Realizada num 15 de Setembro, já leva século, quase. Não existia ainda a EN120 ou, para ser mais preciso, sobre o largo e caudaloso Kwanza, o novo atalho, desenhado entre o Alto Dondo e o Fortim da Kibala, não possuía ainda travessia. Pretendia-se encurtar a distância entre a crescente capital e a florescente Nova Lisboa de então. Ao pôr-do-Sol emergia a capital do novo distrito, Benguela Velha.
Nesse espaço LITERÁRIO a sua crítica é muito BEM-VINDA. = ® Reservados todos os direitos ao autor deste Blog =
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
VIAGEM DE SONHO
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
NÂMBWA: A GUERRILHA, A REGIÃO E AS ESTRADAS
Tá maluka, avô chegou, kaleluia são designativos da mota de três rodas (coexistem também as de seis rodas adaptadas para cisternas de transporte de água). A esses nomes, oriundos da rica invencionice angolana, junta-se outro, por ironia coincidente com a designação de uma municipalidade aonde os carros chegam a custo. Nâmbwa. Isso mesmo. Diminutivo de Nâmbuangongo que fica na província do Bengo.
sexta-feira, 1 de outubro de 2021
O RÁDIO E OS "FANTOCHES" DA MINHA VIDA
Em 1977, o meu pai mandou comprar o seu segundo rádio em Luanda. Vivíamos ainda em Kitumbulu (fazenda de meu avô paterno). Era um Philips cinzento, de 4 pilhas grandes, made in Singapura, lembro.
quarta-feira, 1 de setembro de 2021
A MULHER QUE PERCEBIA AS FORMIGAS
Caminhava exausta pela savana. Era tempo chuvoso e capim alto a mostrar apenas as cabeças de pessoas altas. O sol, bom para alegrar a vida e as sementes a querer ser vida, brilhava no alto dos céus de meio-dia, fazendo-a caloriar[1] como se tivesse atravessado um dos imensos rios a nado.
Perto de uma pequena floresta onde pacaças e alguns elefantes buscavam
sombra encontrou um animal inanimado, mas ainda com sinais vitais. Aproximou-se
corajosa, sem espingarda, nem catana, e verificou que a pacaça tinha sido
atacada por um crocodilo.
- Há carne para conduto, há "mahaki"[2], há pele para alparcata,
há chifres para soprar e levar mensagem distante. Haverá festa nas aldeias
todas. - Disse a formiga sortuda.
Com auxílio de um pau e uma pedra, desmontou um dos chifres do animal e fez
uma corneta. Ganhou mais força ainda. O cansaço que trazia tinha sido
literalmente anulado pelo achado. Era só a festa que lhe corria no sangue.
Subiu ao topo de uma kamunda[3] que se achava no centro de
cinco aldeias e gritou com toda a força que permitia o seu diafragma:
- Vocês aí, nessa aldeia onde se põe o sol, tragam baldes, facas e homens
fortes. Temos pacaça.
Virou-se à nascente:
- Mwa mama, lyatata. Tokano. Ambatano
l'ombya phala masaki ly langinga. Utana ly laphoko mwaxyale![4]
Ao norte e sul fez mesmos apelos e, num correr de pouco tempo, a floresta
encheu-se de homens e mulheres corajosos, cheios de vigor e vontade de uma rica
funjada de miudezas regada com maluvu[5].
As mulheres acondicionaram o sangue, o fígado, o coração, os rins, pâncreas
e pulmões em panelas. Com a água trazida nas cabaças as jovens raparigas
lavaram as tripas e os intestinos para a confecção de jinginga[6].
Os jovens, rápido acenderam uma fogueira para os assados de primeira hora,
enquanto os makota[7]
planificavam e repartição do animal pelas cinco aldeias. Depois seria a gestão
de cada soba, dividindo a parte a receber por cada lar da sua comunidade.
Essa cena já leva milênios. Porém, até hoje, quando a mulher se senta de
baixo da árvore do seu terreiro, a catar os piolhos na cabeça da neta, vem-lhe
à memória o grito, daquela formiga que achou no meio do capim uma mosca e
chamou todos os seus semelhantes das aldeias à volta para carregarem e
repartirem a carne do grande animal que era a mosca.
[1] Transpirar.
[2] Sangue para sarrabulho
ou para colorir a jinginga (Kimbundu).
[3] Monte, elevação ou
pequena montanha (Umbundu).
[4] Mulheres e homens,
venham. Tragam panelas para o sangue e as miudezas. Não esqueçam de trazer
catanas e facas Kimbundu).
[5] Vinho de palma ou
seiva de palmeira (Kimbundu).
[6] Miudezas: tecidos do
tubo digestivo, fígado e outros órgãos internos (Kimbundu).
[7] Os mais velhos (Kimbundu).
Texto publicado pelo GAZETA-Lavra e Oficina, UEA, 2021
quarta-feira, 4 de agosto de 2021
VATATE WANDA KO KACIPEMBE
Corriam os anos sessenta do século XX. A chuva tinha caído bastante naquele ano distante. Os rios ainda escoavam em abundância. As florestas alegres de verde, embora o capim começasse a vergar as flores para baixo, dando lugar à festa das codornas entre o areal esparso dos caminhos afunilados. Anunciava-se o kasimbu, reortografado pelos lusos por cacimbo. Às mães estava confiada com a colheita do último milho e a preparação de novas terras para a época vindoura. Era tempo de olhar para o cipembe¹ que reentra na lavoura.
Para os pais, eram tempos difíceis. Estavam divididos entre a participação na
luta armada pela independência, que deles ordenava entrega afóbica, e o
recrutamento coercivo para as milícias africanas do regime colonial. Muitos
corações estavam divididos, assim com os lares e as famílias que podiam ter um
tropa tuga e um irmão kambuta². Porém, aos infantes a vida corria bem,
divididos entre a escola, as férias, a pesca miúda, as caçadas, as armadilhas
aos pássaros e as brincadeiras. Fora da escola, com professores rígidos no
ensino do â-mbê-cê-ndê, as férias grandes era o melhor que as crianças viviam
de suas vidas inocentes e imaculadas.
Nos parcos momentos de inactividade militar, os pais de Kambweyo dividiam-se
entre a lavra, a pastorícia e a nembele³. Uns abraçavam-se às vihamba⁴ e outros
à arte de kukendja⁵.
Os jovens, cuidadores da aldeia e os intelectuais saídos para o trabalho
nas vilas e cidade, aproveitavam o sábado para exorcizar a dureza do trabalho o
contragosto que era combater ao lado do combatido e pôr a politica em dia. Era
dia da Voz de Angola⁶.
No momento em que a aldeia de Kambweyo se mostrava vazia, Borges, um DGS,
barba aparada, óculos escuros em tarde cinzenta, fez-se à Aldeia, interceptando
Arlindo e Agostinho, meninos a contar 3 e 6 anos que brincavam à corrida de
jante.
- Então, estão bem?
- Sim, chefe.
- Aonde foi vosso pai.
- Papai wanda ko kacipembe7.
Borges, um DGS/PIDE com já muitos anos de Angola, conhecia os códigos, as
expressões mais frequentes e os lugares.
Era um tempo em que a metrópole concorria para o lugar cimeiro de maior
produtor vinícola da Europa. Os destilados locais que haviam sido remetidos à
preciosidade da clandestinidade estavam "terminantemente proibidos" e
caçados os seus fabricantes e utilizadores.
Nas aldeias do Vye, os jovens de então os haviam rebaptizado de kacipembe. Nome
que soava cipembe8 aos ouvidos de caçadores de desgraça alheia.
Borges, confuso, sacou dois rebuçados da sua sacola e voltou a aproximar-se dos
dois primos que empunhavam cada um deles uma jante de bicicleta com que
ensaiavam corridas de uma ponta a outra de Kambweyo.
- Ó meninos, venham cá. Tenho rebuçados para vocês.
Enfiou a mão ao porta-luvas e de lá retirou a sacola na qual guardava as
guloseimas. Escolheu duas unidades e emendou:
- Se quiserem amêndoas também é só dizerem. - Adoçou.
Agostinho, o mais velho, dois anos à frente e Arlindo com cinco anos,
aproximaram-se desconfiados. Filhos de irmãos assimilados, falavam português,
mas estavam treinados: com branco, mesmo amigo dos papás, resposta é só em
Umbundu.
- Então, digam lá outra vez. Vocês são irmãos de mesmo pai e mesma mãe.
- Hum-hum. - Abanaram as cabeças em jeito de negação.
- Então aonde foram vossos papás e os amigos de vossos papás. - Indagou o
agente Borges, conhecido na aldeia, por causa da sua Land Rover branca com
carroça coberta de lona que já levara para castigos na cidade jovens e adultos
daquela aldeia.
- Vatete vanda ko kacipembe9. - Voltaram a responder os petizes.
Confundindo kacipembe e cipembe, Borges meteu-se, sem caça, a caminho da
cidade. Os meninos e os jovens de Kambweyo tinham ganho o dia, enquanto o
agende da PIDE/DGS registava mais um fracasso nas suas tentativas de prender e
molestar os utilizadores de destilados locais.
=
¹- Terreno agrícola em sistema de repouso (Umbundu).
²-Guerrilheiro do MPLA
³- Igreja (Umbundu).
⁴-Adereços mágicos, mixórdias (Umbundu).
⁵- Destilar (Umbundu)
⁶- Programa radiofônico do MPLA emitido a partir de Dolisie, República Popular
do Congo.
⁷- Bebida destilada à base de milho, cana e outros produtos).
8- Terreno agrícola em sistema de repouso
(Umbundu).
9- Os papás foram beber
kaporroto/kacipembe.
=
N1- Adaptado de uma estória contada por Agostinho Lopes.
N2- Publicado pela GAZETA-Lavra e Oficina, UEA, 2021
domingo, 4 de julho de 2021
NÂMBWA, AVÓ TETÉ E O IFA VERDE
Havia nebulosidade no ar. Aliás, dois tipos de nevoeiro: a tentativa de condensação do de partículas de água suspensas no ar e a nuvem preta levantada pelos ngulu[1] que grunhiam nas matas e nas aldeias, a poeira levantada pelas pessoas andrajosas e irreconhecíveis à chegada e a poeira levantada pelos Nâmbwa[2] e IFA's que se atreviam naquele troço que nos conduz ou nos traz de Muxi-a-lwandu[3].
Avó Treza, oitenta e tal anos nas costas, embora contorcendo-se com dores
da idade, estava determinada em ir a Caxito, sede provincial, fazer o seu
"estou viva"[4]
junto do banco das enchentes e dos antigos combatentes. Tinha sido pioneira em
Kaji Mazumbu[5], onde se alistou
adolescente e ficou até ao tunda mindele[6].
O dia, como dizia, era friorento e tristonho, mas avó Teté, como também é
chamada, meteu-se mesmo assim a caminho. Meteu-se num Nâmbwa, da sua aldeia de
Kingimbi até à vila de Muxya[7],
50 quilômetros mais ou menos, para apanhar a guia da delegação municipal dos
antigos guerrilheiros. Do Muxya a Caxito, outros cento e tal quilômetros,
encimando a carroça do IFA carregado de sacos de macroeira[8]
e longos cachos de banana.
Era verde, a perder cor, as pessoas, às vezes, não sabiam ao certo se diziam cor branca esfregada em capim verde dos atalhos ou verde acastanhado da poeira do asfalto ausente. O IFA 50, nos tempos da guerra tratado amável e diferencialmente por IFA industrial, tirando algumas “madres” já cansadas, carros abatidos pela polícia e forças armadas, raros aventureiros que entregavam à destruição suas máquinas novinhas saídas de cidades distantes e os famosos Nambwa, era único, dia sim, semana também, naquela estrada recortada entre um asfalto esburacado e uma picada a reclamar de garganta seca por um pouquinho de asfaltite, qual rico a Lázaro. Para avó Teté o IFA que a levou era verde-cremoso.
Por causa dos saltos e da velocidade de camaleão, a idosa chegou aborrecida, embora nunca tenha escondido a sua simpatia, os caninos e incisivos que ainda desfilavam na boca e o seu verbo refinado quando fosse para comunicar as suas ideias, suas experiências e seu sofrimento nas matas do Kaji Mazumbu.
Caxito, a capital do Bengo, é, aos olhos dela, "vila pequena com rua e
meia, sendo a vertical longa para pedestres, esticando-se da açucareira ao
açude, e uma transversal que uma criança de cinco anos corre em minuto e
meio". Avó Teté passou pela delegação dos antigos guerrilheiros onde
renovou a foto. Era já conhecida. Alguns "meninos" que lá trabalhavam
eram filhos ou netos de antigos companheiros de avó Teté, por isso não
encontrava demora e nem era exposta à fila.
No banco da rede azul, avó Teté chegou aprumada. Trocou o pano sobre o
ombro, endireitou o lenço, ajeitou e limpou as sandálias de cabedal e fez-se à
fila dos mais velhos.
- Bom dia camaradas. Espero que estejais bem. - Saudou sorridente.
Os presentes retribuíram a vênia com alguns comentários dóceis. Um dos que
se encontravam na fila, reconheceu-a pela doçura e expressividade da voz, quase
locutora se fosse ao Voz de Angola, no Congo de Ngouabi.
- Camarada Teresa, bom dia. Quando saiu de Nambuangongo? Eu sou o sargento Cardoso do Mazumbu, o segundo logístico da primeira leva. Lembra-se?
- Que belo reencontro, meu camarada. Tenho muito gosto em vê-lo vivo e
saudável.
Aproximaram-se e beijaram-se. Dois beijos com as distâncias bem medidas.
- Como vai a sua família? Mulher, filhos, netos e bisnetos, quantos? -
Provocou a camarada Teté.
- Pois é, camarada guerrilheira, os filhos estão aí, a caminho também da
velhice. Os netos na busca do emprego que não há. Os bisnetos a crescer. Acho
que, juntando-os todos, já dava para um destacamento.
Sorriram durante alguns instantes. Se não fosse a educação e o pudor,
teriam mesmo mostrado os mabwim[9].
- Tornei-me viúva. Os filhos andam entre o Nâmbwa e Luanda. Os netos idem.
A tua estória, as tuas lutas, a esperança que tivemos nas matas bombardeadas
com napalm, as frutas que disputávamos aos símios, a contribuição à edificação
da nação, as incompreensões pós independência, o descaso a que se votou as
aldeias revolucionárias do Nâmbwa e a desilusão é tudo. É tudo similar,
camarada Cardoso.
- É sim, camarada Teté. Aprendemos que a luta era para o benefício futuro.
Um país sem exploradores, igualitário, com escolas, hospitais e oportunidades
... - Recordou Cardoso.
- Sim camarada! A nossa luta é até ao fim. Até à ultima gota é esperança.
E foram conversando, recordando, com passagens pitorescas pelo meio, assim
como o cronista repleta o estômago da sua prosa. Chegou a vez da avó Teté que
se encontrava na fila feminina das "pessoas de idade" como os jovens
tratavam os idosos daqueles tempos da terceira República. A agência estava
cheia, porém alegre. A avó Teté com o seu refinado linguajar era,
efectivamente, uma rosa naquela floresta humana.
- Seu nome, avó? - Perguntou a funcionaria bancária.
- Chamo-me Teresa.
- Sua idade, avó?
- Conforme o Bilhete de Identidade. - Respondeu a octogenária, num
"bom português', ao mesmo tempo que esticava a mão que continha o
documento.
A jovem conferiu, o nome, a filiação, o local e data de nascimento e a
altura. Porém, esqueceu-se de ver a assinatura.
No fim do preenchimento da ficha, sacou da almofada com tinta e procurou
explicar que dedo a idosa mergulharia no tinteiro.
- Avó esse dedo, aqui, o indicador, é que vai meter assim, e estampar
assim?
- O quê? - Questionou meio revoltada a idosa.
- Sim, avó é para assinar.
- Não, não minha netinha. Estudei e ensinei alunos no tempo da ardósia.
Dá-me cá uma caneta que eu assino.
Um idoso que se achava ao lado, já com sua conta actualizada, rápido se
prestou em esticar a caneta que a avó Teté segurou com toda a delicadeza, como
se fosse desenhar uma flor novembrina e, com sua caligrafia de pôr inveja a
doutoras de seis pancadas, assinou legivelmente o seu nome.
Teresa Miranda Lopes.
Estupefacta, a rapariga, vinte e tal anos, quase se ajoelhou em súplicas e
pedidos de perdão.
- Ngiloloke kuku. Ngakudyondo[10].
Velha Treza, crente metodista confessa e convicta, pôs-lhe a mão sobre a
cabeça e desatou:
- Fica com a minha bênção netinha. Não fizeste nada de mau.
==
[1] Porco
(do Kimbundu).
[2] Triciclo
motorizado com carroça para transporte de bens. Em algumas regiões de Angola
transporta pessoas e bens,
[3] Do original
muxi=árvore; lwandu=esteira: árvore onde se confeccionam esteiras.
[4] Prova de
vida. Acto anual para que idosos continuem a beneficiar da pensão.
[5] “Primeira”
base de guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola na região de
Nambuangongo. Alguns idosos da região atestam ter sido criado entre 1962 a 63.
[6] Alusão à
saída dos colonos brancos; independência.
[7]
Corruptela de Muxaluando, sede municipal de Nambuangongo, município do Bengo.
[8] Mandioca
demolhada e posteriormente seca. Serve para a feitura de fuba ou farinha de
bombô.
[9] Espaço
sem dente. Desdentado.
[10]
Perdoe-me avó. Peço-lhe perdão (do Kimbundu).