando-os a permanecerem em alerta e prontidão defensiva durante toda a noite. 

Não houve confrontos, não! Porém, também não houve sono até que o Mirage foi abatido às 07h01 da manhã pluviosa. E chovia como nunca!

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*mosquito incómodo em quarto de hotel.

sexta-feira, 1 de março de 2024

TRAVESSURAS ESGOTADAS

 

Editado e publicado no Brasil pela TM Editora (apenas 30 exemplares chegaram ao autor), aparece na bloguesfera como "esgotado" tendo sido comercializado a cerca de USD 10.
Apesar de termos firmado contrato, não nos chegou nenhuma pecúnia. Alegra-nos, entretanto, saber que o livro foi/está a ser lido na outra margem do Atlântico.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

VIAGEM LITERÁRIA AO "MANONGO-NONGO" DE SOBERANO KANYANGA

Caracterizar um escritor com estilo multi-literário, caso nos seja permitido o uso do termo, não é uma tarefa fácil. Quando ainda nos deparamos com a universalidade das suas obras que nos guiam ao além da ciência e transmitem ensinamentos fecundos e visíveis.

Assim tomamos algumas palavras para manifestarmos o valioso contributo literário da obra supracitada. No estilo infanto-juvenil,  procura nas suas linhas pedagógicas, educar a sociedade hodierna, mormente a classe juvenil, à base de estórias criadas e recriadas pelo autor e concebem no final de cada uma delas, um ensinamento moral.
Como podemos conferir e sentir a luzidia mensagem em "A CEGA E O CÃO KELULA", pp.45-47 «entre os amigos ou pessoas que se amam deve haver confiança mútua». Quão pedagógico e profundo, é este discurso que não se escapuli do messiânico!
É ainda transcendental a imaginação do autor, quanto a criação e recriação de estórias que encerram com princípios morais que à luz da visão hodierna, reflectem uma filosofia de valores, concebida para uma sociedade onde se presencia o adeus dos valores morais e cívicos.
E o autor, sendo filho deste país chamado Angola, ensina em "A COMILONA E O CISOMBE", pp.67-70, que: «A gula e a avareza são vícios perigosos que podem levar à morte. Não deixe de dar de comer a quem tem fome».
E por que o autor teria escolhido o tão sugestivo título para o seu livro?
Antes de deixarmos o autor responder a tal questão, gostaríamos de viajar até Belém da Judeia, para lembrarmos o nascimento de Cristo Jesus e a visita dos Reis Magos que culminou com a entrega de presente valiosos da época. Assim também acontece no território nacional, singularmente nas Lundas onde o autor viveu durante muito tempo. É costume, a familiar criar um ambiente festivo junto dos amigos, para saudarem a anunciação do novo membro da comunidade.  Neste ambiente, saboreiam-se os kitutes da terra e nota-se a bonança da variedade de bebidas.
E não está de fora o nosso autor quando nos brinda do seu íntimo, este seu "MANONGO-NONGO", do qual nutrimos em letras de ouro e em páginas cintilantes os fecundos ensinamentos. Como pode responder no preâmbulo que faz da sua fantástica obra: «Escolhi o nome  Manongo-Nongo para este livro por desejar que venha a ser também uma festa para todas as crianças de Angola que devem crescer com sabedoria e inteligência encontrada e transmitida nos livros que lêem e nas experiências transmitidas pelos mais velhos».
Quanta solidariedade e respeito pelo próximo o autor manifesta! Se o Manongo-Nongo é uma festa, então que festejemos também nós e deixemos a alma rejubilar de glória por tê-la.

Beto Baião
Kwango LN, 20/07/2014. 22h00

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS DE MANGODINHO

A noite tinha sido chuvosa. Chuva grande com vento e trovoadas. Parecia que as montanhas mais próximas se iam encontrar e ensardinhar todas aquelas aldeias que se achavam no perímetro de Tumba Grande.

Mangodinho e o Soba Toneco haviam combinado comunicar ao povo as ideias do administrador comunal, camarada Maria, e as deles.
Era seis da manhã e um quarto quando fizeram tocar o sino do costume.
- Ndrim, ndrim, ndrin. Três vezes mais outras três, mais outra sequência tripla.
Os mais velhos foram se aproximando ao local das reuniões, que tinha passado da mulembeira ao pátio da escola onde se projectava um njango comunitário, última ideia de Mangodinho. 

Na verdade, ideias é o que não faltava. As pessoas com poder de as assimilar e materializar mais os recursos para fazer acontecer é que eram escassos.

O miúdo Russo, uma espécie de responsável pela comunicação, estava a ser projectado e cuidada de convocar, boca-a-boca aqueles mais alérgicos àsreuniões da aldeia, normalmente os que mais resmungam e pouco cooperam.

- É assim mesmo. Cada faz bem o que sabe e aprende o que gosta. No tempo certo, recebe o cargo. - São palavras de Toneco que fez esse percurso desde miúdo na aldeia de Kuteka. Mangodinho também está a subir e miúdo Russo está a vir atrás dele.
Mangodinho foi dos primeiros a chegar para receber as pessoas. Depois é que chega o Soba Toneco. O último e que dá início à reunião.
O secretário Mangodinho fez a introdução sobre a chuva, os estragos "que vamos ver na aldeia toda e nas lavras" e o que é preciso fazer para que o mal seja maior.
- Bom dia, meu povo, minha família! A noite não foi de tranquilidade. Já vemos chapas voadas. Capim arrancado por cima das casas e, nas lavras, vamos ver quando sairmos daqui. - Disse Toneco, à guisa de arranque. - Porém, tenho ideias que transmitiu o administrador e quero bos fazer chegar.
Toneco fez pausa para ver se o povo estava ou não a gostar. Passeou os olhos pela multidão e sentiu que podia avançar.
- Pois, então, a ordem é para construirmos latrinas ou sítios para fazer as necessidades maiores. Da maneira que é: pessoa vai na mata com porco a te seguir e depois vem o porco a mexer na comida acham que está bom?
- Não! - Responderam.
- Ainda bem. O Mangodinho, depois, vai explicar ponto por ponto.
Fez outra pausa e, desta vez, afinou também os ouvidos para conferir se havia murmúrios. Às vezes o povo grita que sim, mas rejeita com murmúrios.
- O segundo ponto é sobre o Posto de Saúde que é importante construir. Alguém quer falar? - Hábil, Toneco deu palavra para espremer qualquer contestação e fazer o remate final.
- Ngana Soba, infirmero não tem ainda, vamos já construir? Ou tem outra ideia boa? - Questionou Kajobiri, uma velha de pouca fala.
- Sim mamã. Nesse caso também, o secretário vai esclarecer, mas vamos usar o mecanismo que fizemos para ter escola: construímos já o Posto e casa do enfermeiro. Depois, pedimos o mestre. Também, a aldeia vai escolher duas pessoas, jovem de homem e de mulher para ir no Sá da Bandeira fazer curso de enfermagem. Os interessados contactem já o nosso secretário.
Toneco parou para mandar ar aos pulmões. O povo aproveitou agradecer as palavras com três rajadas fortes de palmas.
- Mas não terminei ainda. Posso continuar?
- Pode. Estamos a gostar, Soba.
- Falta o poço. Posso?
- Pode. - Responderam.
- Poço, é buraco para tirar água. Vamos cavar, aqui mesmo na aldeia, até encontrar água. Vamos construir as paredes com adobe queimado e veremos uma manivela com tubo para fazer tipo chafariz. Assim, a água do rio será só para lavar e tomar banho. Para beber e cozinhar será já aqui. Beber no mesmo lugar com os animais é que está a trazer muitas doenças. Fica ou não fica bom?
- Fica, fica, fica!
Em quarto, lugar, o administrador mandou outros sobas e secretários a virem aqui ver o que estamos a fazer para melhorar a aldeia. Quando vos contactarem, ensinem os outros, mas perguntem também as ideias deles para fazermos o que eles têm de avanço. Pode ser?
- Pode!
- Então, os homens todos ficam com o Mangodinho e as mulheres podem avançar no mata-bicho e na produção.
- Puá, puá, puá. - Choveram salvas de palmas.
O Soba e o secretário ficaram com os homens, jovens e adultos, a acertar os pormenores de cada acção e as responsabilidades e incumbências de cada um.
A construção das latrinas familiares e colectivas, o Posto Médico e a casa para o enfermeiro, o envio de dois estudantes ao Lubango e a construção do poço ficaram confirmados como os desafios da aldeia de Pedra Escrita que se quer inscrever na lista de "Comunidades inovadoras" do Lubolu.

Publicado pelo Jornal Cultura de 7.12.2022