sábado, 2 de novembro de 2024

A IMPORTÂNCIA DO HOMEM NAS VIDAS DE UMA MULHER

Domingo cinzento de um mês chuvoso. Tudo parecia andar preguiçoso: o cantar madrugador dos galos, o uivar matinal das lobas ciosas, o acordar das gentes cansadas da tonga semanal e o acumular das nuvens do céu ainda acinzentado, sem sol nem fundo azul. Apenas três vozes se ouviam na sanzala.

Registisso, Ignorisso e Esquecisso, contemporâneos desde a mukanda e feitos amigos para a vida, caminham em direcção à area em que fizeram lavras. É lá também onde se produz o Kanyome que afugenta o frio mais intenso de Cyapya Ndalu e transforma os homens reservados e silenciosos em falantes e filósofos momentâneos. Ignorisso é um deles. Sem esse aditivo, contam-se-lhe as palavras proferidas durante uma marcha conversante de hora e meia que abate seis quilómetros.

Naquele dia, a conversa era fiada. Registisso e Esquecisso, os que sempre tomavam a iniciativa, não teinham anunciado nada. Nadinha. Os primeiros duzentos metros, depois do ponto de encontro que foi a Escola do Povo, tinham sido de surdina colectiva. Apenas a respiração barulhenta de Ignorisso os fazia co mpanhia, até que, fazendo recurso à memória, Registisso abriu um dos capítulos de sua vida.

_ O meu pai morreu em 1982, aos 42 anos, de doença natural, cárdio-respiratória. É normal num contexto anormal em que vivíamos no início da década de 80. Talvez pela doença que o apoquentava, desde adolescente, não tinha uma estrutura corporal robusta e atraente. Viam-se-lhe os ossos e vezes há em que se lhe podiam contar as costelas desenhadas no corpo desnudado. Era, todavia, um homem dedicado e esforçado como bom trabalhador agrícola, caçador e pescador nos rios da região em que habitou. Era engenhoso. Criou peixe em um rio que não os possuía. Hábil na caça com cães. O que dele melhor se falava era a sua habilidade em levar carne para casa. Evitava tomar makyakya e não fumava. Já a minha mãe era o inverso na sua mocidade. Fumava em cachimbo (era princesa e atrevida). Como a nossa casota era pequena (redundância propositada), os seus desentendimentos rápidos chegavam aos meus atentos ouvidos. "Feio, pobre, etc." Lembro-me de ouvir estas e outras expressões que ele geria com elegância e muito silêncio. 

Os dois amigos ouviam sem interromper. Algo comovidos. Algo ansiosos em ouvir a próxima nota, até que Esquecisso interrompeu.

_ E nunca os viste a lutar? Teu pai tinha paciência. Eu quando o sangue me ferve não admito abusos...

_ A vias-de-factos, terão chegado apenas uma vez, mas longe de meus olhos. Cheguei a tal conclusão porque ambos estavam arranhados.

_ E que achavas do teu pai, em relação à tia que era mais dada a trafulha? _ Questionou Ignorisso.

_ Aos meus olhos, o meu pai valia pouco perante a minha mãe que se gabava de possuir poder: poderio político, por ser princesa, e poderio económico, por ter parentes em Luanda que sempre a podiam auxiliar financeiramente em caso de alguma necessidade mais premente. Ele, era uma espécie de "cão-de-merda que não tinha onde morrer". Mas, era um bom pai. Carregava-me ao ombro eu para a escola e ele para a tonga. Queria ter um filho professor" que, depois, ensinasse as outras crianças a sair da escuridão. Ele sabia assinar, lia e escrevia as cartas de outros parentes da aldeia. Em contrapartida, a minha mãe, sobretudo depois de viúva, esforçou-se em criar os filhos. Com e sem marido exerceu poder, mas nunca chegou a ser homem. A masculinidade é doação única e divina!

À medida que a prosa de Registisso ganhava profundidade, a cadência do passo aumentava e o destino se encostava mais aos olhos. Nisso de visitar o guarda-memórias,  Esquecisso também visitou as suas e trouxe ao conhecimento dos companheiros uma situação ainda recente.

_ Olhem! Vocês sabem que no mês passado estive na capital onde fomos nos despedir do irmão da minha ndona. Nas poucas vezes em que conversei como amigo com o meu recém-finado cunhado pude saber do sofrimento por que todos passamos em vida. A desvalorização por parte de quem decidimos caminhar juntos, mesmo nos entregando às causas até ao último esforço. O quê que somos aos olhos delas?

_ Somos meros "cão-de-merda", recebidos com reclamações, resmungos e bafos, atirando-nos ao "rosto" os nossos insucessos, mesmo nunca deixando de tentar o melhor. _ Responderam Registisso e Ignorisso que, desta vez, interagia como nunca.

Empolgado, Esquecisso continuou com as indagações.

_ Para que valemos mesmo? Vocês sabem? 

_ Pra nada! _ Respondeu Registisso, complementando o amigo.

_ O que eu assisto é que os filhos já existem e alguns são grandes. A sexualidade abranda. Algumas vezes (quase sempre), na hora do "vamos ver", o indivíduo é recebido com reclamações, quando não são ataques e ou dislates. Que fazer?

_ Nada! _ Respondeu desta vez Ignorisso.

_ Volto à estória sobre os meus pais. _ Atirou Registisso. A minha mãe foi viúva por três vezes. Um individuo que morreu sem deixar história, o meu pai que morreu aos quarenta e dois anos, deixando quatro filhos e o sucedâneo de quem a minha mãe teve um filho. Amo a minha mãe como ninguém. Todavia, me pergunto até hoje:

O que faz os homens morrerem antes das mulheres, vocês sabem? _ Atirou provocante, sem, no entanto, dar tempo a respostas.

_ Nos dias que correm, a minha mãe não pára de elogiar o bom homem que foi o meu pai. Já lá se foram 42 anos. É a imagem que lega aos netos e às minhas irmãs mais novas que tiveram menos convívio com o papá. Fez a sua parte. Engoliu os sapos e sorveu igualmente a água do charco. Morreu herói. Talvez, um dia, sejamos também lembrados assim, como herói que foi vilão! Se calhar, tal como o meu pai, o teu finado cunhado tenha já sido transformado em querido e saudoso herói e nós, quiçá, no post-morten, venhamos a sê-lo também. Que acham?

Ignorisso e Esquecisso que o ladeavam estenderam os braços e o envolveram num abraço. Estavam já prestes a chegar ao alambique do Ensinisso, irmão mais novo de Ignorisso que estava a destilar kanyome para o seu alambamento.

_ Olha, mano Registisso, quem deve ouvir novamente a nossa conversa é esse miúdo que quer ter mulher, apontou o irmão mais velho, antes mesmo do kwata-kwata.

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Publicado pelo Jornal de Angola de 27.10.24

terça-feira, 1 de outubro de 2024

AS CHALADICES DO CHICO "PÉ DE MULETA"

Nasceu magro como palito de vassoura e muito mexido, daqueles a quem a ciência actual chama hiper-activo. A vida dele foi, entretanto, marcada por um incidente que lhe "comeu" metade do pé, sendo a extremidade do pé esquerdo uma ponta que deixa uma marca parecida à de uma muleta no chão arenoso ou húmido em tempo chuvoso.
A aldeia toda apelidou-o de Lufeñeno (palito). Diz-se que a progenitora de Lufeñeno (palito) era consumidora dedicada e a tempo inteiro de destilados, desde tenra mocidade.
Numa noite de kixobo, Kamone, já endiabrada com doses elevadíssimas de makyakya a correr-lhe no sangue, meteu-se à dança de kilata. Quase à hora de os galos iniciarem o canto, a poeira e o álcool juntaram-se ao sono e cansaço. Lufeñeno ainda não balbuciava palavras. Talvez, também embriagado pelos gases alcoolizados soltos pela mãe, nem tempo para choro teve. Ou melhor, a aldeia não foi a tempo de o ouvir a clamar por socorro.
Kamone dormitava desavisada junto à fogueira. Era a guardiã, apesar da bebedice, da fogueira comunitária, onde todas as manhãs se alimentavam os fogos de todas as casas. Num gesto inexplicado, um dos pés de Lufeñeno foi parar ao lume. O resto, só vendo o resultado que faz os jovens mais atrevidos e lyambados deste tempo tratarem o senhor, quase cinquentão, por kota Chico Pé de Muleta. O nome dele de Lufeñeno quase que não se ouve mais na aldeia de Kimbilima.
Bem, estávamos num óbito. Lufeñeno e eu temos irmãos comuns. Eu pelo lado paterno e ele pelo materno. É assim quando as relações se desfazem e cada ex-integrante forma outro par. Lá em Kimbilima e no Kuteka tratamo-nos como manos.
Os cientistas dizem que a formação da consciência do homem demanda duas heranças: a biológica e a social. As percentagens que me passaram do in ao id estão nos livros e no telefone com internet. Voltemos ao Lufuñeno que herdou a copofonia da falecida mãe. A propósito, a kasule do meu pai, vendo Lufeñeno, com aquela sua perna de pé cortado a beber como se o amanhã não existisse mais, teve de soltar um desabafo malicioso.
_ O papá mesmo não tinha sorte de arranjar mulher!
Pena é que o sô António Chico pereceu em 1982 e não temos como tirar-lhe explicações.
_ Coitado. E ele não bebia nem fumava. _ Respondeu Kasola a irmã mais velha da Kethanga, a primeira a sentir pena do pai.
E o Lufeñeno começou as suas chaladices convocando os sobrinhos:
_ António, vem prá cá. Domingos, ó sô Lumingu, vem também. O Manuel num fica atrás vêm juntos.
_ É o que então, ti Chico? _ Interrogaram-se algo revoltados, arrastando outras reclamações enquanto se aproximavam a passo de lesma.
_ Esse ti Chico também quando fica xonê é chatinho. _ Atirou o Domingos.
Mas, Lufeñeno tinha uma agenda para aquela noite. Temendo usar da agressão que, às vezes, quando demasiadamente encopado, lhe era característica, os adolescentes ficaram a metro e meio, evitando abeirar-se do tio que começou as perguntas:
_ Aqui, onde estamos, é aonde? Me respondem ainda se vocês são mesmo espertos.
_ É na vila, ti Chico. _ Respondeu o Manuel.
_ E ali, onde estão aquelas luzes?
_ É também na vila, ti Chico. _ Respondeu o António, mantendo-se calado o Domingos.
_ Vocês são burros. Vê lá se ainda não conhecem a cidade. Essas casas de adobes, todas embrulhadas, sem ruas nem quintais, é que estão a dizer que é vila de Kibala? Vocês, quando voltarem à aldeia, não vale apenas se gabarem que foram à sede do município. Na Kibala de verdade ainda não chegaram. Estão a ver aquelas luzes, nê? É ali. Entre Kakungulu e Kibala-Sede ainda tem uma baixa e um rio pelo meio. Ouviram? _ Atirou Chico Pé de Muleta, quase a gritar, fazendo-se ouvir por curiosos e transeuntes.
Os moços lançaram demoradamente os olhos à elevação que libertava luzes e terão posto as cabeças a pensar no que Chico Lufeñeno lhes dissera.
_ Está bem, ti Chico. Já podemos ir?

_ Vão, mas escrevem o que vos disse, seus analfabetos. Vila é lá. Aqui é Kakungulu. Se querem se gabar que estiveram na vila é melhor amanhã pegarem mota e chegarem lá. Estão aqui os vossos tios que vieram da capital. Pedem já. Mota é só cem!

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Publicado pelo Jornal de Angola a 29 de Setembro de 2024.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O ÚLTIMO POLÍCIA

A patrulha, transportada em turismo branco, estava parada na rotunda do Cemitério do Alto das Cruzes e abordava, aleatoriamente, viaturas que vinham do Largo do Ambiente e do Miramar em direcção ao Kinaxixe.

Saído cansado do trabalho, às dezanove e vinte de uma semana prenhe de pilhas de papéis para despachar, reuniões algo intermináveis e imprevistos ao longo da jornada, apenas a casa, a filha derradeira e o netinho me vinham à cabeça.
A habitual saudação "boa noite papy" e "boa noite avô, me trouxeste o quê", à chegada, têm sido o bálsamo para aliviar toda a tortura do dia-a-dia de um meio-operário e meio-intelectual de gabinete.
Usando um carro de idade avançada, sem mais força suficiente para transpor a acelerador leve a rampa do Intercontinental e fazer a curva à direita, foi, exactamente, ainda a terminar de "escrever" o ângulo recto que o polícia se colocou à frente, fazendo-me sinal para parar e estacionar.
_ É o quê então? Fiz o quê ou o quê que devia fazer e não fiz? _ Caiu-me um céu de interrogações ditas em surdina.
À diante de mim estavam já duas outras viaturas abordadas, sendo que uma delas tinha a porta aberta, vendo-se a perna do condutor pousada sobre o pavimento, enquanto um elemento de farda azul, caki, lia os documentos ã frente da viatura que tinha os faróis à meia luz.
Meio aborrecido, todavia obediente, estacionei entre o carro branco da polícia e o que fora abordado antes de mim.
Como sempre, apressei-me em baixar o vidro e procurei pelo interruptor da lâmpada que acendi às pressas, antes que o homem, alto, 1,76 ou mais, pele escura e massa muscular a apontar-lhe uns 85 ou 90 quilogramas, me dirigisse aquelas palavras de "dá cá isso, mostra lá aquilo, por que não tem aquil'outro?".
O homem abeirou-se de mim, sem pressa, mas também não se fazendo demorar. Controlei-lhe os passos, os gestos e até as ideias e, antes mesmo de me dirigir a saudação, levei a mão ao casaco e retirei a carteira da algibeira que ficou à mostra, esperando que me pedisse os documentos.
_ Boa noite meu director!
_ Boa noite, senhor agente! _ Respondi-lhe meio desconfiado.
Antes, levei os olhos aos ombros dele a tentar descobrir o grau da patente que não tinha. Tratei-o apenas por "senhor agente" o que não é dislate.
_ Caro condutor, desculpe a abordagem. Vejo que está com a carteira na mão. Não precisarei de lhe pedir os documentos. Estamos a fazer uma abordagem preventiva e pedagógica. Sabe que há muita delinquência e não sabemos quem anda nos carros, se são pessoas em segurança, ou raptadas. Normalmente, fazemos revistas dos carros.
Enquanto se explicava, eu transformava a "raiva" do impacto inicial em cordialidade. Afinal, fora uma abordagem inesperada e primeira naquela hora e local de passagem diária, pelo menos de segunda a sexta-feira de todos os meses que já somavam dois anos e tal.
Mal o homem terminou de pronunciar a última palavra do discurso explicativo, baixei os vidros traseiros e aumentei a iluminação interior para que visse que não havia nada mais para além do vácuo e da minha vida, mas ele, diligente e mostrando que é bem-educado, retorquiu.
_ Também não precisarei de revistar a sua viatura. Muitos não gostam, por isso é que lhe estou a explicar. Aliás, para se revistar tem de haver ou mandado ou indícios que nos levem a desconfiar de algo e cumprir com esse procedimento. _ Explicou, deixando-me mais tranquilo e feliz também.
_ Afinal ainda temos bons polícias. O senhor é muito polido e cortês. Muito obrigado! Polícias como você podem até parar-me cinco vezes no meu trajecto do trabalho a Viana. Pena é que são poucos! _ Brinquei.
O homem fez uma continência e o imediato sinal de que eu estava liberado.
_ Obrigado, senhor polícia! Você transformou positivamente a minha noite! _ Disse-lhe a sair.
E como não é todos os dias que assim acontece, deixo este testemunho. Fui abordado (11.07.2024), cortês e cordialmente, por um agente da polícia. Afinal, ainda resta "um agente" que age como a sociedade espera que todos se comportem.
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Publicado pelo Jornal de Angola a 8 de Setembro de 2024

domingo, 11 de agosto de 2024

O KAMBWIJI DE 10 KG E OS 250 ANOS DA VELHA ROSÁRIA

A idosa na foto é a minha mana Maluvu-a-Kyoko ou Rosária Albano. Calculadamente, deve ter 80 ou mais uns anitos. Porém, diz que "se eu (narrador) tenho 50, ela não pode ter menos de 250 anos" e justifica que me viu a nascer quando ela já era mãe de uma kalumba.

Chamou-me com urgência, no dia 01 de Agosto, e explicou a razão:
_ Lembrei-me de uma cena ocorrida quando tinhas 5 ou 6 anos.
_ O que se passou, mana?
_ Um dia, saí da Munenga e fui ao Rimbe visitar-vos. Mal cheguei, apareceu o mano António (eu tratava por mano o teu pai, porque o pai dele era também meu tio) a carregar dois kambwiji pequenos e tu carregavas um portentoso kambwiji. Então perguntei: mano António, como é que você, enquanto pai, leva dois animais pequenos de pouco peso e o filho é que carrega o animal mais pesado?
_ Ó mana, isso aconteceu?! E o que foi que ele te respondeu?
_ Não foi ele que respondeu. A criança que eu estava a acudir é que respondeu altiva e resmungona.
_ Que eu te respondi, mana?
_ Disseste, num linguajar Kibala bem afinado, "wathithi kwamunzembe, Ndonga-a- Ngulu wandongile!"¹
_ Oh! Foi mesmo, mana?
_ Disseste e põe também essa cena no teu livro. E olha: o livro que me deste, onde eu estou, o teu sobrinho Segunda Januário "Kabengo" levou. No próximo que vais escrever me põe lá de novo.
Levei a mão à cabeça, a pensar, a matutar. Como é que uma velha iletrada valoriza tanto um livro ao ponto de tê-lo todos os dias sobre a cabeceira "junto da Bíblia", segundo me contou?
_ Não tem problema, mana! Olha, na semana passada fui à Kibala e dentre as coisas que escrevi, lembrei-me da frase "wathithi kwamuzembe" e meti na crónica que já saiu no Jornal do Kwanza-Sul e Benguela (Jornal Litoral). Quando eu publicar outro livro, essa parte dos kambwiji vai entrar e vou escrever que foi a mana quem me contou a cena. Quanto ao livro que o Segunda "Kabengo" levou, vamos já resolver.
_ Mas, vais resolver quando, ó Luciano? Eu tinha sempre o meu livro ao lado da Bíblia e quando mandasse alguém ler a Bíblia para mim, também lia o livro, naquela parte que entra o meu nome e a lavra no Kanzangiri.
Fui revistar o carro e, por sorte, havia três livros: um para o Augusto, jovem que foi meu aluno primário e que declarou coisas de me alegrar o coração, e outro para a mana Rosária "Maluvu" Albano que continuou com as estórias. E contou ainda:
_ Olha a nossa mãe Kyoko Ky'Eteta (Mariana) era oleira. Produziu panelas de barro e com estas comprou um cabrito e com o cabrito comprou uma fazenda junto ao rio Mukonga.
_ Ai é?! Não é que a irmã dela Kilombo Ky'Etinu "Maria Canhanga" também fabricava panelas de barro? Mas, no dia em que lhe recordei disso e perguntei "por que é que agora, que a mãe já é idosa e podia retomar a fabricação de panelas e outros artefactos de argila, já não o faz", sabe o que me respondeu?
_ Weli eji ki?²
_ Respondeu que era a pobreza que a impelia a fazer moringues e panelas de barro.
_ Mas, agora a mãe está cega como é que ia triturar a argila, fazer os rolos, formar as panelas, alisar e cozer?
_ Sim, mana Rosária. Eu abordei-a antes de perder a visão. Às vezes ficamos a falar do passado e do presente.
_ Continua a fazer isso, mano. Nós já temos muita idade, mais de 250 anos. Daqui a nada vamos vos deixar e vocês é que vão continuar a contar as coisas. Foi por isso mesmo que te chamei, não havia outro problema, meu irmão. Era somente esse.
Feito o mahezo³, começou a minha vez de trazer à memória alguns tópicos de sua vida.
_ Ó mana, lembro que na sua fazenda, na Mukonga, a mana trepava (com verga) às palmeiras para cortar desdém...
_ Sim. Quando eu era jovem, há homens que não torravam farinha comigo. Eu trepava mesmo como os homens.
_ Mas também se conta que um dia a mana quase caiu...
_ Quem foi que te disse? Você afinal é um pouco mais velho. O que aconteceu é que, ao cortar o cacho, vi uma cobra que estava a olhar para mim. Com medo de que ela fosse cuspideira, perdi força e larguei a verga, caindo. A minha sorte foi o facto de a altura ter sido pequena. Dali em diante nunca mais trepei em palmeiras.
= Genealogia =
Maluvu-a-Kyoko "Rosária" é filha Kyoko Ky'Eteta. Kyoko é filha de Kiteta. Kiteta é filho de Kyole Muryanga.
Eu sou filho de Kilombo Ky'Etinu⁴. Kilombo é filha de Kitinu, irmão de Kiteta, ambos filhos de Kyole Muryanga. Logo, temos bisavó comum, Kyole Muryanga.
= Notas =
1- Não desprezes o homem de baixa estatura. Quem é alto nunca toca aos céus. Ndonga-a-Ngulu (baixinho) venceu-me uma vez.
2- O que foi que te disse?
3- Introdução ao tema da conversa.
4- A antroponímia tradicional é matrilinear, ou seja, o filho (a) recebe o apelido da mãe (Maluvu filha de Kyoko). Apenas nos casos el que o progenitor é notável (rei, soba, ou destacado membro da corte) é que o filho adopta o apelido paterno (KilomboKy'Etinu).
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Texto publicado no Jornal de Angola de 18.08.24

quinta-feira, 25 de julho de 2024

AS KAPULANAS DE MAPUTO

 O "sonho de avião" é antigo. A viagem no Boeing 737-700 da companhia "Bandeiras" é que é recente. O avião apresentava o interior limpo e arrumadinho, embora não lhe faltasse um dos 120 assentos a gemer sempre que o ocupante fizesse algum movimento mais impactante sobre ele.

A viagem era de 4horas, lingando países lusófonos situados em oceanos distintos.
Para quem viaja nos livros e jornais antes de se fazer à terra de destino, a ponte que os pilotos não se coíbem de sobrevoar era prenúncio de chegada enquanto outros perguntavam-se ainda "que pont'éssa" e "que país estamos a sobrevoar"?
_ É Katembe-Maputo ou o inverso. A cidade já foi Lourenço e o país é o das kapulanas. _ A voz perfurante entre tantos outros cochichos ouviu-se saindo do meio do avião. Era do Samora.
_ Ah! Afinal chegámos? E quê isso de kapulanas? É nome de comida?!
_ Não. Comida é xima com Agostinho Neto.
_ Xima com Agostinho Neto? Como é o que nosso guia imortal entra na comida?
_ Guia imortal? Isso é o quê?
_ Guia eterno. Conselheiro de todos os tempos. Estrategista intemporal. Percebes? Mas conta lá como é isso de comida ser xima e Agostinho Neto.
_ Ah! Vocês que vêm da região austral atlântica lusófona não sabem o que ele fez em 1976? - Inquiriu António, intrometendo-se na conversa, enquanto preparava o corpo para abandonar o assento resmungão.
_ Quê que fez o amigo do presidente Machel?
_ Mandou para cá um navio de carapau para selar a amizade entre os dois presidentes e os dois povos.
_ E daí? _ O angolano quase concluía, mas esticou ainda mais a corda da conversa, fazendo com que fosse o moçambicano a dar a machadada final na conversa.
_ Eufóricos, como éramos naqueles anos do triunfo da nossa revolução, passamos a chamar o peixe carapau "presidente amigo", só quê...
_ Neto morreu...
_ Não. Ainda estava vivo. Outros países como a Tanzânia também afinaram as relações com Moçambique e "presidente amigo" ficava vazio ou impreciso.
_ Então desistiram do peixe e passaram a comer xima acompanhado de matapa...
_ Matapa também. Sempre houve. É prato típico nacional de Moçambique, assim como nhima de cabrito, mas o peixe carapau ganhou o nome Agostinho Neto e se foi popularizando. Já lá vão mais de 3 gerações.
_ Kapulana também é comida típica daqui? _ Voltou a questionar o angolano, já mais aliviado e satisfeito com a atribuição do nome do seu primeiro presidente à espécie pelágica que habita as águas temperadas.
_ Kapulana é um tecido tradicional muito popular em Moçambique. É caracterizado por suas cores vibrantes e padrões distintos e é usada para fazer roupas, acessórios e peças de decoração. A kapulana, por cá, tem uma grande importância cultural e social, sendo utilizada em cerimónias como o lobolo, oferecida como presente.
_ Lobolo ou Libolo? Para nós, Angola, Libolo é um município que tem uma equipa de Futebol que actua no campeonato principal.
_ Aqui é cerimónia de entrega de dotes e pedido de noivado de uma rapariga. Vocês também devem ter, calculo.
_ Sim. É alembamento. Na verdade, no Kimbundu vernáculo diz-se kulemba. Os portugas é que passaram a dizer alembamento e assim ficou aportuguesado.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

UM MIRAGE* SOBRE A GRUTA

O grupo de reconhecimento profundo tinha progredido no terreno durante o dia todo, entre atalhos, selva densa, asfalto e picadas. Tudo devia ser feito em segurança e máxima discrição para não serem vistos nem pela composição de três aparelhos circulantes, nem por eventuais sinais deixados na natureza como poeira e fumo. 

A chuva, fugida de Luanda e instalada permanentemente no Kwandu nyi Kuvangu,  revezava-se com curtos instantes de sol intenso que magoava as lentes oculares, tornando lenta a marcha que foi completada após penosas 14 horas. Paragem para abastecimento Logístico houve apenas uma durando não mais do que hora e pico.

Cansados, mas confortados pelo sucesso da parcela da missão, o grupo liderado pelo Comandante Jesus Cortex, teve outros desafios no terreno. Era preciso separar os integrantes em dois subgrupos e encontrar abrigos seguros para pernoitar que não denunciassem a presença deles nas margens do Rio Kwebe.

Conhecedor da área o Brigadeiro Cortex e o seu Estado-Maior, Major Buta, isolaram-se dos demais e estudaram minuciosamente o mapa topográfico da região. Analisaram, perante os olhos e ouvidos atentos do especialista em comunicação, as possíveis vulnerabilidades para intrusões e saídas inimigas, assim como as zonas de maior opacidade à penetração terrestre e observação aérea. 

Havia uma kamunda com rochedos e uma gruta que podia servir de abrigo durante a noite.  Um único desfiladeiro aberto por animais e caçadores conduzia ao local que atenderia os três dormitórios. Minas defensivas foram plantadas a 150, 100 e 50 metros no desfiladeiro para prevenir eventual penetração inimiga.

Encontrado o local, desfizeram as mochilas para retirar os mantimentos. Apenas parte delas. Era preciso atender o estómago que reclamava ração fria. Não foguearam.

_ Fazer fogo é dizer estamos aqui. _ Preveniu o Estado-Maior.

O Capitão Matoumorro, "Radista" como é conhecido entre os pares, encostado em um penhasco, conferia as mensagens recebidas do Comando Central e as repassava aos colegas, depois de devidamente descodificadas e filtradas.

_ Apenas os essenciais para a nossa missão. _ Alertou antes da distribuição. 

A noite até podia ser tranquila. Pelo menos as "camas" eram, apesar daquele cheiro de excremento de canta-pedras que tagarelavam intermitentes por perto. Havia somente um senão. Um Mirage sobrevoava a o monte de tempo em tempo, obrigando-os a permanecerem em alerta e prontidão defensiva durante toda a noite. 

Não houve confrontos, não! Porém, também não houve sono até que o Mirage foi abatido às 07h01 da manhã pluviosa. E chovia como nunca!

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*mosquito incómodo em quarto de hotel.

sexta-feira, 1 de março de 2024

TRAVESSURAS ESGOTADAS

 

Editado e publicado no Brasil pela TM Editora (apenas 30 exemplares chegaram ao autor), aparece na bloguesfera como "esgotado" tendo sido comercializado a cerca de USD 10.
Apesar de termos firmado contrato, não nos chegou nenhuma pecúnia. Alegra-nos, entretanto, saber que o livro foi/está a ser lido na outra margem do Atlântico.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

VIAGEM LITERÁRIA AO "MANONGO-NONGO" DE SOBERANO KANYANGA

Caracterizar um escritor com estilo multi-literário, caso nos seja permitido o uso do termo, não é uma tarefa fácil. Quando ainda nos deparamos com a universalidade das suas obras que nos guiam ao além da ciência e transmitem ensinamentos fecundos e visíveis.

Assim tomamos algumas palavras para manifestarmos o valioso contributo literário da obra supracitada. No estilo infanto-juvenil,  procura nas suas linhas pedagógicas, educar a sociedade hodierna, mormente a classe juvenil, à base de estórias criadas e recriadas pelo autor e concebem no final de cada uma delas, um ensinamento moral.
Como podemos conferir e sentir a luzidia mensagem em "A CEGA E O CÃO KELULA", pp.45-47 «entre os amigos ou pessoas que se amam deve haver confiança mútua». Quão pedagógico e profundo, é este discurso que não se escapuli do messiânico!
É ainda transcendental a imaginação do autor, quanto a criação e recriação de estórias que encerram com princípios morais que à luz da visão hodierna, reflectem uma filosofia de valores, concebida para uma sociedade onde se presencia o adeus dos valores morais e cívicos.
E o autor, sendo filho deste país chamado Angola, ensina em "A COMILONA E O CISOMBE", pp.67-70, que: «A gula e a avareza são vícios perigosos que podem levar à morte. Não deixe de dar de comer a quem tem fome».
E por que o autor teria escolhido o tão sugestivo título para o seu livro?
Antes de deixarmos o autor responder a tal questão, gostaríamos de viajar até Belém da Judeia, para lembrarmos o nascimento de Cristo Jesus e a visita dos Reis Magos que culminou com a entrega de presente valiosos da época. Assim também acontece no território nacional, singularmente nas Lundas onde o autor viveu durante muito tempo. É costume, a familiar criar um ambiente festivo junto dos amigos, para saudarem a anunciação do novo membro da comunidade.  Neste ambiente, saboreiam-se os kitutes da terra e nota-se a bonança da variedade de bebidas.
E não está de fora o nosso autor quando nos brinda do seu íntimo, este seu "MANONGO-NONGO", do qual nutrimos em letras de ouro e em páginas cintilantes os fecundos ensinamentos. Como pode responder no preâmbulo que faz da sua fantástica obra: «Escolhi o nome  Manongo-Nongo para este livro por desejar que venha a ser também uma festa para todas as crianças de Angola que devem crescer com sabedoria e inteligência encontrada e transmitida nos livros que lêem e nas experiências transmitidas pelos mais velhos».
Quanta solidariedade e respeito pelo próximo o autor manifesta! Se o Manongo-Nongo é uma festa, então que festejemos também nós e deixemos a alma rejubilar de glória por tê-la.

Beto Baião
Kwango LN, 20/07/2014. 22h00

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS DE MANGODINHO

A noite tinha sido chuvosa. Chuva grande com vento e trovoadas. Parecia que as montanhas mais próximas se iam encontrar e ensardinhar todas aquelas aldeias que se achavam no perímetro de Tumba Grande.

Mangodinho e o Soba Toneco haviam combinado comunicar ao povo as ideias do administrador comunal, camarada Maria, e as deles.
Era seis da manhã e um quarto quando fizeram tocar o sino do costume.
- Ndrim, ndrim, ndrin. Três vezes mais outras três, mais outra sequência tripla.
Os mais velhos foram se aproximando ao local das reuniões, que tinha passado da mulembeira ao pátio da escola onde se projectava um njango comunitário, última ideia de Mangodinho. 

Na verdade, ideias é o que não faltava. As pessoas com poder de as assimilar e materializar mais os recursos para fazer acontecer é que eram escassos.

O miúdo Russo, uma espécie de responsável pela comunicação, estava a ser projectado e cuidada de convocar, boca-a-boca aqueles mais alérgicos àsreuniões da aldeia, normalmente os que mais resmungam e pouco cooperam.

- É assim mesmo. Cada faz bem o que sabe e aprende o que gosta. No tempo certo, recebe o cargo. - São palavras de Toneco que fez esse percurso desde miúdo na aldeia de Kuteka. Mangodinho também está a subir e miúdo Russo está a vir atrás dele.
Mangodinho foi dos primeiros a chegar para receber as pessoas. Depois é que chega o Soba Toneco. O último e que dá início à reunião.
O secretário Mangodinho fez a introdução sobre a chuva, os estragos "que vamos ver na aldeia toda e nas lavras" e o que é preciso fazer para que o mal seja maior.
- Bom dia, meu povo, minha família! A noite não foi de tranquilidade. Já vemos chapas voadas. Capim arrancado por cima das casas e, nas lavras, vamos ver quando sairmos daqui. - Disse Toneco, à guisa de arranque. - Porém, tenho ideias que transmitiu o administrador e quero bos fazer chegar.
Toneco fez pausa para ver se o povo estava ou não a gostar. Passeou os olhos pela multidão e sentiu que podia avançar.
- Pois, então, a ordem é para construirmos latrinas ou sítios para fazer as necessidades maiores. Da maneira que é: pessoa vai na mata com porco a te seguir e depois vem o porco a mexer na comida acham que está bom?
- Não! - Responderam.
- Ainda bem. O Mangodinho, depois, vai explicar ponto por ponto.
Fez outra pausa e, desta vez, afinou também os ouvidos para conferir se havia murmúrios. Às vezes o povo grita que sim, mas rejeita com murmúrios.
- O segundo ponto é sobre o Posto de Saúde que é importante construir. Alguém quer falar? - Hábil, Toneco deu palavra para espremer qualquer contestação e fazer o remate final.
- Ngana Soba, infirmero não tem ainda, vamos já construir? Ou tem outra ideia boa? - Questionou Kajobiri, uma velha de pouca fala.
- Sim mamã. Nesse caso também, o secretário vai esclarecer, mas vamos usar o mecanismo que fizemos para ter escola: construímos já o Posto e casa do enfermeiro. Depois, pedimos o mestre. Também, a aldeia vai escolher duas pessoas, jovem de homem e de mulher para ir no Sá da Bandeira fazer curso de enfermagem. Os interessados contactem já o nosso secretário.
Toneco parou para mandar ar aos pulmões. O povo aproveitou agradecer as palavras com três rajadas fortes de palmas.
- Mas não terminei ainda. Posso continuar?
- Pode. Estamos a gostar, Soba.
- Falta o poço. Posso?
- Pode. - Responderam.
- Poço, é buraco para tirar água. Vamos cavar, aqui mesmo na aldeia, até encontrar água. Vamos construir as paredes com adobe queimado e veremos uma manivela com tubo para fazer tipo chafariz. Assim, a água do rio será só para lavar e tomar banho. Para beber e cozinhar será já aqui. Beber no mesmo lugar com os animais é que está a trazer muitas doenças. Fica ou não fica bom?
- Fica, fica, fica!
Em quarto, lugar, o administrador mandou outros sobas e secretários a virem aqui ver o que estamos a fazer para melhorar a aldeia. Quando vos contactarem, ensinem os outros, mas perguntem também as ideias deles para fazermos o que eles têm de avanço. Pode ser?
- Pode!
- Então, os homens todos ficam com o Mangodinho e as mulheres podem avançar no mata-bicho e na produção.
- Puá, puá, puá. - Choveram salvas de palmas.
O Soba e o secretário ficaram com os homens, jovens e adultos, a acertar os pormenores de cada acção e as responsabilidades e incumbências de cada um.
A construção das latrinas familiares e colectivas, o Posto Médico e a casa para o enfermeiro, o envio de dois estudantes ao Lubango e a construção do poço ficaram confirmados como os desafios da aldeia de Pedra Escrita que se quer inscrever na lista de "Comunidades inovadoras" do Lubolu.

Publicado pelo Jornal Cultura de 7.12.2022

domingo, 31 de dezembro de 2023

PARA 2024

Lubolu&arredores é o mais recente livro de Soberano Kanyanga. Trata-se de um conjunto de crónicas reflexivas, dispostas de modo a oferecerem uma visão sobre Lubolu e zonas adjacentes. Lugares outrora de grande relevância, que já serviram de ponto de resistência, encontram-se hoje reflectidos na obra do autor, que lhes dá uma outra significação. Lubolu&Arredores vem para sugerir e fazer notar novos usos a dar às coisas nossas, uma revalorização aos nossos espaços, uma requalificação, por assim dizer.

Lubolu&Arredores é uma proposta de viagem aos outros cantos de Angola. 

Um livro que propõe o exercício da ousadia para desvendar o país, reformá-lo e dá-lo aos angolanos e aos amantes dessa "mátria".

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

RECENSÃO SOBRE KITOTAS: RECUOS E AVANÇOS

 

 

Saga do amanhã incerto em “Kitotas: recuos e avanços” de Soberano Kanyanga

Por: Carlos Cabombo

 Não pretendo, Tovarich (camarada), conhecer todas as razões, profundas ou superficiais, pelas quais uma variedade de pessoas escreve, mas um motivo, pelo menos para mim, tem a ver com a sensação de pôr mais uma parte do mundo numa forma ordenada enquanto estou efetivamente empenhado a escrever. Escrever é raciocinar; é luta contra o caos e a escuridão. Há um entusiasmo que “toma conta de nós” quando sentimos – não importa agora se é assim ou não – que estamos conquistando mais um pouco desse caos para e pelo entendimento. É claro que se trata também de uma luta contra outras ideias e imagens a que somos contrários, moral, lógica ou factualmente (MILLS, 2009, p. 94).

 

Pretendo fazer análise à obra de Soberano Kanyanga intitulada Kitotas: recuos e avanços. Trata-se de uma narrativa de pendor autobiográfico, patrocinada pela SONANGOL[1], editada pela Creative.by.arp e publicada em 2023, numa tiragem de 1000 exemplares. Como assinalou, no seu prefácio, o historiador, João Pedro da Cunha Lourenço, a obra “tem como pano de fundo a guerra civil angolana que se tivermos em conta os princípios definidos pelo historiador francês Pierre de Nora, ela é para nós um ‘lugar de memória’”. (p. 8)

Sobre o autor, posso, em linhas curtas, dizer que Soberano Kanyanga é nome artístico de Luciano Kanhanga, natural do Libolo Cuanza Sul, Angola. Estudou Jornalismo, História, Comunicação Social e Ciência Empresarial. É funcionário do Ministério da Geologia e Minas. É, também, docente primário e universitário, palestrante, colunista no Jornal Cultura, Jornal de Angola e Jornal de economia e Finanças. Estreou-se na arena literária em 2010 com o romance, O sonho de Kauia. O escritor, também, membro da União dos Escritores angolanos, conta com mais de 6 obras publicadas, entre romance, novela, conto e poesia.

 Parto da perspectiva de Bakhtin que encara a autobiografia como “narrativa de uma vida” (BAKHTIN, 1997, p. 166), pois é da sua experiência de vida, numa conjuntura sócio-política conturbada, que o autor inscreve o seu livro de pendor autobiográfico, fazendo jus a ideia, de Jean-Jacques Rousseau, segundo a qual:

Ninguém pode escrever a vida de um homem a não ser ele mesmo. Sua maneira interior de ser, sua verdadeira vida só ele a conhece; mas ao escrevê-la ele a disfarça; com o nome de sua vida, faz sua apologia; mostra-se como quer ser visto, mas de forma alguma tal como é. Os mais sinceros são verdadeiros no máximo no que dizem, porém mentem com suas reticências, e o que calam transforma de tal maneira o que fingem confessar que, ao dizer apenas uma parte da verdade, não dizem nada.  (ROUSSEAU, 2009, p. 94).

Soberano Kanyanga procurou trazer à luz do dia um recorte das suas vivências e experiências o que não deixa de ser uma atitude de coragem. Em meu entender, esse posicionamento, diria essa ousadia, do menino do Limbe, entrar no curso da história contemporânea de Angola, através do seu texto memorialístico, só pode resultar do que Hannah Arendt chamou de “êxtase de soberania”.

Sob esse viés de Hannah, o Homem entra no debate das ideias para apresentar o seu ponto de vista, os seus argumentos, no caso da história diria, o seu recorte de experiência e observação, porque atingiu uma espécie de “soberania”, esse lugar a partir do qual se exprime, partilhando a sua experiência num quadro de multiplicidades de vivências.

Pois para Arendt “Na batalha das ideias, na nudez da confrontação, o homem se alteia livremente acima de sua situação e protecção em um êxtase de soberania, não defendendo, mas confirmando, sem subterfúgio absolutamente algum, que ele é” (MAY, 1988, p. 25). Sob esse viés Kanyanga se apresenta como um cidadão que tomou consciência do seu lugar na sociedade da qual é parte e desencadeia um processo que visa partilhar e perpetuar uma experiência de guerra e paz cujos recortes testemunhados, ele registou. O período dos eventos narrados situa-se como o autor faz referência de “1983 a 1993 (guerra civil) no Lubolu e outros episódios em tempo de paz que se vivem desde 2002”. (KANYANGA, 2023, p. 7)

Interessado em saber a origem da palavra “kitotas”, com a qual o autor inicia o título da sua obra, comecei por convocar alguns vocábulos da língua kimbundu, que deduzo ser onde provém a mesma, que semanticamente se aproximam a ela como: guerra que quer dizer “ita”; disparar que é “kuloza” ou “zabula”; espancar que é “kibeto”, “nvunda” ou “tungu”; estrondo que é “bulungunza”. Como se pode ver, nenhum desses vocábulos constitui a origem etimológica da palavra “kitotas”.

Entretanto, observei que o acto de triturar grãos, por exemplo pilar milho no pilão, pode dizer-se “kutota”, daí a expressão, por exemplo, “tota kya mbote ó hungu”, pila bem o milho. Também o verbo “kutota” pode significar bater com um objecto sobre as mãos, as pernas ou os dedos, pelo que se diz: mwene wangi totola maku, ele machucou-me as mãos; mwene wandala ungi tota inwe, ele quer machucar-me os dedos.

Percebo, a formação da palavra “kitota” a partir desse vocábulo “kutota”, dando-lhe sentido de confronto militar, talvez diria guerra, mas, não sendo perito em linguagem militar, posso arriscar dizer que pode haver guerra sem confronto quando uma das partes não reage, nesse caso se pode colocar o termo “kibetu”, espancamento/pancada ou “kibidi”, ataque que resultou na dispersão sem resistência das forças oponentes. Mas o termo “kitota” remete à confrontação entre as partes, combate renhido: “kulitotola”, no sentido de “triturar-se”. Em meu entender, ao termo “kitota” é acrescido o som onomatopeico dos tiroteios, dos obuses, etc. “tó tó tó, bum bum bum”, “ia li tota”; estão a triturar-se, estão em pancadaria.

A materialidade da obra em análise inscreve o seguinte panorama: a ilustração na capa parece cumprir um papel importante na antecipação das expectativas do leitor em relação ao conteúdo da história. A ilustração representa uma multidão com alguns pertences sobre a cabeça e os ombros, fugindo de uma zona de guerra para um lugar de refúgio.

Esse movimento, para alguns, no contexto da guerra em Angola, era feito em sentido único: lugar de conflito ou com rumores de guerra para um de maior segurança, o destino preferido era Luanda; para outros nos dois sentidos, do lugar de guerra para o de segurança, logo que o logo de proveniência denotasse alguma tranquilidade, eles regressavam: aqui um dos sentidos de “avanços e recuos”, pois, outro sentido dessa expressão pode ser depreendido do fracasso, dos Acordos de Paz de Bicesse, que precipitou Angola ao retorno à guerra em 1992.

A imagem não translúcida das pessoas ilustradas pode sugerir a fadiga resultante dos quilômetros percorridos numa atmosfera que para além do medo, da insegurança e da fome; as intempéries naturais como o frio, o vento, o sol ardente, as chuvas, também, lançavam sobre eles a sua ira.

Assim, percebe-se que alguns elementos dos relatos da obra em análise, o leitor poderá inferir a partir da sua capa. Entretanto, a personagem principal do relato é individual, enquanto a capa representa uma coletividade. Me parece que a par da personagem principal individual, a coletividade presente no relato vive as mesmas peripécias, basta olhar que a maior parte de eventos relatados se enquadram no conjunto, ou seja, poucas vezes o autor/narrador está sozinho, mas quase sempre num segmento de pessoas: ora com pessoas da mesma aldeia, ora com pessoas do seio familiar apenas ou com amigos.

Mas essa multidão de “recuados” é também constituída por pessoas provenientes de localidades distintas da do autor, pois os primeiros, segundo o relato, são os que recuados de Kisala e cercanias encontraram guarida, entre os rios Sanganu e Mbangu, depois da fazenda Costa Campos, numa das “instalações pecuárias abandonadas por Manuel Pires. Lá se instalaram, mas tiveram avultadas perdas causadas pelo cansaço do gado, a falta de cuidados médicos, a escassez de pastos para a quantidade de gado, a falta de sal entre outras maleitas.” (KANYANGA, 2023, p. 11)

Segue-se, o grupo derecuados” em que fazia parte o autor. Ao narrar esse episódio, ele usa o pronome “nós” e a forma verbal “pernoitássemos”, como se pode ler no trecho seguinte “o estrondo, inaudito até àquela altura, fez com que nós, residentes no Limbe, pernoitássemos na mata, a caminho do rio Ryaha. O zum-zum, sobre a passagem da Unita e até mesmo sobre reencontros, fez-nos recuar pela primeira vez para o Fuke, aldeia contígua à Estalagem de Ngana Mbundu (Walter Kruk), onde ficamos uma semana como recuados.” (KANYANGA, 2023, p. 11)

Ainda se pode ler sobre o segundo recuo vivido pelo autor na companhia de outras pessoas entre familiares, e, talvez, desconhecidos, em 1983, já que nessas situações de fuga, o bairro, a aldeia, se mobilizava com excepção de alguns que preferiam o “ver para crer”, ou seja, ver as evidências da guerra: “Em nova fuga, caminhamos pelo sertão, até à aldeia de Kindemba, onde a minha mãe tinha um tio, o velho Alfredo.” (KANYANGA, 2023, p. 12)

Essas pessoas representam a multidão engrossada pelas personagens mencionadas cujas histórias são atravessadas pela narrativa, isso se vê, pela contextualização histórica que o autor dá a algumas delas, e outras anónimas que enfrentam as vicissitudes impostas pelo contexto da guerra e conseguem fazer o êxodo, experiência que aproxima o texto a uma especificidade épica.

No texto de apresentação da obra, o prefaciador começa o seu enunciado com um verbo: “Reviver os anos de infância, de adolescência e parte adulta é o que o livro de Soberano Kanyanga nos propõe” (KANYANGA, 2023, p. 18) e termina-o com outro: “Ler os rascunhos de “Kitotas: avanços[2] e recuos” e deixar aqui essa nota foi prazeroso”. (idem, p. 19)

Sob o signo de “ler” e “reviver”, Soberano Kanyanga constrói o seu texto biográfico, resultante de leituras de vivências e experiências, pois viver também é ler, é apreender e entender o que se passa ao nosso redor, como escreveu Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquela” (FREIRE, 1982, pp. 11-12), assim, o autor das duras experiências de vida que teve no quadro da atmosfera da guerra em que Angola e posteriormente da paz, extraiu essas memórias. 

Através das quais se registou que antes desse zumbido, da guerra, tudo era normal na vida desse rapaz/autor: comer, beber, estudar, brincar e dormir. Mas depois do zumbido, os seus ouvidos se abriram e ouviram pela “primeira vez a guerra” que lhe chegou aos ouvidos em 1983, cf. (KANYANGA, 2023, p. 11). Foi também nessa altura que ouviu a palavra “a recua” (idem, ibidem), (os recuados, os fugidos da guerra) e observou os outros povos que iam chegando no seu bairro numa condição dramática:

Povos recuados da Kisala e cercanias chegavam com manadas de bois. Descansaram dias ou mesmo semanas na antiga Fazenda Israel, onde havia tanques para o abeberamento e banho dos bovídeos. Porém, a devastação das lavras dos aldeões locais, a inexistência de pastos preparados para o efeito e a proximidade do asfalto tê-los-á levado a procurar por outra área que já teve a mesma serventia. A caminho do Kuteka, entre os rios Sangana e Mbangu, depois da Fazenda Costa Campos, existiam umas instalações pecuárias abandonadas por Manuel Pires. Lá se instalaram, mas tiveram avultadas perdas causadas pelo cansaço do gado, a falta de cuidados médicos, a escassez de pasto para a quantidade de gado, a falta de sal entre outras maleitas. Em pouco tempo, as manadas ficaram reduzidas a nada e os pastores tiveram de voltar às proximidades da Fazenda Israel, emprestando a sua força à lavoura e esmerando-se na fabricação de artefactos para a caça, numa fauna que ainda era abundante. (KANYANGA, 2023, p. 11)

Não tardaria para que ele próprio, membros da sua família e outros moradores de seu bairro se vissem na mesma condição de recuados.

Diante desse quadro de peripécias, urge questionar: por que escrever livros memorialísticos que retratam de sofrimento, dor e morte? Por que desenterrar coisas que estavam enterradas pelo tempo? São questões que vale a pena fazer, pois podem ocorrer na mente de alguns leitores. Muitos, diante de quadros históricos difíceis, agem como a avestruz, outros levantam a cabeça, acenam ao tempo, reviram o baú da história e trazem de lá vivências e experiências sob o viés da memória para evidenciarem o que Bakhtin chamou de “estética da vida”.

Para Bakhtin, o texto biográfico é a “forma mais “realista”, pois é nela que de fato transparecem menos as modalidades de acabamento, a atividade transfiguradora do autor” (BAKHTIN, 1997, p. 166). Nele, prossegue Bakhtin “os valores biográficos são valores comuns partilhados pela vida e a arte; em outras palavras, elas podem determinar os atos práticos e suas finalidades; são as formas e os valores de uma estética da vida.” (BAKHTIN, 1997, pp. 166-167)

            Percebe-se que a partir do seu texto, o autor partilha aspectos da vida inerentes a si e ao outro, daí essa dimensão partilhável, em que os que viveram a situação narrada podem revivê-la através da memória, e os que a não viveram, a oportunidade de se apropriarem dela. Entretanto, essa narrativa memorialística sendo “boa” ou “má”, no sentido em pode revelar aspectos alegres e ou tristes, ela constitui a estética da vida porque trata de experiência de vida.

É através da sua experiência sobre os factos vividos em contexto de guerra que dá corpo à narrativa apresentada em Kitotas: recuos e avanços como forma de partilhar e documentar algumas situações que enfrentou.

 Do que me posso lembrar, essa forma de construir relatos de pendor memorialístico, visando a partilha de experiências, vividas em contexto de guerra, partindo de um ângulo de observação individual de sujeitos que vivenciaram tais experiências e com uma maneira de abordagem dos eventos na primeira pessoa, mencionando ao longo do relato pessoas que presenciaram os acontecimentos narrados e que cujas vozes o autor captou e faz circular ao longo do enredo, vem-me à memória o livro Angola - A Segunda Revolução, Memórias da luta pela Democracia, de Jardo Muekalia, em cuja sinopse se pode ler:

Quero partilhar com os leitores desta obra parte da experiência que vivi quando jovem, durante o processo de independência do país, os anos de guerrilha que se seguiram à proclamação da independência, e o processo de negociação que conduziu às primeiras eleições da história de Angola. Esta é, antes de mais, uma narração dos acontecimentos, vistos do meu ponto de vista, como parte de uma geração, na altura adolescentes, que se viu arrastada pelo vendaval da revolução, numa corrida imposta por vontades, desacordos e ambições de geração mais velha...”[3].

            O vai e vem da situação de “a recua” e sendo quase uma forma de viver, num contexto de incertezas em relação ao futuro.  O reiterado: “O zum-zum, sobre passagem da Unita e até mesmo sobre reencontros” que os fez recuar pela primeira vez para o Fuke, aldeia, onde permaneceram uma semana como recuados. Depois, regressariam ao Limbe, então, “os recuos se seguiriam mês após mês ou mesmo semana sim, semana também”. (KANYANGA, 2023, pp. 11-12)  

A odisseia prosseguia:

O segundo recuo deu-se no mesmo ano, 1983, depois do accionamento de nova mina, no mesmo local da primeira, próximo da Fazenda Kangulu. Em nova fuga, caminhámos pelo sertão, até à aldeia de Kandemba, onde a minha mãe tinha um tio, o velho Alfredo. A nossa permanência foi de três dias naquela aldeia. De Kandemba a Munenga foi um passo. Mas as peripécias naquele ano e ano seguinte não mais parariam. (KANYANGA, 2023, p. 12)

Enquanto as minas faziam o seu rastro ignominioso: mortes e amputação de membros. Corações nas mãos, como andar? Esse quadro sombrio lembra a música “Scania 111[4]”, de Proletário: “Kakitele kwenda/ mamã kikitele kwenda/ kakitele kwenda, mona mutu yó thala hadi/ não está dar para andar/ mamã, as pessoas estão a sofrer”.

Como uma das evidências desse período dramático, atente-se para o trecho a seguir:

Tempo depois, não muito tempo, um tractor agrícola, carregado de cerveja, procedente do Alto Dondo (Eka) e com destino ao Lususu, acionaria uma mina, entre o rio Kazondo e a Bica d’Água. Perdemos o Santos Kajamba (nosso parente próximo). O Zé Manel, que vim a conhecer mais tarde em Luanda, onde fomos vizinhos, perdia um dos pés. (KANYANGA, 2023, p. 12)

A explosão de minas, quer pessoais ou antitanques, causa pânico e insegurança na população. Quando tal acontecesse, nos bairros, na vila e arredores, não se falava de outra coisa senão das pessoas mortas, e das que tinham os membros amputados, pelas minas cujos corpos chegavam, em estado lastimável nas morgues dos hospitais, como resposta da mobilização dos efetivos das FAPLAS[5] que iam resgatá-los.

É nessa fuga, em busca de refúgio, que os levou, num primeiro momento, até Munenga, caminhando ora na mata ora na estrada, que o autor recorre tacitamente a ficção para apresentar um desses momentos de caminhada penosa: “Partimos. Já não me lembro se bem a meio da manhã ou no início da tarde. Porém, aquele sol ardente sobre os nossos corpos pioneiros e o alcatrão derretido a travar a nossa marcha, pés descalços, não me saem da memória.” (KANYANGA, 2023, p. 14)

A expressão “o alcatrão derretido a travar a nossa marcha” dá a imagem de que para além do desgaste físico, os pés descalços a suportar quilómetros que pareciam intermináveis se constituíam na saga de uma fuga que tecia os seus dramas, um deles o do “Velho Trinta” que cansado das marchas intermináveis, dizia: “- Por que não estragas de vez, ó relógio?! - Apelava ele, cansado daquela vida de fugas permanentes e dias passadas nas matas, dado o peso da idade que carregava, já acima do dobro do seu nome”. (KANYANGA, 2023, p. 15)

De ressaltar que se pode divisar intertextualidade entre o texto de Kanyanga e o do Jofre Rocha, pelo conto, “Os caminhos da liberdade”, em Estórias do Musseque. Ambos os textos, embora em contextos diferentes, aludem a fuga de pessoas de uma zona de guerra para locais de refúgio.

O texto de Kanyanga situa a sua diegese no contexto da guerra civil pós-independência, enquanto o de Rocha ficciona a luta de libertação nacional contra o regime colonial português, entretanto ambos se intersecionam na apresentação de um momento de fuga, no qual o povo cansado de caminhar não vê a hora de vencer a distância a sua frente.

Para o autor, essa fuga é caracterizada por um momento em que “aquele sol ardente sobre os nossos corpos pioneiros e o alcatrão derretido a travar a nossa marcha, pés descalços” (KANYANGA, 2023, p. 14) parecia não ter fim, enquanto para Rocha “naquela hora o povo da sanzala estava sempre a andar, os pés cansados, olhos a comer a distância”, interrompida, apenas, porque a “escuridão chegou”.  Interessa ver que a imagem subjacente na ideia, “o alcatrão derretido a travar a nossa marcha”, de distância alongando-se no olhar dos caminhantes, ou seja, a impressão de uma distância interminável aponta para o que Rocha chamou de “os olhos comerem a distância”, quer dizer andar para vencer a distância que parece interminável.  

Para aqueles que ainda não tinham vivido os horrores das “kitotas” e em cujas localidades acorriam os que fugiam delas, a guerra era “desconhecida”, num primeiro momento. Por isso, muitos deles, viam com indiferença e às vezes com desprezo os que delas fugiam: “Ali ficámos uma semana, sendo tratados como recuas pelos aldeões que desconheciam ainda o que era a guerra”. (KANYANGA, 2023, p. 15)

O drama da guerra, o processo de “a recua” remete as pessoas na mais profunda indigência social: “Os chefes de família que, havia pouco tempo, eram abastados, viram-se forçados a trabalhar por comida”. (KANYANGA, 2023, p. 19)

Nesse contexto, muita gente fazia de tudo para encontrar refúgio nas cidades. Luanda era o destino preferido de muitos: “Para alguns integrantes da família Xika Yangu, Luanda seria o próximo destino para recuo. Era o mais seguro” (idem, ibidem). A chegada a Luanda, remetia os “a recua” a um processo, que podemos considerar, de integração. Para muitos, inserir-se no novo contexto social não era fácil.

Muitos não tinham familiares na cidade, outros que os tinham não dispunham de documentação pessoal para tratar questões ligadas ao estudo e ao trabalho. Os que tivessem a sorte de ter familiares em Luanda, alojavam-se, inicialmente, em casa de parentes, os que não tinham, criavam dinâmicas de sobrevivência. Poucos tinham a sorte de Sabalu-a-Soba que “seguiu imediatamente para a capital do país, trabalhando, depois, na empresa de eletricidade, como professor e mais tarde polícia.” (KANYANGA, 2023, p. 19)

Como disse, a odisseia dos “a recua” continuava mesmo depois de aportar na grande cidade. Muitos deles, como já mencionei, ficaram sem os seus documentos de identificação – na hora da “kitota”, você vai salvar a vida ou os documentos? Daí as dificuldades no acesso ao ensino e outros benefícios do cidadão. O próprio autor, na pele de “a recua” viveu o drama da falta de documentação:

Em Luanda, por falta de documentos pessoais (Cédula), tive de apanhar a boleia na turma do meu primo Arnaldo Manuel Carlos que era professor da segunda classe. Foi a forma encontrada para não ficar em casa ou queimar tempo na Explicação do Sr. António, ao Ngongo, como faziam outras crianças do meu tempo e em situações análogas. Muitos se tornavam conhecedores de Aritmética, História, Geografia e LP, mas nunca passavam ao II nível. (KANYANGA, 2023, p. 29)

            Os adolescentes, nessas condições, que tinham os seus pais ou tutores, depois de algum tempo, viam o seu problema de reingresso à educação resolvido, mas aqueles que não tinham quem pudesse tratar desse processo (muitas vezes através de campanhas de registo de nascimento promovidas pelo Governo), ficavam entregues ao comer, dormir e acordar. Kanyanga teve a “fezada” ou sorte de haver quem pudesse contornar a sua situação: “O meu caso foi diferente. Os meus encarregados decidiram pela repetição da segunda classe, enquanto se resolvia a questão dos documentos”. (KANYANGA, 2023, p. 29)

            Muitos desses adolescentes, por falta de acompanhamento familiar e outros por rebeldia, engrossavam o universo de crianças na rua, alguns acabavam sendo marginais. Dos ventos e das influências dessa situação nem mesmo ele escapou, como suspeitaram e acautelaram os seus familiares:

- Julgámos que os documentos tinham sido extraviados deliberadamente e, não havendo possibilidades de mandar-te ao exterior do país, mesmo sabendo que havia guerra intensa no interior, tivemos de tomar a mais arriscada decisão de mandar-te a Kalulu para não seres contagiado pela má vida dos rapazes de Luanda. (KANYANGA, 2023, p. 31)

Isso de ser contagiado é porque se via envolto em uma atmosfera sócio juvenil nociva. Na linguagem popular, diz-se “escapou ser bandido de Luanda”. Por isso o mandaram de volta a Calulo. Aqui, questiono: - os kotas da família não sabiam que em Calulo, também, havia rapazes da má vida? aos quais, provavelmente, o autor até se tenha referido como “jovens da kangonya” (KANYANGA, 2023, p. 44). Esse termo, assim como o autor o usa, parece um resquício do olhar pejorativo da sanzala aos jovens, que fazem uso da canabis, estigmatizados como “liambeiros”, “olhos vermelhos”, “desordeiros” e “kinangambala”, quer dizer “aquele que passa o dia na sanzala, vadio”.

Embora, se diga, também, que esses epítetos não abranjam a todos os consumidores da erva, pois, há muitas evidências que contrariam esse juízo, muitos deles são bons estudiosos, trabalhadores, visionários e empreendedores. Talvez para eles a amplitude da “má vida” dos rapazes de Luanda fosse maior em relação a do interior ou do “mato” como muitos chamam os oriundos do interior. Provavelmente em colação ao poema de Agostinho Neto “gente do mato”.

Ou essa decisão dos kotas do “Bureau Decisor Familiar” era um “pretexto” para se livrarem do rapaz, como quem diz: - vai junto de tua mãe para te aturar. Seja como for, ele voltou a Calulo e pode vivenciar mais “kitotas” e suas agruras cujo testemunho apresenta na sua obra.

Olhando para o construto da narrativa da qual discorro, vale dizer que reunir e ordenar memórias, dar-lhes sentido, através de um percurso, sequencial ou não, de acontecimentos, é um assunto que não está ao alcance de todos, porque requer um labor que exige, não só capacidade escrita, mas também o colocar em ordem as ideias do caos que o tempo cria. Pois, como disse Mills “a maioria parte das pessoas não vai atrás das coisas que estão fora de seu alcance, mas o intelectual, o artista e o cientista fazem exatamente isso. Fazê-lo é um traço normal das suas vidas de trabalho” (MILLS, 2009, p. 91). É o que Soberano Kanyanga procurou fazer no seu ofício de escritor em Kitotas: Recuos Avanços, trazer à luz vivências, acontecimentos que servirão ao leitor como referência para análise e compreensão dos recortes factuais narrados.

As kitotas são questões que tocam a todos os angolanos. Todos, directa ou indirectamente, sentimos o seu impacto negativo. Entretanto, embora, tenham um pendor sensível, por conta do seu antro de destruição deixado por todo o País e ter afectado as famílias, a vida das pessoas como bem mais precioso, como já sublinhei, o escritor ganha coragem e fala sobre elas, apresenta o seu ângulo de observação como alguém que, também, viveu as agruras e vicissitudes dessa tragédia, a guerra e narra a história.

A inquietação em relação às motivações que levam alguém a contar uma história, assim como os seus efeitos, foi também levantada por vários pensadores, entre os quais Jeanne Marie Gagnebin, na sua obra História e Narração em Walter Benjamin, que partindo do olhar que lança ao que chamou de preocupação intensa de Walter Benjamin sobre literatura[6] e história, questiona: “o que é contar uma história? O que é contar a história? (o que isso significa?) serve isso para alguma coisa e, se for o caso, para quê? Por que essa necessidade, mas também, tantas vezes, essa incapacidade de contar?” (GAGNEBIN, 2007, p. 2)

Com base em Kitotas: recuos e avanços, a minha percepção é de que Soberano Kanyanga, enquanto estudioso de história, vale lembrar aqui que é licenciado em ensino de História, é jornalista e cidadão que se coloca a par das questões sociais e políticas da sua sociedade, responde por meio de seu texto às questões levantadas por Gagnebin. E apresenta uma proposta, ou seja, um recorte histórico, como resposta a tais questões, pois “hoje ainda, a literatura e história enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa, seja para “resguardar alguma coisa da morte” dentro da nossa frágil existência humana.” (GAGNEBIN, 2007, p. 3)

 Quando as testemunhas dos eventos históricos não contam sobre os mesmos, desenha-se um vazio cujo preenchimento pode ser muito trabalhoso. Por isso, parece sintomático em algumas sociedades, e é o caso de Angola, em que os mais jovens esperam, se não mesmos pedem que os mais-velhos que testemunharam os acontecimentos passados os narrem para se evitar o “esquecimento que seria não só uma falha, um “branco de memória”. (GAGNEBIN, 2007, p. 3)

Toda experiência traumática nos coloca sempre entre o real e o irreal. Quem não a viveu poderá ver nela algo inimaginável, mas quem a viveu e sentiu sabe que é real e por isso, dispõe-se para contá-la. Embora seja uma experiência diferente, vivida também em contexto diferente, da apresentada por Kanyanga, mas convém partilhar o que Robert Antelme, em 1947, escreveu num relato sobre a sua experiência vivida nos campos de concentração nazistas:

Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, estávamos todos, eu creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloquente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos, nós trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e nós sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que nós descobrimos entre a linguagem que dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como nós havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal começávamos a contar e sufocávamos. Aquilo que tínhamos a dizer começava a parecer inimaginável. (SELIGMAN-SILVA, 2003, p. 46)

            Soberano Kanyanga não esteve num campo de concentração, mas viveu as agruras da guerra cujas marcas carrega na memória. Por isso, resolveu, apesar das limitações da linguagem em apresentar o “real” na sua plenitude, pois como escreveu Seligman-Silva “a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o “real”) com o verbal”. (SELIGMAN-SILVA, 2003, p. 46)

            Entretanto, o menino do Limbe, entre o trauma, o real e a memória, (trauma na perspectiva de Freud, como aquilo que que não pode ser totalmente assimilado enquanto ocorre; o real como o que está fora do simbólico, na perspectiva lacaniana e memória individual, enquanto testemunho), percorreu pelo viés do testemunho cujo conceito desloca “o real” para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo excepcional e que exige um relato. Esse relato não é só jornalístico, reportagem, mas marcado também pelo elemento singular do “real” (SELIGMAN-SILVA, 2003, pp. 49-53). Numa posição auto diegética, o autor relata recortes de experiência vivenciada no contexto da guerra em Angola e da construção da paz.

            A autobiografia em Kanyanga também se afigura como espaço para o exercício da crítica e reflexão. Atente-se para o trecho seguinte:

Movido pelo extinto de sobrevivência e vontade de voltar a estudar, fugir de homens da mata que matavam e esconder-se na mata era nada! Em todo o país, a funguta ou kitota era intensa. Dizíamos que o “inimigo quer nos acabar”. Afinal, queriam apenas mostrar que estavam presentes e conseguir ter voz à mesa de Bicesse, de onde nada saía para o povo fustigado. (KANYANGA, 2023, p. 37)

Na última fala desse trecho, "Afinal, queriam apenas mostrar que estavam presentes e conseguir ter voz à mesa de Bicesse”, o narrador faz referência à correlação de forças, no chamado “teatro das operações”, entre os oponentes, dando ênfase que os “homens da mata” queriam tirar vantagem dessa correlação na mesa das negociações da qual “nada saía para o povo fustigado”.

Em alguns troços da narrativa, Kanyanga parece trazer um discurso com brechas por preencher, será omissão, dissimulação ou lapso de memória? Por exemplo, ao aludir sobre a sua fuga final para Luanda, diz: “Quem tivesse família em Luanda devia já preparar macroeira para viajar e ir “se matricular na Nguimbi [...] Quem não tivesse parentes em uma cidade mais segura arriscava-se a ir à tropa (LCB) ou raptado pelos kwachas.” (KANYANGA, 2023, p. 38)

Portanto, assim como coloca a forma verbal “arriscava-se” sugere uma decisão pessoal (sei do perigo, arrisco-me, mas vou...), entretanto o contexto em que o jovem, com idade para o serviço militar obrigatório, vivia, colocava-o entre a “espada e a parede”, pois se não se apresentasse à LCB[7], era rusgado pelas forças governamentais, mas em caso de ataque, ou uma outra circunstância, era “raptado pelos kwachas”.

  Entre o perigo e a graciosa inocência

O clima que pairava no ar era tenso, não sei, e isso o autor parece não ter dito. Talvez, não quisesse mexer na colmeia, deve ter tido sua razão, se naquele ambiente tenso de suspense, não sabendo a que horas o tó tó tó bum bum havia de começar, se os mais velhos no quarto ainda faziam amor e como faziam? Se quarto já não era quarto, mas minúsculo acampamento dos ‘a recua’. Pois, “filhos, sobrinhos, sogros, etc. galinhas, cabritos no mesmo espaço.” (KANYANGA, 2023, p. 13)

“Pensava-se que os homens podiam chegar à madrugada” (idem, ibidem), O choro da criança na mata:  o som da pessoa: o choro, a voz, o murmúrio, o fogo, as marcas no capim vergado, os rastos, são vários entre os sinais exteriores que sinalizavam a presença humana numa certa área. Então, o choro de criança era uma denúncia autêntica, por isso, a preocupação dos mais velhos que face à mãe da criança de 2 anos e muito chorona, na mata onde dormiam em condições dramáticas: “Dormir na mata, apenas um pano estendido no solo húmido ou rígido, não dá a comodidade de uma esteira”. Então, para se acautelarem do perigo, “os mais velhos, procurando distância do perigo, diziam à minha mãe: - O mon’u mubane lyele. Otujibisa! (Põe essa criança a mamar, vai fazer matar-nos!)”. (KANYANGA, 2023, p. 13)

No contexto da guerra, as pessoas viviam na incerteza em relação ao momento seguinte. Ninguém sabia o que poderia acontecer a qualquer hora do dia ou da noite, mas a grande preocupação era em relação à noite e a vespertina.

Ao se referir ao ataque a Munenga, o autor relata um ambiente sinistro que indiciava que algo mau estava prestes a acontecer:

No dia do ataque da Unita à Munenga, Fevereiro de 1984, parecia que até os cães se tinham aposentado de ladrar ou estava tudo muito calmo e eu não tinha reconhecido o suficiente aquele vilarejo. Na madrugada, os kwachas gostavam da alvorada, atacaram. (KANYANGA, 2023, p. 21)

Para os leitores da obra de Jofre Rocha, em particular do livro Estórias do Musseque, verão que esse trecho de Kanyanga dialoga, parcialmente, com o conto “Os caminhos da liberdade” no qual está escrito: “Os bichos nas matas não estavam mais ficar sossegados, parece estavam a adivinhar que ia passar coisa de meter medo” (Rocha, 1980, p. 35).

 Ambos os textos se situam em tempos e contextos diferentes. O primeiro, na era pós-independência, aludindo a guerra pós-independência e o segundo na era colonial, retratando a luta de libertação nacional, entretanto se interceptam através da imagética do comportamento “premonitório” dos animais domésticos. No primeiro caso “parecia que até os cães se tinham aposentado de ladrar ou estava tudo muito calmo”, indicia que até os cães tinham medo, era o prenúncio de que algo mau estava prestes a acontecer. É motivo para questionar:  Afinal, até os animais também sentem medo da guerra?

No segundo caso, “Os bichos nas matas não estavam mais ficar sossegados, parece estavam a adivinhar que ia passar coisa de meter medo”, verifica-se o desassossego dos animais contrastando com a acalmia apresentada pelos primeiros. Para os caçadores quando o cão manifesta desassossego é porque se avizinha caçada. Mas na narrativa jofreana, esse desassossego era prenúncio de algo mau.

Ainda sobre os animais, muitas vezes esses foram confundidos com crianças. A guerra é tão monstruosa que provoca um estado de espírito indescritível de, em alguns casos, uma mãe chegar a confundir a cria da cabra com o seu bebé. Se mito ou não, essa questão anda nas narrativas do povo de Calulo e até musicalizada.

Pois, se diz que a primeira vez que os moradores sentiram o escárnio da “kitota” foi na madrugada do dia 05 de setembro de 1983. Nesse dia, surpreendida pelos tiroteios que vinham de todos os lados, certa mãe, ao invés de pôr o bebé às costas, levou a cria da cabra. Só depois de alguns quilômetros é que deu conta que tinha deixado o bebé no leito, assim como musicalizou, a seu jeito ‘kimbundualizado[8], Brandão Hamalata:

Mu dia cinco é zé ngana,[9]

ó povo ioso ya lenge ngana zé

a ka mukwa a lengela ku yangu

a ka mukwa a lengela ku mabyá

nga xisa mona ngambata ó hombo

nga xisa mona zé.

Falar da guerra é doloroso, principalmente, para quem a viu, viveu as suas agruras, presenciou o drama que açoita a vida e estilhaça a esperança como vidro arremessado à parede. A guerra com o seu rastro de destruição deixou sinais cravados na alma dos homens feridos, das mulheres viúvas e das crianças órfãs. Talvez, por isso, muitas a vejam como página para esquecer e cujas memórias devem ser entregues ao labirinto.

Mas Kanyanga ganhou coragem e partilhou sua experiência, em sinal de que, quando se ler seu texto, lembrar-nos-emos, todos nós angolanos, que a guerra jamais na nossa Terra. Então, deixemos que os historiadores falem sobre ela, os músicos cantem sobre ela, os poetas poetizem versos, mas para que? Para nos redimirmos dos nossos erros do passado e lavarmos os pés uns dos outros como pregou o Nazareno na sua lição sobre humildade. (cf. Jo 13:14)

 Ao se referir à sua aldeia Limbe, o autor faz menção de uma figura de quem diz ser patrono dessa aldeia, Xika Yangu, quer dizer empurra capim. Coincidentemente, foi apelido usado nos finais dos anos 80 a 90 por um dos soldados destemido da LCB), num período que teve como comandantes nomes como José Manuel da Costa (Dragão Imortal), Kungula Lusoki, Mayka, Kekangó, Ndongala, entre outros.

 Experiência formativa da Escola Técnica Preparatória Kwame Nkrumah

A época em que Kanyanga começa a vivenciar os primeiros episódios, que constituem o seu relato biográfico, situa-se depois de 8 anos da Independência de Angola e 19 anos antes dos Acordos de Paz do Luena. Como já disse, o seu relato está prenhe de factos no quadro do conflito armado que assolou Angola.

O autor, no relato do trecho abaixo, não faz menção da Escola Técnica Preparatória Kwame Nkrumah de Calulo nos moldes formais como “entrei para o Escola Kwame Nkrumah em tempo X e terminei em Y”. Uma das menções que faz dela, e que retive, é através de um aluno que, numa dada situação de guerra, evidenciou a sua competência de leitura em francês:

Eis que o kwacha-chefe sacou da sua pasta uns papéis e mandou o meu mano Sabalu lê-los. Ele que já frequentava o III nível, na Kwame Nkrumah, em Kalulu, leu-os como esperado ou terá até ultrapassado a expectativa do kwacha-chefe. Estavam escritos em língua francesa. Espantado, o kwacha-chefe teve de simpatizar-se com ele. - Já não vais connosco. Ficas aqui a responder pela jura (algo que não sabíamos o que era). Foi assim que se salvou do rapto. (KANYANGA, 2023, p. 22)

Como se pode constatar, era um aluno que frequentava o III nível e com proficiência em francês. Essa é uma das evidências da excelência formativa da Kwame Nkrumah em Calulo. Portanto, sobre essa escola fica registada nessa narrativa uma imagem centrada na performance em língua estrangeira de um de seus alunos.

 Ngana Mbundu lembrança de uma figura do futebol calulense

Para além da educação, outros aspectos socioculturais, de Calulo na época, transpiram nos poros da narrativa não de forma directa, mas pela alusão de nomes ligados à figuras que emprestaram a sua contribuição em algumas dessas áreas, é o caso do cidadão alemão Walter Kruk, mais conhecido por  “Ngana Mbundu[10]”, avô de Zé do Ngana Mbundu, o guarda redes que brilhou no Futebol Club do Cambuco, equipa  do Libolo, nos anos 80, que disputava a titularidade com outras estrelas como: “Vai à Lua” e “Kinenguenengue”. Nessa altura, o provincial do Cuanza-Sul era disputado por equipas como: Ara da Gabela, Dínamos do Sumbe, Andorinhas do Sumbe, Naval do Porto-Amboim e equipas do Waco Kungo, Kibala, Seles e Conda.

Por esses laivos históricos e outros, a leitura dessa narrativa oferece ao leitor atento uma pincelada da historiografia de Calulo, um caudal de possibilidades de reviver nomes de lugares, figuras, factos.

Entretanto, a par do futebol, outro segmento sociocultural que floresceu em Calulo nos anos 80 foi o Carnaval. Pois, passavam poucos anos desde que o presidente Agostinho Neto havia pronunciado, num dos discursos, o retorno ao Carnaval, propriamente, angolano: “não devíamos dançar o Carnaval tuga, mas o Carnaval angolano”.

Portanto, em Calulo, na senda do Carnaval, emergiu uma figura muito carismática. Um homem, mestiço, franzino, de estatura baixa que era mais conhecido por “Garrie”. Ele comandava o grupo carnavalesco afeto ao bairro Casequel. Durante a folia, dificilmente, os seus concorrentes: grupos afectos à Mbanza de Calulo, a Cacula, ao Musafo, entre outros lhe retiravam o ceptro. “Garrie”, com o seu carisma, e a contextualização das suas canções, empurrava o seu grupo carnavalesco à vitória.

Os temas, mais explorados pelo grupo de “Garrie” e os demais, gravitavam entre as questões sociais, económicas, políticas e culturais conforme o contexto. Assim, por exemplo, do grupo do Casequel se reconhecem temas como “Tia Dora” cuja síntese é: A tia Dora, tia Dora, é minha tia, aquela moça da tia Dora é minha mulher. Portanto é um tema de pendor lírico; nessa perspectiva há ainda o “a moça comeu dinheiro alheio”: a moça comeu dinheiro alheio do Garrie e não quer ir na casa do Garrie essa moça; entre os vários temas de pendor político, destacam-se: “LCB”: LCB do Libolo lutou deu sucesso no morro do Kisongo ouvi dizer que a Unita já morreu, chefe Zé segura na viatura para recolher os soldados que tombaram. A comuna do Kisongo, que o autor chamou de ‘esconderijo do inimigo’: “[...] enquanto os mais velhos iam enfrentar o inimigo escondido no Kisongo” (KANYANGA, 2023, p. 33), assim como o Sector Luaty e Lususo eram as áreas mais afetadas pela guerra. Considerando o panorama linguístico de Calulo, alguns temas de Carnaval eram cantados em língua kimbundu.

  Guia de marcha como autorização para circular pelo território nacional

É sabido que a guerra impôs condicionalismos à vida das pessoas, entre eles, a restrição de circular pelo território nacional para não dizer de um município para outro. Para se deslocar, o cidadão tinha de solicitar às autoridades administrativas do seu município uma “guia de marcha”, documento que autorizava o seu portador a viajar para o destino indicado e com prazo de tempo de permanência.

Para quem quisesse viajar, para além do esforço para conseguir o meio de transporte, nem sempre havia carros disponíveis. Naquele contexto, viajar além de oneroso para o viajante, era um risco quer para esse quer para o motorista, por causa dos ataques e das minas. Ainda assim, conseguir a “guia de marcha” era uma vitória. Porque só com ela, o cidadão estava autorizado a empreender a viagem. Vejamos como Kanyanga documentou essa questão:

Em 1983 estudava a terceira classe quando a guerra impiedosa imposta pela UNITA nos fez recuar do Lubolu (Comuna da Munenga) a Luanda. Naquele ano, tivemos de nos deslocar a Kalulu em busca de Guia de Marcha. Pois, ninguém se fazia à estrada de uma localidade para outra sem que fosse competentemente autorizado a viajar pelas autoridades locais. Não transporia nenhum dos vários controles montados ao longo da via e, pior ainda, para quem como nós do Lubolu que teríamos de transpor o famigerado posto de controlo do Kyamafulu (bicho mau). (KANYANGA, 2023, p. 29)

Naquele contexto, a “guia de marcha” era, também, um instrumento de controle dos jovens em idade de cumprimento do serviço militar obrigatório. Jovens com idade de ir na “kwemba” ou vida militar, não podiam viajar sem que apresentassem documentação de cumprimento do serviço militar ou isenção, a rusga, ou canga, estava sempre à espreita.  

 No clima de paz e o ofício de jornalista

Paz para Angola! Esta é a expressão que pairou nos corações de muitos angolanos após a assinatura dos Acordos de Paz do Luena aos 4 de abril de 2002, o autor narra a sua experiência de como viveu esse período:

Voando para a cidade do Lwena, levei comigo uma carta de recomendação do Director de Informação, José Rodrigues, ao general Geraldo Sachipengo Nunda, Chefe de Estado-Maior Adjunto das FAA, para que me fosse dado “apoio informativo”, enquanto fonte. As conferências de imprensa aconteciam na sede do Governo Provincial, porém algumas “negociações” entre as partes aconteciam no Estado Maior Avançado das FAA, onde poucos jornalistas tinham acesso. (KANYANGA, 2023, p. 57)

Como jornalista, entrevistou generais da UNITA, colocando-se frente a frente com aqueles que outrora chamava de “inimigos do povo” (KANYANGA, 2023, p. 30). Nessa nova atmosfera, celebrava-se pelo país a força da paz que a todos reconcilia e une. Nesse contexto, o jornalista joga o seu papel de informar sobre o momento que se vivia no País e particularmente no Luena: “Foi a minha terceira estada, por uma semana, na capital do Moxico, aproveitada para outras reportagens sobre a situação humanitária que continuava preocupante”. (KANYANGA, 2023, p. 58)

Concluo que Soberano Kanyanga muito bem poderia optar por partilhar essas suas vivências e experiências através da oralidade, mas procurou perenizar o seu gesto ao fazer pacto narrativo com o papel, registando por escrito o que viveu, viu e sentiu. Sob esse viés, seu ato, de autor-narrador que, conta suas peripécias de guerra e venturas da paz, reúne através do escrito leitores que o ‘ouvirão’ dentro e fora das fronteiras de Angola, lembra-me o escritor Elias Canetti que, no seu texto “Narradores e escreventes”, no livro Vozes de Marrakech, escreveu:

Eu também posso reunir pessoas em torno de mim, às quais narro e que também me escutam. Mas em vez de andar de lugar em lugar, sem nunca saber quem encontrarei, que ouvidos me ouvirão, em vez de viver da pura confiança na minha narrativa, compactuei com o papel.”  (CANETTI, 1987, p. 95)

Kitotas, Recuos e Avanços, meu entender, pode servir de material de pesquisa para os historiadores, sociólogos, políticos, mas sobretudo para os estudantes de Letras que podem explorar temas como: A autobiografia como instrumento crítico-reflexivo; a autobiografia como exercício de cidadania; a autobiografia como confissão; a autobiografia como trama da memória: entre a guerra e a paz, etc. portanto, assim como o autor, também digo: “Que viva a Paz em Angola”. (KANYANGA, 2023, p. 73)

 

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2ª ed., tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida, edição revista e atualizada, 2ª ed. Brasil: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

CANETTI, Elias. Vozes de Marrakech. Tradução de Marijane Lisboa. Porto Alegra: L&PM, 1987.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007.

JOFRE, Rocha. Estórias do Musseque. São Paulo: Ática, 1980.

MAY, Derwent. Hannah Arendt: uma biografia. Tradução de Rui Jungmann. Rio de Janeiro: Casa-Maria editorial, 1988.

MUEKALIA, Jardo. Angola: A Segunda Revolução, Memórias da luta pela Democracia. Cf. Google folhassoltas.com.pt acessado em 15.08.2023.

MILLS, C. Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

KANYANGA, Soberano. Kitotas, Recuos e Avanços. s/l. creative.by.arp. 2022.

RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. O Ensaio como Tese: estética e narrativa na composição do texto científico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Textos Autobiográficos e Outros Escritos. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

 

  



[1] . Sociedade Angolana de Combustíveis.

[2] .sic.

[3] . Google, folhassoltas. Com. Pt, acessado em 15.08.2023.

[4] . www. Podomatic. Com. Acessado em 3 de novembro de 2023.

[5] . Forças Populares de Libertação de Angola.

[6] . Embora se afigure uma obra biográfica, ou de “minhas memórias” como a chamou o autor (p. 7), eu vejo nela alguns troços de prosa literária, a contribuição da linguagem literária na construção dessa narrativa.

[7] . Luta Contra Bandidos, fazia parte às FAPLAS.

[8] . Considero o cantar híbrido (em kimbundu e português).

[9] . Esta letra traduzida em português fica: No dia cinco, sim, senhor / todo o povo fugiu, sim, senhor / uns figuram na mata / outros fugiram nas lavras / deixei o filho, levei o cachorro / deixei o filho, sim.

[10] . O termo do kimbundu, literalmente, significa “senhor do nevoeiro” ou também “Senhor negro”.