Saga do
amanhã incerto em “Kitotas: recuos e avanços” de Soberano Kanyanga
Por: Carlos
Cabombo
Não pretendo,
Tovarich (camarada), conhecer todas as razões, profundas ou superficiais, pelas
quais uma variedade de pessoas escreve, mas um motivo, pelo menos para mim, tem
a ver com a sensação de pôr mais uma parte do mundo numa forma ordenada
enquanto estou efetivamente empenhado a escrever. Escrever é raciocinar; é luta
contra o caos e a escuridão. Há um entusiasmo que “toma conta de nós” quando
sentimos – não importa agora se é assim ou não – que estamos conquistando mais
um pouco desse caos para e pelo entendimento. É claro que se trata também de
uma luta contra outras ideias e imagens a que somos contrários, moral, lógica
ou factualmente (MILLS, 2009,
p. 94).
Pretendo fazer
análise à obra de Soberano Kanyanga intitulada Kitotas: recuos e avanços.
Trata-se de uma narrativa de pendor autobiográfico, patrocinada pela
SONANGOL,
editada pela Creative.by.arp e publicada em 2023, numa tiragem de 1000
exemplares. Como assinalou, no seu prefácio, o historiador, João Pedro da Cunha
Lourenço, a obra “tem como pano de fundo a guerra civil angolana que se
tivermos em conta os princípios definidos pelo historiador francês Pierre de
Nora, ela é para nós um ‘lugar de memória’”. (p. 8)
Sobre o autor,
posso, em linhas curtas, dizer que Soberano Kanyanga é nome artístico de
Luciano Kanhanga, natural do Libolo Cuanza Sul, Angola. Estudou Jornalismo,
História, Comunicação Social e Ciência Empresarial. É funcionário do Ministério
da Geologia e Minas. É, também, docente primário e universitário, palestrante,
colunista no Jornal Cultura, Jornal de Angola e Jornal de economia e Finanças.
Estreou-se na arena literária em 2010 com o romance, O sonho de Kauia. O
escritor, também, membro da União dos Escritores angolanos, conta com mais de 6
obras publicadas, entre romance, novela, conto e poesia.
Parto da perspectiva de Bakhtin que encara a
autobiografia como “narrativa de uma vida” (BAKHTIN, 1997, p. 166), pois é da sua
experiência de vida, numa conjuntura sócio-política conturbada, que o autor inscreve
o seu livro de pendor autobiográfico, fazendo jus a ideia, de Jean-Jacques
Rousseau, segundo a qual:
Ninguém pode
escrever a vida de um homem a não ser ele mesmo. Sua maneira interior de ser,
sua verdadeira vida só ele a conhece; mas ao escrevê-la ele a disfarça; com o
nome de sua vida, faz sua apologia; mostra-se como quer ser visto, mas de forma
alguma tal como é. Os mais sinceros são verdadeiros no máximo no que dizem,
porém mentem com suas reticências, e o que calam transforma de tal maneira o
que fingem confessar que, ao dizer apenas uma parte da verdade, não dizem nada.
(ROUSSEAU, 2009, p. 94).
Soberano Kanyanga
procurou trazer à luz do dia um recorte das suas vivências e experiências o que
não deixa de ser uma atitude de coragem. Em meu entender, esse posicionamento, diria
essa ousadia, do menino do Limbe, entrar no curso da história contemporânea de
Angola, através do seu texto memorialístico, só pode resultar do que
Hannah Arendt chamou de “êxtase de soberania”.
Sob esse viés
de Hannah, o Homem entra no debate das ideias para apresentar o seu ponto de
vista, os seus argumentos, no caso da história diria, o seu recorte de
experiência e observação, porque atingiu uma espécie de “soberania”, esse lugar
a partir do qual se exprime, partilhando a sua experiência num quadro de
multiplicidades de vivências.
Pois para
Arendt “Na batalha das ideias, na nudez da confrontação, o homem se alteia
livremente acima de sua situação e protecção em um êxtase de soberania, não
defendendo, mas confirmando, sem subterfúgio absolutamente algum, que ele é” (MAY, 1988,
p. 25).
Sob esse viés Kanyanga se apresenta como um cidadão que tomou consciência do
seu lugar na sociedade da qual é parte e desencadeia um processo que visa
partilhar e perpetuar uma experiência de guerra e paz cujos recortes
testemunhados, ele registou. O período dos eventos narrados situa-se como o autor
faz referência de “1983 a 1993 (guerra civil) no Lubolu e outros episódios em
tempo de paz que se vivem desde 2002”. (KANYANGA, 2023, p. 7)
Interessado em
saber a origem da palavra “kitotas”, com a qual o autor inicia o título da sua
obra, comecei por convocar alguns vocábulos da língua kimbundu, que deduzo ser
onde provém a mesma, que semanticamente se aproximam a ela como: guerra que
quer dizer “ita”; disparar que é “kuloza” ou “zabula”; espancar que é “kibeto”,
“nvunda” ou “tungu”; estrondo que é “bulungunza”. Como se pode ver, nenhum
desses vocábulos constitui a origem etimológica da palavra “kitotas”.
Entretanto,
observei que o acto de triturar grãos, por exemplo pilar milho no pilão, pode
dizer-se “kutota”, daí a expressão, por exemplo, “tota kya mbote ó hungu”, pila
bem o milho. Também o verbo “kutota” pode significar bater com um objecto sobre
as mãos, as pernas ou os dedos, pelo que se diz: mwene wangi totola maku, ele
machucou-me as mãos; mwene wandala ungi tota inwe, ele quer machucar-me os
dedos.
Percebo, a
formação da palavra “kitota” a partir desse vocábulo “kutota”, dando-lhe
sentido de confronto militar, talvez diria guerra, mas, não sendo perito em linguagem
militar, posso arriscar dizer que pode haver guerra sem confronto quando uma
das partes não reage, nesse caso se pode colocar o termo “kibetu”,
espancamento/pancada ou “kibidi”, ataque que resultou na dispersão sem
resistência das forças oponentes. Mas o termo “kitota” remete à confrontação
entre as partes, combate renhido: “kulitotola”, no sentido de “triturar-se”. Em
meu entender, ao termo “kitota” é acrescido o som onomatopeico dos tiroteios,
dos obuses, etc. “tó tó tó, bum bum bum”, “ia li tota”; estão a triturar-se,
estão em pancadaria.
A materialidade
da obra em análise inscreve o seguinte panorama: a ilustração na capa
parece cumprir um papel importante na antecipação das expectativas do leitor em
relação ao conteúdo da história. A ilustração representa uma multidão com
alguns pertences sobre a cabeça e os ombros, fugindo de uma zona de guerra para
um lugar de refúgio.
Esse
movimento, para alguns, no contexto da guerra em Angola, era feito em sentido
único: lugar de conflito ou com rumores de guerra para um de maior segurança, o
destino preferido era Luanda; para outros nos dois sentidos, do lugar de guerra
para o de segurança, logo que o logo de proveniência denotasse alguma tranquilidade,
eles regressavam: aqui um dos sentidos de “avanços e recuos”, pois, outro
sentido dessa expressão pode ser depreendido do fracasso, dos Acordos de Paz de
Bicesse, que precipitou Angola ao retorno à guerra em 1992.
A imagem não
translúcida das pessoas ilustradas pode sugerir a fadiga resultante dos
quilômetros percorridos numa atmosfera que para além do medo, da insegurança e
da fome; as intempéries naturais como o frio, o vento, o sol ardente, as chuvas, também, lançavam sobre eles a sua ira.
Assim,
percebe-se que alguns elementos dos relatos da obra em análise, o leitor poderá
inferir a partir da sua capa. Entretanto, a personagem principal do relato é
individual, enquanto a capa representa uma coletividade. Me parece que a par da
personagem principal individual, a coletividade presente no relato vive as
mesmas peripécias, basta olhar que a maior parte de eventos relatados se
enquadram no conjunto, ou seja, poucas vezes o autor/narrador está sozinho, mas
quase sempre num segmento de pessoas: ora com pessoas da mesma aldeia, ora com
pessoas do seio familiar apenas ou com amigos.
Mas essa
multidão de “recuados” é também constituída por pessoas provenientes de
localidades distintas da do autor, pois os primeiros, segundo o relato, são os
que recuados de Kisala e cercanias encontraram guarida, entre os rios Sanganu e
Mbangu, depois da fazenda Costa Campos, numa das “instalações pecuárias
abandonadas por Manuel Pires. Lá se instalaram, mas tiveram avultadas perdas
causadas pelo cansaço do gado, a falta de cuidados médicos, a escassez de
pastos para a quantidade de gado, a falta de sal entre outras maleitas.” (KANYANGA,
2023, p. 11)
Segue-se, o grupo de “recuados” em que fazia parte o autor. Ao
narrar esse episódio, ele usa o pronome “nós” e a forma verbal
“pernoitássemos”, como se pode ler no trecho seguinte “o estrondo, inaudito até
àquela altura, fez com que nós, residentes no Limbe, pernoitássemos na mata, a
caminho do rio Ryaha. O zum-zum, sobre a passagem da Unita e até mesmo sobre
reencontros, fez-nos recuar pela primeira vez para o Fuke, aldeia contígua à
Estalagem de Ngana Mbundu (Walter Kruk), onde ficamos uma semana como recuados.”
(KANYANGA, 2023, p. 11)
Ainda se pode ler sobre o segundo recuo vivido pelo autor na companhia de
outras pessoas entre familiares, e, talvez, desconhecidos, em 1983, já que
nessas situações de fuga, o bairro, a aldeia, se mobilizava com excepção de
alguns que preferiam o “ver para crer”, ou seja, ver as evidências da guerra: “Em
nova fuga, caminhamos pelo sertão, até à aldeia de Kindemba, onde a minha mãe
tinha um tio, o velho Alfredo.” (KANYANGA, 2023, p. 12)
Essas pessoas
representam a multidão engrossada pelas personagens mencionadas cujas
histórias são atravessadas pela narrativa, isso se vê, pela contextualização
histórica que o autor dá a algumas delas, e outras anónimas que enfrentam as
vicissitudes impostas pelo contexto da guerra e conseguem fazer o êxodo,
experiência que aproxima o texto a uma especificidade épica.
No texto de
apresentação da obra, o prefaciador começa o seu enunciado com um verbo: “Reviver
os anos de infância, de adolescência e parte adulta é o que o livro de Soberano
Kanyanga nos propõe” (KANYANGA, 2023, p. 18) e termina-o com
outro: “Ler os rascunhos de “Kitotas: avanços
e recuos” e deixar aqui essa nota foi prazeroso”. (idem, p. 19)
Sob o signo de
“ler” e “reviver”, Soberano Kanyanga constrói o seu texto biográfico,
resultante de leituras de vivências e experiências, pois viver também é ler, é
apreender e entender o que se passa ao nosso redor, como escreveu Paulo Freire:
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquela” (FREIRE,
1982, pp. 11-12),
assim, o autor das duras experiências de vida que teve no quadro da atmosfera da
guerra em que Angola e posteriormente da paz, extraiu essas memórias.
Através das
quais se registou que antes desse zumbido, da guerra, tudo era normal na vida
desse rapaz/autor: comer, beber, estudar, brincar e dormir. Mas depois do zumbido,
os seus ouvidos se abriram e ouviram pela “primeira vez a guerra” que lhe
chegou aos ouvidos em 1983, cf. (KANYANGA, 2023, p. 11). Foi também nessa
altura que ouviu a palavra “a recua” (idem, ibidem), (os recuados, os fugidos
da guerra) e observou os outros povos que iam chegando no seu bairro numa
condição dramática:
Povos recuados
da Kisala e cercanias chegavam com manadas de bois. Descansaram dias ou mesmo
semanas na antiga Fazenda Israel, onde havia tanques para o abeberamento e
banho dos bovídeos. Porém, a devastação das lavras dos aldeões locais, a
inexistência de pastos preparados para o efeito e a proximidade do asfalto
tê-los-á levado a procurar por outra área que já teve a mesma serventia. A
caminho do Kuteka, entre os rios Sangana e Mbangu, depois da Fazenda Costa
Campos, existiam umas instalações pecuárias abandonadas por Manuel Pires. Lá se
instalaram, mas tiveram avultadas perdas causadas pelo cansaço do gado, a falta
de cuidados médicos, a escassez de pasto para a quantidade de gado, a falta de
sal entre outras maleitas. Em pouco tempo, as manadas ficaram reduzidas a nada
e os pastores tiveram de voltar às proximidades da Fazenda Israel, emprestando
a sua força à lavoura e esmerando-se na fabricação de artefactos para a caça,
numa fauna que ainda era abundante. (KANYANGA, 2023, p. 11)
Não tardaria
para que ele próprio, membros da sua família e outros moradores de seu bairro
se vissem na mesma condição de recuados.
Diante desse
quadro de peripécias, urge questionar: por que escrever livros memorialísticos
que retratam de sofrimento, dor e morte? Por que desenterrar coisas que estavam
enterradas pelo tempo? São questões que vale a pena fazer, pois podem ocorrer
na mente de alguns leitores. Muitos, diante de quadros históricos difíceis,
agem como a avestruz, outros levantam a cabeça, acenam ao tempo, reviram o baú
da história e trazem de lá vivências e experiências sob o viés da memória para
evidenciarem o que Bakhtin chamou de “estética da vida”.
Para Bakhtin,
o texto biográfico é a “forma mais “realista”, pois é nela que de fato
transparecem menos as modalidades de acabamento, a atividade transfiguradora do
autor” (BAKHTIN, 1997, p. 166). Nele, prossegue
Bakhtin “os valores biográficos são valores comuns partilhados pela vida e a
arte; em outras palavras, elas podem determinar os atos práticos e suas
finalidades; são as formas e os valores de uma estética da vida.” (BAKHTIN,
1997, pp. 166-167)
Percebe-se que a partir do seu texto, o autor
partilha aspectos da vida inerentes a si e ao outro, daí essa dimensão
partilhável, em que os que viveram a situação narrada podem revivê-la através
da memória, e os que a não viveram, a oportunidade de se apropriarem dela.
Entretanto, essa narrativa memorialística sendo “boa” ou “má”, no
sentido em pode revelar aspectos alegres e ou tristes, ela constitui a estética
da vida porque trata de experiência de vida.
É através da
sua experiência sobre os factos vividos em contexto de guerra que dá corpo à
narrativa apresentada em Kitotas: recuos e avanços como forma de
partilhar e documentar algumas situações que enfrentou.
Do que me posso lembrar, essa forma de
construir relatos de pendor memorialístico, visando a partilha de experiências,
vividas em contexto de guerra, partindo de um ângulo de observação individual
de sujeitos que vivenciaram tais experiências e com uma maneira de abordagem
dos eventos na primeira pessoa, mencionando ao longo do relato pessoas que
presenciaram os acontecimentos narrados e que cujas vozes o autor captou e faz
circular ao longo do enredo, vem-me à memória o livro Angola - A Segunda
Revolução, Memórias da luta pela Democracia, de Jardo Muekalia,
em cuja sinopse se pode ler:
Quero
partilhar com os leitores desta obra parte da experiência que vivi quando
jovem, durante o processo de independência do país, os anos de guerrilha que se
seguiram à proclamação da independência, e o processo de negociação que
conduziu às primeiras eleições da história de Angola. Esta é, antes de mais,
uma narração dos acontecimentos, vistos do meu ponto de vista, como parte de
uma geração, na altura adolescentes, que se viu arrastada pelo vendaval da
revolução, numa corrida imposta por vontades, desacordos e ambições de geração
mais velha...”.
O vai e vem da situação de “a recua” e sendo quase uma
forma de viver, num contexto de incertezas em relação ao futuro. O reiterado: “O zum-zum, sobre passagem da
Unita e até mesmo sobre reencontros” que os fez recuar pela primeira vez para o
Fuke, aldeia, onde permaneceram uma semana como recuados. Depois, regressariam ao
Limbe, então, “os recuos se seguiriam mês após mês ou mesmo semana sim, semana
também”. (KANYANGA, 2023, pp. 11-12)
A odisseia
prosseguia:
O segundo
recuo deu-se no mesmo ano, 1983, depois do accionamento de nova mina, no mesmo
local da primeira, próximo da Fazenda Kangulu. Em nova fuga, caminhámos pelo
sertão, até à aldeia de Kandemba, onde a minha mãe tinha um tio, o velho
Alfredo. A nossa permanência foi de três dias naquela aldeia. De Kandemba a
Munenga foi um passo. Mas as peripécias naquele ano e ano seguinte não mais
parariam. (KANYANGA, 2023, p. 12)
Enquanto as
minas faziam o seu rastro ignominioso: mortes e amputação de membros. Corações
nas mãos, como andar? Esse quadro sombrio lembra a música “Scania 111”,
de Proletário: “Kakitele kwenda/ mamã kikitele kwenda/ kakitele kwenda, mona
mutu yó thala hadi/ não está dar para andar/ mamã, as pessoas estão a sofrer”.
Como uma das
evidências desse período dramático, atente-se para o trecho a seguir:
Tempo depois,
não muito tempo, um tractor agrícola, carregado de cerveja, procedente do Alto
Dondo (Eka) e com destino ao Lususu, acionaria uma mina, entre o rio Kazondo e
a Bica d’Água. Perdemos o Santos Kajamba (nosso parente próximo). O Zé Manel,
que vim a conhecer mais tarde em Luanda, onde fomos vizinhos, perdia um dos
pés. (KANYANGA, 2023, p. 12)
A explosão de
minas, quer pessoais ou antitanques, causa pânico e insegurança na população.
Quando tal acontecesse, nos bairros, na vila e arredores, não se falava de
outra coisa senão das pessoas mortas, e das que tinham os membros amputados,
pelas minas cujos corpos chegavam, em estado lastimável nas morgues dos
hospitais, como resposta da mobilização dos efetivos das FAPLAS
que iam resgatá-los.
É nessa fuga,
em busca de refúgio, que os levou, num primeiro momento, até Munenga,
caminhando ora na mata ora na estrada, que o autor recorre tacitamente a ficção
para apresentar um desses momentos de caminhada penosa: “Partimos. Já não me
lembro se bem a meio da manhã ou no início da tarde. Porém, aquele sol ardente
sobre os nossos corpos pioneiros e o alcatrão derretido a travar a nossa
marcha, pés descalços, não me saem da memória.” (KANYANGA, 2023, p. 14)
A expressão “o
alcatrão derretido a travar a nossa marcha” dá a imagem de que para além do
desgaste físico, os pés descalços a suportar quilómetros que pareciam
intermináveis se constituíam na saga de uma fuga que tecia os seus dramas, um
deles o do “Velho Trinta” que cansado das marchas intermináveis, dizia: “- Por que não estragas de vez, ó relógio?! - Apelava ele, cansado
daquela vida de fugas permanentes e dias passadas nas matas, dado o peso da
idade que carregava, já acima do dobro do seu nome”. (KANYANGA, 2023, p. 15)
De ressaltar
que se pode divisar intertextualidade entre o texto de Kanyanga e o do Jofre
Rocha, pelo conto, “Os caminhos da liberdade”, em Estórias do Musseque.
Ambos os textos, embora em contextos diferentes, aludem a fuga de pessoas de
uma zona de guerra para locais de refúgio.
O texto de Kanyanga
situa a sua diegese no contexto da guerra civil pós-independência, enquanto o
de Rocha ficciona a luta de libertação nacional contra o regime colonial
português, entretanto ambos se intersecionam na apresentação de um momento de
fuga, no qual o povo cansado de caminhar não vê a hora de vencer a distância a
sua frente.
Para o autor,
essa fuga é caracterizada por um momento em que “aquele sol ardente sobre os
nossos corpos pioneiros e o alcatrão derretido a travar a nossa marcha, pés
descalços” (KANYANGA, 2023, p. 14) parecia não ter fim,
enquanto para Rocha “naquela hora o povo da sanzala estava sempre a andar, os
pés cansados, olhos a comer a distância”, interrompida, apenas, porque a
“escuridão chegou”. Interessa ver que a
imagem subjacente na ideia, “o alcatrão derretido a travar a nossa marcha”, de
distância alongando-se no olhar dos caminhantes, ou seja, a impressão de uma
distância interminável aponta para o que Rocha chamou de “os olhos comerem a
distância”, quer dizer andar para vencer a distância que parece interminável.
Para aqueles
que ainda não tinham vivido os horrores das “kitotas” e em cujas localidades
acorriam os que fugiam delas, a guerra era “desconhecida”, num primeiro
momento. Por isso, muitos deles, viam com indiferença e às vezes com desprezo
os que delas fugiam: “Ali ficámos uma semana, sendo tratados como recuas pelos
aldeões que desconheciam ainda o que era a guerra”. (KANYANGA, 2023, p. 15)
O drama da
guerra, o processo de “a recua” remete as pessoas na mais profunda indigência
social: “Os chefes de família que, havia pouco tempo, eram abastados, viram-se
forçados a trabalhar por comida”. (KANYANGA, 2023, p. 19)
Nesse
contexto, muita gente fazia de tudo para encontrar refúgio nas cidades. Luanda
era o destino preferido de muitos: “Para alguns integrantes da família Xika
Yangu, Luanda seria o próximo destino para recuo. Era o mais seguro” (idem,
ibidem). A chegada a Luanda, remetia os “a recua” a um processo, que podemos
considerar, de integração. Para muitos, inserir-se no novo contexto social não
era fácil.
Muitos não
tinham familiares na cidade, outros que os tinham não dispunham de documentação
pessoal para tratar questões ligadas ao estudo e ao trabalho. Os que tivessem a
sorte de ter familiares em Luanda, alojavam-se, inicialmente, em casa de
parentes, os que não tinham, criavam dinâmicas de sobrevivência. Poucos tinham
a sorte de Sabalu-a-Soba que “seguiu imediatamente para a capital do país,
trabalhando, depois, na empresa de eletricidade, como professor e mais tarde
polícia.” (KANYANGA, 2023, p. 19)
Como disse, a
odisseia dos “a recua” continuava mesmo depois de aportar na grande cidade.
Muitos deles, como já mencionei, ficaram sem os seus documentos de
identificação – na hora da “kitota”, você vai salvar a vida ou os documentos?
Daí as dificuldades no acesso ao ensino e outros benefícios do cidadão. O
próprio autor, na pele de “a recua” viveu o drama da falta de documentação:
Em Luanda, por
falta de documentos pessoais (Cédula), tive de apanhar a boleia na turma do meu
primo Arnaldo Manuel Carlos que era professor da segunda classe. Foi a forma
encontrada para não ficar em casa ou queimar tempo na Explicação do Sr.
António, ao Ngongo, como faziam outras crianças do meu tempo e em situações
análogas. Muitos se tornavam conhecedores de Aritmética, História, Geografia e
LP, mas nunca passavam ao II nível. (KANYANGA, 2023, p. 29)
Os adolescentes, nessas condições, que tinham os seus
pais ou tutores, depois de algum tempo, viam o seu problema de reingresso à
educação resolvido, mas aqueles que não tinham quem pudesse tratar desse
processo (muitas vezes através de campanhas de registo de nascimento promovidas
pelo Governo), ficavam entregues ao comer, dormir e acordar. Kanyanga teve a
“fezada” ou sorte de haver quem pudesse contornar a sua situação: “O meu caso
foi diferente. Os meus encarregados decidiram pela repetição da segunda classe,
enquanto se resolvia a questão dos documentos”. (KANYANGA, 2023, p. 29)
Muitos desses adolescentes, por falta de acompanhamento
familiar e outros por rebeldia, engrossavam o universo de crianças na rua, alguns
acabavam sendo marginais. Dos ventos e das influências dessa situação nem mesmo
ele escapou, como suspeitaram e acautelaram os seus familiares:
- Julgámos que
os documentos tinham sido extraviados deliberadamente e, não havendo
possibilidades de mandar-te ao exterior do país, mesmo sabendo que havia guerra
intensa no interior, tivemos de tomar a mais arriscada decisão de mandar-te a
Kalulu para não seres contagiado pela má vida dos rapazes de Luanda. (KANYANGA,
2023, p. 31)
Isso de ser
contagiado é porque se via envolto em uma atmosfera sócio juvenil nociva. Na
linguagem popular, diz-se “escapou ser bandido de Luanda”. Por isso o mandaram
de volta a Calulo. Aqui, questiono: - os kotas da família não sabiam que em
Calulo, também, havia rapazes da má vida? aos quais, provavelmente, o autor
até se tenha referido como “jovens da kangonya” (KANYANGA, 2023, p. 44). Esse termo, assim
como o autor o usa, parece um resquício do olhar pejorativo da sanzala aos
jovens, que fazem uso da canabis, estigmatizados como “liambeiros”, “olhos
vermelhos”, “desordeiros” e “kinangambala”, quer dizer “aquele que passa o dia
na sanzala, vadio”.
Embora, se
diga, também, que esses epítetos não abranjam a todos os consumidores da erva,
pois, há muitas evidências que contrariam esse juízo, muitos deles são bons
estudiosos, trabalhadores, visionários e empreendedores. Talvez para eles a
amplitude da “má vida” dos rapazes de Luanda fosse maior em relação a do
interior ou do “mato” como muitos chamam os oriundos do interior. Provavelmente
em colação ao poema de Agostinho Neto “gente do mato”.
Ou essa
decisão dos kotas do “Bureau Decisor Familiar” era um “pretexto” para se
livrarem do rapaz, como quem diz: - vai junto de tua mãe para te aturar. Seja
como for, ele voltou a Calulo e pode vivenciar mais “kitotas” e suas agruras
cujo testemunho apresenta na sua obra.
Olhando para o
construto da narrativa da qual discorro, vale dizer que reunir e ordenar
memórias, dar-lhes sentido, através de um percurso, sequencial ou não, de
acontecimentos, é um assunto que não está ao alcance de todos, porque requer um
labor que exige, não só capacidade escrita, mas também o colocar em ordem as
ideias do caos que o tempo cria. Pois, como disse Mills “a maioria parte das
pessoas não vai atrás das coisas que estão fora de seu alcance, mas o
intelectual, o artista e o cientista fazem exatamente isso. Fazê-lo é um traço
normal das suas vidas de trabalho” (MILLS, 2009, p. 91). É o que Soberano Kanyanga
procurou fazer no seu ofício de escritor em Kitotas: Recuos Avanços, trazer
à luz vivências, acontecimentos que servirão ao leitor como referência para
análise e compreensão dos recortes factuais narrados.
As kitotas são
questões que tocam a todos os angolanos. Todos, directa ou indirectamente,
sentimos o seu impacto negativo. Entretanto, embora, tenham um pendor sensível,
por conta do seu antro de destruição deixado por todo o País e ter afectado as
famílias, a vida das pessoas como bem mais precioso, como já sublinhei, o
escritor ganha coragem e fala sobre elas, apresenta o seu ângulo de observação
como alguém que, também, viveu as agruras e vicissitudes dessa tragédia, a
guerra e narra a história.
A inquietação
em relação às motivações que levam alguém a contar uma história, assim como os
seus efeitos, foi também levantada por vários pensadores, entre os quais Jeanne
Marie Gagnebin, na sua obra História e Narração em Walter Benjamin, que
partindo do olhar que lança ao que chamou de preocupação intensa de Walter
Benjamin sobre literatura
e história, questiona: “o que é contar uma história? O que é contar a história?
(o que isso significa?) serve isso para alguma coisa e, se for o caso, para
quê? Por que essa necessidade, mas também, tantas vezes, essa incapacidade de
contar?” (GAGNEBIN, 2007, p. 2)
Com base em Kitotas:
recuos e avanços, a minha percepção é de que Soberano Kanyanga, enquanto
estudioso de história, vale lembrar aqui que é licenciado em ensino de
História, é jornalista e cidadão que se coloca a par das questões sociais e
políticas da sua sociedade, responde por meio de seu texto às questões
levantadas por Gagnebin. E apresenta uma proposta, ou seja, um recorte histórico,
como resposta a tais questões, pois “hoje ainda, a literatura e história
enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstruir um passado
que nos escapa, seja para “resguardar alguma coisa da morte” dentro da nossa
frágil existência humana.” (GAGNEBIN, 2007, p. 3)
Quando as testemunhas dos eventos históricos
não contam sobre os mesmos, desenha-se um vazio cujo preenchimento pode ser
muito trabalhoso. Por isso, parece sintomático em algumas sociedades, e é o
caso de Angola, em que os mais jovens esperam, se não mesmos pedem que os
mais-velhos que testemunharam os acontecimentos passados os narrem para se
evitar o “esquecimento que seria não só uma falha, um “branco de memória”. (GAGNEBIN, 2007, p. 3)
Toda
experiência traumática nos coloca sempre entre o real e o irreal. Quem não a
viveu poderá ver nela algo inimaginável, mas quem a viveu e sentiu sabe que é
real e por isso, dispõe-se para contá-la. Embora seja uma experiência
diferente, vivida também em contexto diferente, da apresentada por Kanyanga,
mas convém partilhar o que Robert Antelme, em 1947, escreveu num relato sobre a
sua experiência vivida nos campos de concentração nazistas:
Há dois anos,
durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, estávamos todos, eu
creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos.
Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloquente por ela
mesma. Mas nós justamente voltávamos, nós trazíamos conosco nossa memória,
nossa experiência totalmente viva e nós sentíamos um desejo frenético de a
contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível
preencher a distância que nós descobrimos entre a linguagem que dispúnhamos e
essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber nos
nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como nós havíamos
chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal
começávamos a contar e sufocávamos. Aquilo que tínhamos a dizer começava a
parecer inimaginável. (SELIGMAN-SILVA, 2003, p. 46)
Soberano Kanyanga não esteve num campo de concentração,
mas viveu as agruras da guerra cujas marcas carrega na memória. Por isso,
resolveu, apesar das limitações da linguagem em apresentar o “real” na sua
plenitude, pois como escreveu Seligman-Silva “a cisão entre a linguagem e o
evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o “real”) com o verbal”. (SELIGMAN-SILVA,
2003, p. 46)
Entretanto, o menino do Limbe, entre o trauma, o real e a
memória, (trauma na perspectiva de Freud, como aquilo que que não pode
ser totalmente assimilado enquanto ocorre; o real como o que está fora
do simbólico, na perspectiva lacaniana e memória individual, enquanto
testemunho), percorreu pelo viés do testemunho cujo conceito desloca “o real”
para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo excepcional e que
exige um relato. Esse relato não é só jornalístico, reportagem, mas marcado
também pelo elemento singular do “real” (SELIGMAN-SILVA, 2003, pp. 49-53). Numa posição auto
diegética, o autor relata recortes de experiência vivenciada no contexto da
guerra em Angola e da construção da paz.
A autobiografia em Kanyanga também se afigura como espaço
para o exercício da crítica e reflexão. Atente-se para o trecho seguinte:
Movido pelo
extinto de sobrevivência e vontade de voltar a estudar, fugir de homens da mata
que matavam e esconder-se na mata era nada! Em todo o país, a funguta ou kitota
era intensa. Dizíamos que o “inimigo quer nos acabar”. Afinal, queriam apenas
mostrar que estavam presentes e conseguir ter voz à mesa de Bicesse, de onde
nada saía para o povo fustigado. (KANYANGA, 2023, p. 37)
Na última fala
desse trecho, "Afinal, queriam apenas mostrar que estavam presentes e
conseguir ter voz à mesa de Bicesse”, o narrador faz referência à correlação de
forças, no chamado “teatro das operações”, entre os oponentes, dando ênfase que
os “homens da mata” queriam tirar vantagem dessa correlação na mesa das
negociações da qual “nada saía para o povo fustigado”.
Em alguns
troços da narrativa, Kanyanga parece trazer um discurso com brechas por
preencher, será omissão, dissimulação ou lapso de memória? Por exemplo, ao
aludir sobre a sua fuga final para Luanda, diz: “Quem tivesse família em Luanda
devia já preparar macroeira para viajar e ir “se matricular na Nguimbi [...] Quem não tivesse parentes em uma
cidade mais segura arriscava-se a ir à tropa (LCB) ou raptado pelos kwachas.” (KANYANGA,
2023, p. 38)
Portanto,
assim como coloca a forma verbal “arriscava-se” sugere uma decisão pessoal (sei
do perigo, arrisco-me, mas vou...), entretanto o contexto em que o jovem, com
idade para o serviço militar obrigatório, vivia, colocava-o entre a “espada e a
parede”, pois se não se apresentasse à LCB,
era rusgado pelas forças governamentais, mas em caso de ataque, ou uma outra
circunstância, era “raptado pelos kwachas”.
Entre o
perigo e a graciosa inocência
O clima que
pairava no ar era tenso, não sei, e isso o autor parece não ter dito. Talvez,
não quisesse mexer na colmeia, deve ter tido sua razão, se naquele ambiente
tenso de suspense, não sabendo a que horas o tó tó tó bum bum havia de começar,
se os mais velhos no quarto ainda faziam amor e como faziam? Se quarto já não
era quarto, mas minúsculo acampamento dos ‘a recua’. Pois, “filhos, sobrinhos,
sogros, etc. galinhas, cabritos no mesmo espaço.” (KANYANGA, 2023, p. 13)
“Pensava-se
que os homens podiam chegar à madrugada” (idem, ibidem), O choro da criança na
mata: o som da pessoa: o choro, a
voz, o murmúrio, o fogo, as marcas no capim vergado, os rastos, são vários
entre os sinais exteriores que sinalizavam a presença humana numa certa área.
Então, o choro de criança era uma denúncia autêntica, por isso, a preocupação
dos mais velhos que face à mãe da criança de 2 anos e muito chorona, na mata
onde dormiam em condições dramáticas: “Dormir na mata, apenas um pano estendido
no solo húmido ou rígido, não dá a comodidade de uma esteira”. Então, para se
acautelarem do perigo, “os mais velhos, procurando distância do perigo, diziam
à minha mãe: - O mon’u mubane lyele. Otujibisa! (Põe essa criança a mamar, vai
fazer matar-nos!)”. (KANYANGA, 2023, p. 13)
No contexto da
guerra, as pessoas viviam na incerteza em relação ao momento seguinte. Ninguém
sabia o que poderia acontecer a qualquer hora do dia ou da noite, mas a grande
preocupação era em relação à noite e a vespertina.
Ao se referir
ao ataque a Munenga, o autor relata um ambiente sinistro que indiciava que algo
mau estava prestes a acontecer:
No dia do
ataque da Unita à Munenga, Fevereiro de 1984, parecia que até os cães se tinham
aposentado de ladrar ou estava tudo muito calmo e eu não tinha reconhecido o
suficiente aquele vilarejo. Na madrugada, os kwachas gostavam da alvorada,
atacaram. (KANYANGA, 2023, p. 21)
Para os
leitores da obra de Jofre Rocha, em particular do livro Estórias do Musseque,
verão que esse trecho de Kanyanga dialoga, parcialmente, com o conto “Os
caminhos da liberdade” no qual está escrito: “Os bichos nas matas não estavam
mais ficar sossegados, parece estavam a adivinhar que ia passar coisa de meter
medo” (Rocha, 1980, p. 35).
Ambos os textos se situam em tempos e
contextos diferentes. O primeiro, na era pós-independência, aludindo a guerra
pós-independência e o segundo na era colonial, retratando a luta de libertação
nacional, entretanto se interceptam através da imagética do comportamento
“premonitório” dos animais domésticos. No primeiro caso “parecia que até os cães se tinham aposentado de ladrar ou estava
tudo muito calmo”, indicia que até os cães tinham medo, era o prenúncio de que algo mau
estava prestes a acontecer. É motivo para questionar: Afinal, até os animais também sentem medo da
guerra?
No segundo
caso, “Os bichos nas matas não estavam mais ficar sossegados, parece estavam a
adivinhar que ia passar coisa de meter medo”, verifica-se o desassossego dos
animais contrastando com a acalmia apresentada pelos primeiros. Para os
caçadores quando o cão manifesta desassossego é porque se avizinha caçada. Mas
na narrativa jofreana, esse desassossego era prenúncio de algo mau.
Ainda sobre os
animais, muitas vezes esses foram confundidos com crianças. A guerra é tão
monstruosa que provoca um estado de espírito indescritível de, em alguns casos,
uma mãe chegar a confundir a cria da cabra com o seu bebé. Se mito ou não, essa
questão anda nas narrativas do povo de Calulo e até musicalizada.
Pois, se diz
que a primeira vez que os moradores sentiram o escárnio da “kitota” foi na
madrugada do dia 05 de setembro de 1983. Nesse dia, surpreendida pelos
tiroteios que vinham de todos os lados, certa mãe, ao invés de pôr o bebé às
costas, levou a cria da cabra. Só depois de alguns quilômetros é que deu conta
que tinha deixado o bebé no leito, assim como musicalizou, a seu jeito ‘kimbundualizado,
Brandão Hamalata:
Mu dia cinco é
zé ngana,
ó povo ioso ya
lenge ngana zé
a ka mukwa a lengela
ku yangu
a ka mukwa a
lengela ku mabyá
nga xisa mona
ngambata ó hombo
nga xisa mona
zé.
Falar da
guerra é doloroso, principalmente, para quem a viu, viveu as suas agruras,
presenciou o drama que açoita a vida e estilhaça a esperança como vidro
arremessado à parede. A guerra com o seu rastro de destruição deixou sinais
cravados na alma dos homens feridos, das mulheres viúvas e das crianças órfãs.
Talvez, por isso, muitas a vejam como página para esquecer e cujas memórias
devem ser entregues ao labirinto.
Mas Kanyanga
ganhou coragem e partilhou sua experiência, em sinal de que, quando se ler seu
texto, lembrar-nos-emos, todos nós angolanos, que a guerra jamais na nossa
Terra. Então, deixemos que os historiadores falem sobre ela, os músicos cantem
sobre ela, os poetas poetizem versos, mas para que? Para nos redimirmos dos
nossos erros do passado e lavarmos os pés uns dos outros como pregou o Nazareno
na sua lição sobre humildade. (cf. Jo 13:14)
Ao se referir à sua aldeia Limbe, o autor faz
menção de uma figura de quem diz ser patrono dessa aldeia, Xika Yangu, quer
dizer empurra capim. Coincidentemente, foi apelido usado nos finais dos anos 80
a 90 por um dos soldados destemido da LCB), num período que teve como
comandantes nomes como José Manuel da Costa (Dragão Imortal), Kungula Lusoki,
Mayka, Kekangó, Ndongala, entre outros.
Experiência
formativa da Escola Técnica Preparatória Kwame Nkrumah
A época em que
Kanyanga começa a vivenciar os primeiros episódios, que constituem o seu relato
biográfico, situa-se depois de 8 anos da Independência de Angola e 19 anos
antes dos Acordos de Paz do Luena. Como já disse, o seu relato está prenhe de
factos no quadro do conflito armado que assolou Angola.
O autor, no
relato do trecho abaixo, não faz menção da Escola Técnica Preparatória Kwame
Nkrumah de Calulo nos moldes formais como “entrei para o Escola Kwame Nkrumah
em tempo X e terminei em Y”. Uma das menções que faz dela, e que retive, é
através de um aluno que, numa dada situação de guerra, evidenciou a sua
competência de leitura em francês:
Eis que o
kwacha-chefe sacou da sua pasta uns papéis e mandou o meu mano Sabalu lê-los.
Ele que já frequentava o III nível, na Kwame Nkrumah, em Kalulu, leu-os como
esperado ou terá até ultrapassado a expectativa do kwacha-chefe. Estavam
escritos em língua francesa. Espantado, o kwacha-chefe teve de simpatizar-se
com ele. - Já não vais connosco. Ficas aqui a responder pela jura (algo que não
sabíamos o que era). Foi assim que se salvou do rapto. (KANYANGA, 2023, p. 22)
Como se pode
constatar, era um aluno que frequentava o III nível e com proficiência em
francês. Essa é uma das evidências da excelência formativa da Kwame Nkrumah em
Calulo. Portanto, sobre essa escola fica registada nessa narrativa uma imagem
centrada na performance em língua estrangeira de um de seus alunos.
Ngana
Mbundu lembrança de uma figura do futebol calulense
Para além da
educação, outros aspectos socioculturais, de Calulo na época, transpiram nos
poros da narrativa não de forma directa, mas pela alusão de nomes ligados à
figuras que emprestaram a sua contribuição em algumas dessas áreas, é o caso do
cidadão alemão Walter Kruk, mais conhecido por
“Ngana Mbundu”,
avô de Zé do Ngana Mbundu, o guarda redes que brilhou no Futebol Club do Cambuco,
equipa do Libolo, nos anos 80, que disputava
a titularidade com outras estrelas como: “Vai à Lua” e “Kinenguenengue”. Nessa altura,
o provincial do Cuanza-Sul era disputado por equipas como: Ara da Gabela, Dínamos
do Sumbe, Andorinhas do Sumbe, Naval do Porto-Amboim e equipas do Waco Kungo,
Kibala, Seles e Conda.
Por esses
laivos históricos e outros, a leitura dessa narrativa oferece ao leitor atento uma
pincelada da historiografia de Calulo, um caudal de possibilidades de reviver
nomes de lugares, figuras, factos.
Entretanto, a
par do futebol, outro segmento sociocultural que floresceu em Calulo nos anos
80 foi o Carnaval. Pois, passavam poucos anos desde que o presidente Agostinho
Neto havia pronunciado, num dos discursos, o retorno ao Carnaval, propriamente,
angolano: “não devíamos dançar o Carnaval tuga, mas o Carnaval angolano”.
Portanto, em
Calulo, na senda do Carnaval, emergiu uma figura muito carismática. Um homem,
mestiço, franzino, de estatura baixa que era mais conhecido por “Garrie”. Ele
comandava o grupo carnavalesco afeto ao bairro Casequel. Durante a folia,
dificilmente, os seus concorrentes: grupos afectos à Mbanza de Calulo, a
Cacula, ao Musafo, entre outros lhe retiravam o ceptro. “Garrie”, com o seu
carisma, e a contextualização das suas canções, empurrava o seu grupo
carnavalesco à vitória.
Os temas, mais
explorados pelo grupo de “Garrie” e os demais, gravitavam entre as questões
sociais, económicas, políticas e culturais conforme o contexto. Assim, por
exemplo, do grupo do Casequel se reconhecem temas como “Tia Dora” cuja síntese
é: A tia Dora, tia Dora, é minha tia, aquela moça da tia Dora é minha mulher.
Portanto é um tema de pendor lírico; nessa perspectiva há ainda o “a moça comeu
dinheiro alheio”: a moça comeu dinheiro alheio do Garrie e não quer ir na
casa do Garrie essa moça; entre os vários temas de pendor político,
destacam-se: “LCB”: LCB do Libolo lutou deu sucesso no morro do Kisongo ouvi
dizer que a Unita já morreu, chefe Zé segura na viatura para recolher os
soldados que tombaram. A comuna do Kisongo, que o autor chamou de
‘esconderijo do inimigo’: “[...]
enquanto os mais velhos iam enfrentar o inimigo escondido no Kisongo” (KANYANGA,
2023, p. 33), assim como o Sector Luaty
e Lususo eram as áreas mais afetadas pela guerra. Considerando o panorama linguístico
de Calulo, alguns temas de Carnaval eram cantados em língua kimbundu.
Guia de marcha como
autorização para circular pelo território nacional
É sabido que a
guerra impôs condicionalismos à vida das pessoas, entre eles, a restrição de
circular pelo território nacional para não dizer de um município para outro.
Para se deslocar, o cidadão tinha de solicitar às autoridades administrativas
do seu município uma “guia de marcha”, documento que autorizava o seu portador
a viajar para o destino indicado e com prazo de tempo de permanência.
Para quem
quisesse viajar, para além do esforço para conseguir o meio de transporte, nem
sempre havia carros disponíveis. Naquele contexto, viajar além de oneroso para
o viajante, era um risco quer para esse quer para o motorista, por causa dos
ataques e das minas. Ainda assim, conseguir a “guia de marcha” era uma vitória.
Porque só com ela, o cidadão estava autorizado a empreender a viagem. Vejamos
como Kanyanga documentou essa questão:
Em 1983
estudava a terceira classe quando a guerra impiedosa imposta pela UNITA nos fez
recuar do Lubolu (Comuna da Munenga) a Luanda. Naquele ano, tivemos de nos
deslocar a Kalulu em busca de Guia de Marcha. Pois, ninguém se fazia à estrada
de uma localidade para outra sem que fosse competentemente autorizado a viajar
pelas autoridades locais. Não transporia nenhum dos vários controles montados
ao longo da via e, pior ainda, para quem como nós do Lubolu que teríamos de
transpor o famigerado posto de controlo do Kyamafulu (bicho mau). (KANYANGA,
2023, p. 29)
Naquele
contexto, a “guia de marcha” era, também, um instrumento de controle dos jovens
em idade de cumprimento do serviço militar obrigatório. Jovens com idade de ir
na “kwemba” ou vida militar, não podiam viajar sem que apresentassem
documentação de cumprimento do serviço militar ou isenção, a rusga, ou canga,
estava sempre à espreita.
No clima de paz e o ofício
de jornalista
Paz para
Angola! Esta é a expressão que pairou nos corações de muitos angolanos após a
assinatura dos Acordos de Paz do Luena aos 4 de abril de 2002, o autor narra a
sua experiência de como viveu esse período:
Voando para a
cidade do Lwena, levei comigo uma carta de recomendação do Director de
Informação, José Rodrigues, ao general Geraldo Sachipengo Nunda, Chefe de
Estado-Maior Adjunto das FAA, para que me fosse dado “apoio informativo”,
enquanto fonte. As conferências de imprensa aconteciam na sede do Governo
Provincial, porém algumas “negociações” entre as partes aconteciam no Estado Maior
Avançado das FAA, onde poucos jornalistas tinham acesso. (KANYANGA, 2023, p. 57)
Como
jornalista, entrevistou generais da UNITA, colocando-se frente a frente com
aqueles que outrora chamava de “inimigos do povo” (KANYANGA, 2023, p. 30). Nessa nova
atmosfera, celebrava-se pelo país a força da paz que a todos reconcilia e une. Nesse
contexto, o jornalista joga o seu papel de informar sobre o momento que se
vivia no País e particularmente no Luena: “Foi a minha terceira estada, por uma
semana, na capital do Moxico, aproveitada para outras reportagens sobre a
situação humanitária que continuava preocupante”. (KANYANGA, 2023, p. 58)
Concluo que
Soberano Kanyanga muito bem poderia optar por partilhar essas suas vivências e
experiências através da oralidade, mas procurou perenizar o seu gesto ao fazer
pacto narrativo com o papel, registando por escrito o que viveu, viu e sentiu. Sob
esse viés, seu ato, de autor-narrador que, conta suas peripécias de guerra e
venturas da paz, reúne através do escrito leitores que o ‘ouvirão’ dentro e
fora das fronteiras de Angola, lembra-me o escritor Elias Canetti que, no seu
texto “Narradores e escreventes”, no livro Vozes de Marrakech, escreveu:
Eu também
posso reunir pessoas em torno de mim, às quais narro e que também me escutam.
Mas em vez de andar de lugar em lugar, sem nunca saber quem encontrarei, que
ouvidos me ouvirão, em vez de viver da pura confiança na minha narrativa,
compactuei com o papel.” (CANETTI,
1987, p. 95)
Kitotas, Recuos e Avanços, meu entender, pode servir de material de pesquisa
para os historiadores, sociólogos, políticos, mas sobretudo para os estudantes
de Letras que podem explorar temas como: A autobiografia como instrumento
crítico-reflexivo; a autobiografia como exercício de cidadania; a autobiografia
como confissão; a autobiografia como trama da memória: entre a guerra e a paz,
etc. portanto, assim como o autor, também digo: “Que viva a Paz em Angola”. (KANYANGA,
2023, p. 73)
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da Criação Verbal. 2ª ed., tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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Ferreira de Almeida, edição revista e atualizada, 2ª ed. Brasil: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1999.
CANETTI, Elias. Vozes
de Marrakech. Tradução de Marijane Lisboa. Porto Alegra: L&PM, 1987.
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JOFRE, Rocha. Estórias
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Derwent. Hannah Arendt: uma biografia. Tradução de Rui Jungmann. Rio de
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Intelectual e Outros Ensaios. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
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KANYANGA, Soberano. Kitotas, Recuos e
Avanços. s/l. creative.by.arp. 2022.
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel.
O Ensaio como Tese: estética e narrativa na composição do texto científico.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Textos
Autobiográficos e Outros Escritos. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São
Paulo: Editora UNESP, 2009.