quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

ATENTADO AO PUDOR NO DESFILADEIRO DO AMOR

O boné policial estava esquecido na ponta de um arbusto cortado para alimentar fogueira e cuja cercania guardava a descarga intestinal de alguém que na véspera se alimentara de milho.

Sa Ufuku caminha à frente dos filhos e sobrinhos, em coluna, apesar de poderem andar aos pares. Cimene-mene, o filho kasula, foi quem viu o chapéu.

- Apanhar não é roubar gritou, fazendo atenção de se dirigir ao achado, que estava a metro e meio da picada.

- Xé! Toma cuidado. Não sentes o cheiro que vem da mata? Deve haver aí qualquer azar. Deixa o chapéu e vamos embora. Está a nascer sol. - Alertou o ancião, tentando despistar o filho de uma desgraça. 

«Deve haver cadáver por perto», pensou sem o dizer.

Traquina, Cimene-mene, fazendo descaso do aviso do velho, deu um salto e pegou o boné.

- É meu e ninguém me recebe.  -Alertou.

- É da polícia.  - Disse-lhe o primo Lwanya.

- Então deve acontecer qualquer coisa estranha aqui. Assim o autor dessa pouca-vergonha é polícia?! Vou apresentar queixa na esquadra. –Desabafou Sa Ufuku, endireitando o cachimbo na boca.

O desfiladeiro do amor, caminho que trilhavam, é uma linha longitudinal de 2,5m de largura. Foi assim apelidado pelos jovens que o frequentam para seus namoricos longe dos pais e dos incómodos da polícia, que proíbe aventuras amorosas em viaturas nessa zona.

O desfiladeiro parte da Estrada Nacional para sítio incerto. A única certeza que se pode inferir é a de que ele não atravessa o Lwacimu que se apresenta à sua frente, numa distância de três a quatro quilómetros. O rio rosna cansado de tanta caminhada solitária ainda pela frente e de tanto desrespeito que tem de aturar até se afundar no Kasay que o

morre no Nzadi e este no grande Kalunga-Lwiji. Pelo percurso deixa lágrimas e alegrias. Leva detritos também e aos magotes.

No desfiladeiro do amor, lebres e humanos revezam-se na permanência e nos actos procriativos. Os primeiros mais ao estilo e ambiente natural. Os segundos encapuzados pela noite e pela distância. Estes, trancados em máquinas rolantes, embaciam vidros na noite fria de Agosto e, mesmo com fome de carne, não se entregam à vontade de caçar carne tenra de lebre nutrida. Afinal, é carne fresca que levam consigo, nas viaturas de luxo cedidas pelos patrões. Nessa paz amorosa, lebres e láparos ainda trôpegos dão azo aos seus zigue-zagues banhados pelas luzes que se perdem no matagal nordestino.

As orgias são nocturnas, assim como as lebres são noctívagas, e acontecem longe dos olhares da polícia que só de vez em quando, ao meio do mês e ao final de semana, quando o pão e a gasolina se tornam raros, se dirige ao desfiladeiro para surpreender alguns incautos apaixonados, negociando a soltura daquilo que no dizer dos homens da farda azul é «motivo de prisão imediata».

É assunto ocorrido na mata e tudo deve ficar resolvido aqui mesmo, concorda-se previamente.

- Aceito a proposta, senhor polícia. Só discordo da inoportuna visita, quando estava já na hora «H». Pior que tudo é ter-me estorvado e por cima me aplicar multa. Onde é que já se viu isso? – questiona o desfilador.

- O senhor atentou à moral pública...

- Moral pública?! Como assim?! - É moral pública sim e o senhor não tem nada que reclamar. Essa é uma via pública, construída para as pessoas passarem e não um sítio de imoralidade.

- Namorar é imoralidade?! O senhor não namora?

- Ó senhor, haja respeito. Eu tenho mulher e não sou como o senhor que deve estar com uma miúda que não é sua senhora.

- Senhor polícia, respeito-o e exijo o mesmo respeito. Primeiro, é que a via é privada. É do dono do terreno da quinta que deve existir lá mais adiante. Segundo, o senhor vai ter de me provar que a menina não tem compromisso comigo. Terceiro, o senhor mente quando diz que não namora, porque mesmo com as senhoras lá de casa também se namora.

A equipa do autuante continuava na viatura de carroça aberta, a espera do produto da caça. Uns aproveitavam fumar, enquanto um outro se tinha metido na mata, se calhar, para se desfazer da comida triturada pelo estômago.

E o debate prosseguia entre os dois homens.

- À noite aqui só passam lebres, senhor polícia. – Argumentou o desfilador.

- Então é atentado ao pudor. – Sentenciou o agente, já com os documentos do autuado no bolso da sua farda desbotada e a reclamar substituição, para forçar a «gasosa ou o «saldo».

- Discordo senhor polícia. Pudor das lebres ou dos colegas frequentadores do desfiladeiro para o mesmo fim que me trouxe? Isso que está a fazer, senhor agente, é ilegal e sem respaldo na lei.

- Ai é? Queres evocar lei aqui? Então vamos à esquadra. – Ameaçou o agente.

- Como é que vamos à esquadra se fizemos um pré-acordo para resolvermos aqui mesmo o assunto por ter ocorrido na mata e à escuridão?

-Então passa a «gasosa» e não se fala mais no assunto. Olha que somos quatro na patrulha!

Joca pôs a mão debaixo do assento e sacou um saco com refrigerantes. Por sorte, eram mesmo quatro as latas que comprara antes de se fazer ao desfiladeiro.

- Estão aqui, chefe! Como o senhor pediu, estão aqui as gasosas. São quatro e mais duas águas.

Sem contra-argumentos, Kamosu encaixou o golpe do espertalhão do autuado (não contava com essa de gasosa de gasosa mesmo), pegou no saco, - abriu uma delas e provou-a. Estava ainda fria e engoliu-a toda, num só trago. Quase a engasgar-se, bateu-se no peito e soltou um muxoxo.

- Porra, pá! Por que é que não me disseste que estava muito gelada? Se a gripe me pegar vais aumentar na multa. – Ameaçou, algo sarcástico. Em seguida, jogou o saco à patrulha e, mãos no bolso, devolveu a carta de condução.

-Boa continuação e volte sempre. –Despediu-se, engatando marcha inversa até à boca do desfiladeiro.

- Volte sempre?! Esses gajos pensam que sou o multi-caixa deles? Sacanas, desta vez bateram na rocha: quer gasosa, leva gasosa! - Disse, algo inchado com a proeza, à companheira, que já tinha largado um mar de lágrimas.

A intrusão policial fora para Joca e Cajó um balde de água na fogueira.

- Tudo estragado, possas, pá! – Atirou o desfilador, furioso com a «mota que (já) não pegava».

No dia seguinte, sábado da lavoura para os funcionários públicos e para os aldeões das redondezas, seria recomposta a cena em várias versões pelos caminhantes que se deparariam com os trilhos e o sémen asfixiado nos preservativos espalhados pelo sítio.

- Isso é que é atentado ao pudor! - Desabafou Sa Ufuku, dirigindo-se com o boné policial à esquadra da aldeia para tirar satisfações ao comandante.

- O povo confia na polícia para acabar com a pouca-vergonha, mas a própria polícia, afinal, também se mete lá? Isso é atentado à moral, senhor comandante! - Rematou Sa Ufuku, sem nada mais dizer.