sábado, 24 de dezembro de 2022

KATEMBA KEVALA O "CINCO LITROS"

Nasceu algures. Longe no tempo e na geografia. A Lunda foi terra de desterro, no tempo dos contratos camuflados, pagos com fuba rejeitada, peixe podre e porrada, se refilasse. Kaputu estava no poder e o mumbundu de abaixo da vida de um cão colonial morto de sarna.

Vila Luso e Vila Teixeira de Sousa são os únicos nomes de terras distantes de que se lembra. A sua embala, no planalto do Vye, é desconhecida do mapa mundi e por mais que a grite ninguém dela tem memória. Longe da terra, dos pais e dos folguedos de juventude mutilada, passeiam-lhe no pensamento apenas os pássaros, as danças à volta da fogueira com aquelas kafeko de seios encajuados e o cheiro da chuva. Sim, o cheiro da chuva caída na madrugada do dia da desgraça.

Pelo Luso apenas passou quando fez a sua primeira viagem naquele comboio movido a brasas de eucaliptos. Pela Teixeira de Sousa apenas parou para ser acorrentado ao pescoço com outros vyenos e conduzidos à Bed Ford que os levou à vila Henrique de Carvalho, escala para Portugália, numa empresa de diamantes.

- Meus akunlu, meus antepassados, meus espíritos - cantava dia e noite quando folga houvesse – mostrem-me onde estou e que caminho devo tomar para regressar ao kimbu.

Os amigos, outros contratados mbalundu, alcunharam- -no de «Cinco Litros». Seu nome, Katimba Kevala, há muito tinha caído no esquecimento. Na roça, na mina ou em casa de um patrão ocasional, carregando picaretas ou cascalho, Katimba Kevala levava sempre uma mochila às costas, na qual estava alojado um garrafão de cinco litros repleto de kacipembe ou walende. Uma cortiça evitava a evaporação e o entorno do destilado que lhe chegava à boca através de uma canalização arrojada.

Um dia, quando chamado para capinar o terreno à volta do posto de socorro da Companhia Kamanga, encontrou já umas tubagens minúsculas que servem para canalizar o soro fisiológico.

Chegado à casa, juntou a arte ao engenho e do garrafão alojado na mochila à sua boca foi meio caminho. Qualquer biscate em casa de gente com dinheiro servia para abastecer o seu garrafão de cinco litros.

Aguentou os dois anos de contrato, uma forma de moderna escravatura luz-e-tana, como peça de trabalho força- do. A dureza do acampamento fê-lo construir uma palhota com duas divisões: o dormitório e outro que chamava de cozinha. Na verdade, não passava de quatro paus planta- dos no solo, um tecto de capim e uns ramos barreados que travavam os bichos acossados pela chuva e os ventos mais violentos do Nordeste.

Resistiu às mulheres mais adornadas da região e às kaxinakaji carentes de calor. O seu calor era o conteúdo do seu garrafão de cinco litros. Esse sim, era o seu melhor amigo e consolo em dias de má memória.

Embora ferido na carne e na mente, Katimba Kevala guardou sempre o sonho de liberdade, a esperança de ver os seus semelhantes na posição dos brancos que mandavam, que queixavam à administração, que batiam de forma indiscriminada, que faziam do corpo do negro seu saco de treinos. E fez um plano.

-No dia do pagamento. Ekumbi lyo kufeta ekumbi lyange. (O dia do pagamento é o meu dia). E comprarei caçadeiras e pólvora. E inverteremos as bandejas. Treparemos montanhas. Gritaremos alto também. Era sua canção encriptada em língua gentílica. Poucos a sabiam decifrar.

Os homens trazidos pelo comboio estavam visivelmente esgotados e as mortes eram notícia constante. A farmácia já registava uma gritante carência de antibióticos e, mais dias menos dias, aquela colónia estaria sem homens. A companhia decidiu chamar o intermediário, também conhecido como contratante, para pagar os escravos e levá-los de volta. Em substituição pediu homens fortes. Mbalundu jovens que não tenham desperdiçado vidas no walende ou kangonha. Lopes da Sé, o funante para seus conterrâneos, era o homem que percorria as al- deias interiores com cipaios à caça de nativos, cuja força de trabalho vendia aos belgas e ingleses da Companhia Kamanga. Foi chamado pela companhia para receber a paga: a sua e a dos serviçais mbalundu.

Cinco Litros tinha acabado de chegar do alambique quando foi avisado que o pagamento e o regresso estavam para dias. Colocou-se junto ao muro do quintal de Lopes da Sé que não demorou em chamá-lo para arrumar as imbambas que levaria à nova missão de rapina.

«Cinco Litros» atento ao trabalho e aos detalhes do que ia acontecendo em casa do luz-e-tano Lopes da Sé, assistiu à chegada da mala de dinheiro que o angariador de escravos modernos escondeu de baixo da cama. Findo o trabalho, fingiu despedir-se e rumar à sua palhota. Mas apercebendo-se da saída de Lopes para festejar a mala cheia e tomar umas imperiais com o primo que chegara da metrópole, Cinco Litros abeirou-se da casa e fez-se cama abaixo, levando para um esconderijo que abrira na sua cozinha a apetecível mala do pagamento.

A noite foi de rusgas e interrogatórios. Todos os contratados e empregados livres estavam sob o olho da pidesca judiciária. As saídas foram suspensas e as compras nas lojas sob o olho atento do comerciante que tinha um menino pronto para avisar a polícia. Os que apresentassem notas de cem angolares eram automaticamente despojados do valor e encaminhados à administração, onde eram recebidos com valentes palmatórias até descobrirem o que não fizeram.

Cinco Litros manteve-se tranquilo. Foi gastando as no- tas inferiores nos seus alambiques, uma a uma. As maiores levar-lhe-iam a cumprir o sonho guardado a sete chaves. Fazia o seu trabalho diário e nunca a polícia desconfiou dele. Viveu à grande, na sua pequenice, mês e meio, até que as cédulas inferiores se esgotaram. Aos seus consortes dizia apenas que estava a "gastar o fruto do seu trabalho durante dois anos de penúria.

-Estou a consumir o meu sangue e o suor de anos de escuridão.

Ninguém o levava a sério, dado o seu estado de kacipembado permanente.

Sem dinheiro miúdo, Cinco Litros levou uma cédula de cem angolares ao alambique de Kexilemba, mulher respeitada na Lunda. Pediu para que a trocasse em notas miúdas que gastaria inteirinhas na sua destilaria.

-Vou tentar – Concordou a mulher, católica praticante e temente ao Deus trazido pelos colonos.

A mulher tentou e acabou detida. Os seus negócios conhecidos pelos brancos da companhia permitiram sus sol tura. Mas a nota retida ficou.

Era sábado. Lopes da Sé e o administrador Xavier Martins estavam insatisfeitos em ver o tempo passar sem que uma pista sobre a mala do pagamento tivesse sido encontrada. Um padre bufo foi recrutado sacristia adentro. Kexilemba, domingueira, foi ao confessionário do padre pide.

- Filha de Deus, como vão seus negócios? - perguntou o padre pidesco, procurando conversa.

- Os ningócio vai bem, sô padre.

- Então conta-me quantas notas de cem angolares recebeste nesta última semana.

- Só uma, sô padre.

- E de quem recebestes os ricos angolares? É voz de Deus que te pergunta, minha filha.  

- É do Cingo Litro, sô padre...

Enrolada pelo padre, Kexilemba o segredo do dinheiro contou. E seu irmão entregou.

Cinco Litros foi amarrado e deitado sobre a roda da Bed For. A sua sorte estava dependente do resultado do desbarate que sofreria sua casa.

Homens fortes, provenientes doutra margem do Luachimo, foram enviados à palhota do infeliz. Arrancaram o colmo e nada. Desplantaram os troncos e nada. Enxadas, picaretas e pás um metro de terra removeram.

À primeira picaretada a relva foi aos ares.

- Fogo! Fogo! Lenge-no!

Correram os menos corajosos e pasmaram-se os mais destemidos. O contacto entre metais, picareta e mala me- tálica do pagamento fez estalar uma fagulha. Estava descoberto o segredo.

Lopes da Sé encarregou-se ele mesmo de desembraiar a Bed Ford e despedaçar -Cinco Litros, cujo corpo foi alimentar os répteis famintos do Luachimo.

Não se sabe exactamente há quanto tempo ocorreu isso, mas até hoje sua fama ainda corre o leste e o trecho do rio em que foram jogados seus pedaços é conhecido como a lagoa do Cinco Litros.

Nota: adaptação de uma estória contada pelo ancião Jorge Lopes, em Mwono Waha, Saurimo, a 11 de Novembro 2014.

Publicado pelo Jornal Cultura de 15.03.2023

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O SALÁRIO DO ARLINDO E O CÁGADO DO METRO

Manhã de domingo, seis horas. O meu sono ia ainda à quinta velocidade, mas, sendo tropa antigo (que não dorme) fui a tempo de ouvir o Arlindo (13 anos por completar) a despedir-se:

- Mamã, bom dia!
- Bom dia, filho! Aonde vais tão cedo?
- Eu vou trabalhar. - Respondeu altivo e cheio de humor.
Dentro de mim, as palavras que não saíram começaram a tilintar.
- Que bom! Um filho, menor, que tem (quase) tudo e ganha gosto pelo trabalho é orgulho. Uns cultivam-se em gastar e sonhar com o que o papá vai deixar como herança. - Pensei.
No diálogo conciso que mãe e filho fizeram ainda retive outras passagens:
- Tens dinheiro para táxi?
- Sim. Ainda tenho do meu primeiro salário.
Passavam exactamente sete dias que o Arlindo havia recebido o primeiríssimo salário de sua vida. Foram Kz 15 mil que fez questão de distribuir (voluntariamente) da seguinte forma: 2 mil para a mãe (também dona da empresa), 2 mil para o papá (que acabou recebendo mil ao ver o dinheiro a acabar), e 4 mil que distribuiu para as três irmãs e ao sobrinho Joshua. É aqui que entra o cágado do Metro, um jovem da aldeia de Panga-Panga, antes do Kulangu, para quem trafega de Kanjala ao Lobito.
Em viagem para Benguela, fiquei a pensar no que compraria com a minha porção do primeiro salário do Arlindo. Devia ser algo utilitário e duradouro que levasse, quando atingir a fase adulta, o Arlindo orgulhar-se de ter começado a trabalhar voluntariamente aos 12 anos e ter distribuído o seu primeiro ordenado. Mas mil Kwanzas era coisa pouca aos preços dos "utilitários e duradouros".
Pensei depois em algo que vivesse o tempo de muitas vidas. Algo que tenho com bicho-de-estimação e que contasse muitas estórias, eventualmente até a meus netos vindouros.
Quando ia a passar a aldeia de Panga-Panga, vi sacos de carvão vegetal à venda. No local eu havia comprado, há um ano, três jabutis (semelhantes ao cágado,  mas sendo eles totalmente terrestres ao contrário do cágado que divide a terra com a água doce). Parei e gritei (disfónico) com a força que me restava:
- Aqui já não vendem mbew?¹
- Ó mano, esse tempo já não costuma aparecer. - Apressaram-se em responder as mamãs do carvão.
Porém,  da pequena kamunda², vi um rapazola correndo em minha direcção e trazendo na mão algo que se parecia a um minúsculo objecto, uma pedra, vista de longe, e gritando:
- Ó tio, está aqui!
Olhei para ele. Era um jabutizinho com uns dez centímetros de envergadura.
- Quanto é?
- É dois mil. - Respondeu a olhar para o carro.
- É a mim que deves olhar nos olhos e estipular preço. O carro é do patrão. Baixa mais o preço.
- Leva por mil e quinhentos. - Respondeu o Metro.
- Só tenho mil. - Regateei.
- Está bem pai.
Paguei e pedi que guardasse o animal até sábado, quando estivesse de volta a Luanda.
- Se durante a semana você encontrar outros,  guarde-os para mim e pagarei todos. Trocamos nomes e fui à "cidade mãe das cidades" angolanas.
Sábado, 04 de Junho, de regresso à capitalíssima, passei pela aldeia do Metro que me entregou o "cágado". Era único.
- Ó tio, não encontrei mais. Nem os meus amigos. Agora está difícil. - Explicou-se.
Recebi feliz, pela sua seriedade. Não se escapuliu. Com os mil Kwanzas do 1° salário do Arlindo, que trabalha como voluntário na empresa da própria mãe, comprei o jabuti que vai crescer, ter vida longa e ouvir contadas muitas estórias à volta dele.
=
¹- cágado/jabuti (Umbundu)
²- pequena elevação/monte.

Publicado pelo Jornal de Angola a 02.10.22