domingo, 21 de fevereiro de 2016

ENTRE (IN)VERDADES INCÓGNITAS E FICÇÃO ORAL

Antes da invenção da escrita, as artes já existiam, pois elas evoluíram com o homem enquanto ser pensante, livre e transcendental. O que é hoje literatura já teve outras formas de expressão, nomeadamente, a oralidade que conservava e ainda conserva a História e as estórias dos povos e das civilizações.

Entre nós, angolanos, a oralidade vai coexistindo com a literatura e vezes há em que se confundem. Abundam entre nós relatos da Oralidade levada aos livros e livros grafados como se fossem relatos orais sobre estórias e lendas milenares dos povos bantu e pre-bantu do nosso espaço geográfico.

Não poucas vezes, esses contos viajam nos autocarros públicos, comboios e candongueiros e, tantas outras vezes, os contos ficcionados ou verdades incógnitas almoçam nas barracas de kakusu (tilápia) e carne de caça ou mesmo nos quintais de adyakime já de cabelo algodoado e dentes cariados.
Ngaxi, Nga Madya, Manda e Isabele Gaspara são comadres desde os tempos da Kitanda do Xamavu e partilham hoje o sombreiro no mercado municipal de São Paulo. Numa de suas saídas em busca de negócios, as idosas, caprichosamente vestidas a bêssangana, pões conversa em dia, não se coibindo ante a presença de jovens com idades de filhos e netos.
- Xê, Nga Madya, sabes duma! - Atirou Isabele, meio escondida na cadeira do motorista do autocarro que geme na subida da Mutamba.
- Nada, comadre, conta. ; Respondeu Nga Madya, buscando conversa.
- Estás e ver, no Panguila, Sector quarenta e sete! Uma velhota, assim na nossa idade, mais ou menos, vivia já viúva cerca de vinte ou trinta anos. Não é que um dia desses se combina com um dikwenze daqueles trungungeros e começa já as conversa à noite?!
- Sim, mana, avança. Estamos atentas. – Intrometeu-se Manda, também ela expectante.
- Pois é comadre. - Continuou Isabele. As coisas quando aqueceram, a velhota começou a gritar “me larga vai me furar, me larga vai me furar”.
- E depois, mana, aconteceu mais o quê! - Interpôs Ngaxi que se manteve calada até aí, ante a expectativa da juventude que se continha para não rir e despertar as idosas que ficcionavam descontraidamente.
- Pois, então, prestem atenção. - Apelou a narradora. O vizinho da porta frontal, sabendo que a vizinha era viúva e vivia sozinha, julgou ser bandido que se introduziu em casa da vizinha e chamou a polícia, dando o nome da rua e número da casa. Nao é que posta a polícia no local, a velha não abria a porta?! – Isabela fez pausa para inspirar a brisa que espalhava ar fresco para dentro do automóvel.
- E ficou tudo por aí ou houve mais cena com a polícia, o intruso e a mutudi? – Indagou  Ngaxi.
_ Ouve então comadre. – Prosseguiu a narradora. A polícia, pum, pum, pum, na porta e a velhota nada! Não abria a porta, nem sequer atendia. Mas os gemidos continuavam. Afinal a conversa lá dentro entre a viúva e o muzangala já ia no ritmo do carrecto dezoito. O polícia mais corajoso deu um pontapé na porta e foram ter com os dois em flagrante delícia.
- Sukwama, Kima kyabambuka! Pegou fogo! – Atirou Ngaxi no outro canto do pesado que deslizava já em direcçao ao Zé Pirão, procurando fazer o contorno para dobrar a Cónego das Neves, em direcção ao antigo Xamavo.
- Os polícias, cordas no atrevido e mamã na cabine da Toyota para ir apresentar queixa na esquadra. - Acrescentou Isabele Gaspara.
- Mas é mesmo tua verdade, mana Isabele, ou é tua invenção! – Procurou confirmar Ngaxi que se preparava para abrir também o seu livro oral acabado de produzir.
- É verdade comadres. - Confirmou Isabele que prosseguiu a narrativa. Postos na esquadra, em vez de o muzangala explicar o que sucedeu, a própria mutudi é que foi pedir ao chefe da esquadra: filho, o jovem não me fez nada. O vizinho é que é invejoso e fofoqueiro. Ele queixou à toa, não viu nada nem ouviu sequer um gemido! Os polícias: Haka! Boca a tocar na nuca de tanta estupefação.
- E o que nós vimos então foi o quê, ó mãezinha?! - Procurou ainda saber um dos agentes policiais que foi prestar o socorro requerido pela vizinhança.
- Foi só mesmo o que viram. Não me fez violação. Foi só manutenção!
Mamãs e a juventude toda no autocarro entraram em transe. Gargalhadas de mostrar o último molar ou apenas os terreiros vazios. Ngaxi, Engrácia de registo, nascida no distante ano de trinta e cinco do século vinte, como fez vénia de se apresentar, entrou também no círculo e sacou da sua prosa.
- No meu bairro, no Kifica, a cena, que não é de mentira como essa da mana Isabele, é mesmo de verdade verdadeira. A Senhora até é minha amiga e está também já assim, sem manutenção desde que o vizinho Gasparito apanhou kikonha. Com os negócios dela de Kisângwa, banana pão, jinguma e bombó assados, arranjou dinheiro e inventou uma fórmula.
- Fórmula de quê, mana Ngaxi? Pessoa que começa cena de arranhar cabelo tem de terminar. – Apelou novamente Manda, procurando pôr mais lenha na fervura.
- Pois é, manas. Estava só a limpar o suor. – Prosseguiu dona Engrácia ou simplesmente Ngaxi. – A vizinha, certo dia, a doença de comichão lhe tocou. Bebeu água fresca e nada. Tomou banho de água natural, de água morna e de água gelada e também nada! Fazer o quê? Chamou um daqueles meninos que transportam água em troco de bebida. Xê muzangala, não queres birra? Perguntou a “kaveia” toda sacudida. Até o Português dela parecia duma mocita do colégio.
- E o moço, mana Ngaxi? - Perguntaram expectantes as amigas.
- Esperem que já lá chego. – Acalmou Ngaxi. O moço trouxe um, dois, três bidons de água. Na hora já de cobrar o que era seu, portanto as cervejas, a velhota lhe diz: só queres mesmo beber, não queres te lavar? O moço fez sinal de mais ou menos. Na verdade ele queria mesmo é só beber cerveja dele e ir fazer mais outros kadyenges mas aceitou já tomar banho por causa do respeito e dos sabonetes caros que a velha lhe mostrou com ele.
- É verdade mesmo, dia de sol negócio de água é que bate. - Interrompeu  Isabele Gaspara. Mas foi Ngaxi quem prosseguiu, depois de mais uma pequena pausa na narrativa.
- O  moço bebeu a primeira e a segunda. A tia fez pausa e sugeriu: queres mais duas? Vai tomar banho e depois a avô acaba de te pagar. Não é que o moço aceitou a proposta?!
- E depois? - Interrogaram, quase em coro, todas as senhoras vendedeiras do mercado de São Paulo que se faziam transportar naquele pesado.
- Enquanto o dikwenze se lavava, usando os sabonetes e cremes da anfitriã, a minha amiga, que não vos digo o nome dela, fez-lhe uma comida leve e meteu na mesa, ao lado de uma ngala de vinho. O rapaz também parece já estava a sentir o cheiro a sair da cozinha e, vendo que não estava aí mais ninguém, atacou e quase mordia a língua. Zás. Piteu foi-se todo na barriga que começava a ganhar volume.
- E se foi embora, mana Ngaxi, ou houve mais? – As comadres pareciam adivinhar o fim da odisseia mas preferiram devolver a palavra à narradora que contava com mais retoques e acepipes.
- Não é que o moço depois de comer queria já sair voado? A velhota lhe perguntou: não queres enxaguar a boca com uma birra?
- E ele? - Atirou  Nga Madya procurando precipitar o final.
- Ele aceitou, mas a vizinha Inês, já com a birra na mão, fez a última proposta: Agora bebe a avô e depois bebe a birra da porta!
- E bebeu ou saiu voado? – A pergunta, meio descontrolada fez-se ouvir por todo o autocarro.
- O jovem ainda a gaguejar, pois procurava digerir aquelas palavras e tomar uma decisão, rcebeu da idosa a sentença final: acaba de me matar!..
Não houve tempo para mais perguntas. Só gargalhadas.

Obs: texto publicado no Semanário Angolense de 27.11.2016

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A REFORMA TERRITORIAL E A BUSCA DE NOVAS OPORTUNIDADES


Fazia tempo que a sua vida era matar kasumunas enquanto a mulher treinava atletismo nas ruas da zunga com os fiscais administrativos. Embora não os lesse, Ndinha comprava sempre, no fim da sua jornada, um exemplar do jornal diário que oferecia ao marido que viajava de imediato as paginas de necrologia e anúncios sobre empregos.

No dia em que se anunciou a possibilidade de se aumentar o número de províncias e municípios, a cidade toda, as rádios, jornais e televisões não falaram de outra coisa senão a possibilidade de os maridos terem mais empregos e as senhoras da zunga mais espaço e territórios para vender. Ndinha que estava cansada das corridas nas ruas da Grande Capital já tinha esboçado o seu plano e cochichou mesmo às amigas que não perderia a oportunidade de se mudar daquela cidade, caso o assunto fosse levado a sério pelas instâncias superiores e pelo marido que matava kasumunas há já três anos, desde a desmobilização da vida kwemba.

Posta em casa, antes mesmo de contar as receitas do dia, Ndinha passou o jornal a Jota que consertava o fofandó que parara de gritar a sua dor de tanto uso por falta da energia da rede pública.

Pelos fundos do quintal, onde Jota se encontrava, não tardou surgir o grito de alegria:

- Ndinha, minha mboa, amarra o cabrito e as galinhas que estão na capoeira. Vamos procurar chefe Kapwete.

- Quem é esse Kapwete, Jota?

- Mulher, não esquenta. É irmão do chefe Kamundanda. Vamos. Há novos cargos na Libaju. Não ouviste que país vai aumentar? Temos de nos apressar se não vamos “lerapiar”.
- Mas, cargo então aonde, Jota. Coisas que explicas nunca só ficam esclarecidas. -Resmungou Ndinha.

- Vamos. Prepara as crianças e podes também avisar as tuas colegas que queiram singrar longe de Luanda. Vão criar 3 novas províncias, 75 municípios e sei lá quantas comunas. Já imaginaste quantos vão subir? É vida!

- Jota, é mesmo já você que vai subir?- Tentou contrariar Ndinha, na sua manina de “só para contrariar”.

- Eu não porquê? Eh? Não porquê?! Já não sou secretário executivo da Libaju? Aponta aí. “Se tenta” e oito novas circunscrições, vezes 17 comissários eleitorais, sem contar os departamentos e secções, administradores comunais, os “lima-unha”, os “joga-cartas de baralho” e os “leva-mala” do boss. Três províncias, vezes trinta directores, três vice, o staff e dependentes, os assessores… Jota fez pausa para levar ar fresco ao peito que reclamava água fria, devido à ressaca do dia anterior. E prosseguiu: “se tenta” e cinco administradores municipais e seus adjuntos, mais o staff das repartições... Dizem que até os deputados vão subir para 135. Vamos, não me faz perder mais tempo e oportunidade. Temos que levar o cabrito e as galinhas ao chefe Kapwete que está a fazer a lista. O período de recrutamento é curto e temos que aproveitar agora que os tubarões estão ainda na distração das festas e a engordarem com os cabazes. Vamos!

- É verdade mô Jota, mô amori. É mesmo muita vaga, Jojó. Vou também avisar a mana Miquilina, minha chefa-adjunta na Anazunga. Ela também estudou até à quarta classe do tempo de Agostinho Neto. Sabe ler, escrever e fazer contas de dinheiro. Ninguém lhe aldraba na tabuada!

- Sim dama. É muita vaga mas também muitos dos môs avilos ainda sem função, vivendo de “mixas” ou das damas como tu. Essa é a oportunidade da nossa salvação.- Respondeu Jota.

- Sim amor. Haja o que hajar, dessa vez ninguém mais nos kasumbula. Vamos, antes que as vagas dos municípios acabem. Nas províncias assim já se tombwelaram, mas nos municípios e comunas ainda deve sobrar. – Respondeu Ndinha com o kasula às costas, o filho mais velho agarrado à saia e puxando o cabrito pela corda. A galinha, o pato e um casal de pombos estavam na quinda que seria ofertada ao boss das listas.

- Vamos aproveitar o período festivo de natal e ano como motivo da oferta. Assim, o chefe Kapwete não alega “motivos de ordem moral” para recusar as ofertas em troca de umas vagas num dos novos municípios ou comunas que estão na forja.

- Vamos Mô Jota, homem vijú.- Respondeu Ndinha entusiasmada.

A família partiu, deixando para trás a casa arrendada na Fubu, e as dívidas das birras por saldar. Se vai dar certo ou errado ainda ninguém sabe porque o tal anúncio no jornal não passou de uma antecipação do dia das mentiras, 01 de Abril. Como não se despediram dos vizinhos nem levaram a pouca mobília, que Ndinha foi juntando com o dinheiro da zunga, ainda podem voltar a casa na maior tranquilidade. Há porém um mujimbo que corre e que aumenta a expectativa do casal.

 Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense em 2015.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

CONTÍNUOS DO ANTIGAMENTE


Durante o meu percurso académico conheci na escola Ngola Mbandi, ex. Liceu Emídio Navarro, dois homens, dois contínuos sem precedentes. Um atendia pelo nome de Ti Pacheco, Domingos de nome próprio, e outro era o Ti Luís. Eram, na verdade, idosos que atendiam ao papel de pai ou de tio para todos os alunos da Escola do II e III níveis a que me reporto.
Depois de longos anos a trabalhar na Secretaria da instituição, Domingos Pacheco, que morava na Rua de Ambaka, no Rangel, entendeu viver a pré-reforma, servindo de contínuo, zelador do património escolar e conselheiro de toda a comunidade escolar (direcção, professores e alunos).
Era a ele que os novos directores se dirigiam para conhecer os cantos da escola, a cultura organizacional reinante e os trabalhadores, desde os mais antigos aos neófitos. O Ti Pacheco também conhecia os alunos, quase que nominalmente. Aos mais inteligentes costumava catalogar em nome, morada, classe a frequentar e disciplinas em que era melhor dotado. Na secretaria, contaram-me, o Ti Pacheco conhecia os livros de cor, desde o tempo do colono aos anos 90 do século XX. Bastava dizer-se o nome e ano de matrícula para que ele encontrasse o livro, extraísse os dados e passasse, em tempo record, o documento solicitado.
Quando as forças para subir e descer o escadote que o levava aos livros mais antigos da escola começaram a fraquejar, o Ti Pacheco decidiu ser zelador ou contínuo. E foi já nessa sua nova e importante função para a harmonia do clima escolar que o conheci. Tocava o sino pontualmente que até os homens que viviam na periferia da escola acertavam os seus relógios ao som do toque do sino. Recebia e encaminhava os encarregados de educação e visitantes à direcção, secretaria, e aos professores. Na sua cadeira, em frente à porta da instituição ou no jardim escolar, recebia os alunos com dificuldades em fazer as tarefas ou até aqueles que buscavam por outros conselhos. O Ti Pacheco, que tinha um domínio de Aritmética e Língua Portuguesa, dirigia--os, quando a questão estivesse longe do seu alcance, aos alunos brilhantes da sua lista ou indicava os livros para consulta. Foi nessas circunstâncias que fiz muitas amizades com rapazes e raparigas que já arrotavam bacalhau e bife, numa altura que boa parte dos “rangelistas” não passava do "revolucionário" arroz com peixe frito ou “ngongwenya” ao mata-bicho. A ele se deveu a difusão do meu epíteto de “o menino que corrigiu o livro de matemática”.
- Ó pioneiro, toma cuidado. Você que é esperto na escola não se deve meter com esses kazukuteiros que só vêm por obrigação dos pais.- Aconselhava. O ancião servia também de conselheiro para aqueles que estavam já na fase dos engates.
- Você que estuda bem tem que ficar com uma miúda também com juízo. Dois a se formarem e a trabalharem sustentam bem os “môs” netos.- Dizia, meio sério, meio a brincar. E não é que os seus bons conselhos resultaram em muitos casamentos, sendo ele, muitas vezes, padrinho?
Uma vez, depois de uma tertúlia sobre História, no jardim interior do Ngola Mbandi, o tio Pacheco passou ao ataque:
- Ó pioneiro, Você mora aonde?
- Moro no Rangel, tio Pacheco. Moro mesmo na sua rua.- Respondi-lhe receoso do que teria de ouvir. Na “trambiquice” da adolescência, nem sempre nossas acções satisfazem os mais velhos.
- Você é filo de quem?- Voltou a questionar, aumentando mais ainda o meu receio, levando-me a pedir uma licença para fazer xixi.
- Responde ainda filho, depois vais para o teu recreio.
- Sou filho da dona Maria que vive ao lado da pracinha do Kalisange.- Respondi, já com as mãos a apertar a “kimeta”.
- Ah, pois é. Então você é da Kibala, não é?
- Sim. Não, ti Pacheco.  Somos do Libolo.
O mais velho que se apercebera da minha “kagunfa” esboçou um pequeno sorriso e passou sua mão pela minha cabeça para me acalmar.
- Boa gente, os de kalulu. “Akwa Lubolu adya Jinyoka (os libolenses comem carne de jiboia). É ou não é?
- Sim, tio Pacheco, mas eu nunca comi ainda.
O Idoso puxou da sua pasta uma esferográfica e deu-ma de presente.
- Você é bom rapaz. Pioneiro esperto, estuda muito para ajudar a mamã. Está bem?
- Sim, Tio Pacheco. E despedimo-nos. Estava a terminar o ano lectivo e a minha sétima classe.
Tempos mais tarde, quando foi reformado, o Ti Luís, outro morador do Rangel, Rua 24 da Comissão, que trabalhara até então na Secretaria da escola com a mesma perícia do Ti Pacheco, tomou-lhe o lugar de contínuo da escola. Luís e Pacheco, ambos de Katete, pareciam ser da mesma escola e com o mesmo aproveitamento. Depois de reformado, o Ti Luís montou uma papelaria em sua casa onde o visitei várias vezes com o pretexto de comprar material escolar (cadernos, esferográficas, cola, etc.). Era a forma encontrada para uma conversa com o avô que não tinha e obter os seus conselhos de graça.
Quanto ao Tio Pacheco, vivia humildemente na sua casa, na curva da Rua de Ambaka onde muitas vezes o provoquei amistosamente.
- Como está Tio Pacheco de Katete?
- Ó, meu filho! Estás bem? Sempre com juízo?
- Com os vossos sábios conselhos e na Graça de Deus. - Respondia-lhe descontraído.
Domingos Pacheco chegou mesmo um dia, já aposentado, a chamar-me para uma outra conversa. Já à entrada de sua casa. Apanhou-me num dia de fome, procedente do Instituto, mas inclinei-lhe o ouvido e bebi de sua sabedoria.
- Estás a ver aqueles miúdos?- Indicava ele para uma quadrilha que passava cantarolando e fumando. Ninguém precisava de mais dados para automaticamente os catalogar de amigos do alheio. 
- Sim Ti Pacheco. vi-os saírem, da casa da vida, aí no "Beco um". Ajudei.
- Pois é. É isso que está a estragar a miudagem, meu filho. Toma Juízo. Se quereres mulher, pega uma e apresenta-te aos país da "kalumba". Essas casas da vida são desgraça. É kangonha, é doença, é tudo de mau. Estás a ouvir bem?
- Sim, Tio Pacheco. Estou atento e a anotar na cabeça os seus conselhos. - Emendei a seu contento. 
- Então vai com Deus e continua com o juízo que te conheci com ele no Emídio Navarro ( o ancião, dificilmente pronunciava o novo baptismo do liceu que se passou a chamar Escola do II e III níveis Ngola Mbandi em homenagem a um "grande homem" da nossa luta de resistência anti-colonial).  
Soube de um neto que se tornara também meu amigo que o Tio de todos os alunos do Ngola Mbandi já não vive. Nos últimos tempos da sua vida de reformado decidiu ocupar-se da pequena agricultura. Numa noite de infortúnio, uma parede desabou e causou-lhe ferimentos de que não resistiu.
- Meu avô morreu de parede. Disse, sarcástico, o “sacana” do Milton, como diria o tio Pacheco.
Haverá ainda nas nossas escolas contínuos como o tio Luís e o tio Pacheco?
Me parece que a fábrica fechou!
 
Texto publicado pelo Semanário Angolense a 21 de Agosto de 2015.