sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A CRÍTICA LITERÁRIA E O SONHO DE UM SOBERANO*

Começo com um ponto prévio, numa correcção importante. Não sou um crítico literário, nem um escritor. Gosto de escrever crónicas e ando (a) procura de um compromisso com a literatura. A leitura é uma das minhas maiores paixões e quando o texto ou discurso literário são ricos e agradáveis custa-me interrompê-los, não importa quantas páginas tenham.

Há tempos, o Luciano Canhanga, jovem jornalista, 34 anos, deu-me a ler o esboço do seu primeiro rebento literário. Era um trabalho tão interessante que coloquei de lado o que estava a fazer numa das horas de lazer.

Ele tinha dado ao seu rascunho um título diferente do que tem hoje, mas que transmitua a ideia de uma “marcha entre chamas”, um país a arder sob o fogo das armas e de uma grave crise económica e social; a vida infernal numa aldeia; a fuga desespererada para a cidade das mil uma oportunidades e um conjunto de dramas de quem vive na agonia, sem saber como vai terminar o sofrimento. Compreendi, sem nada perguntar, que era a história dele e da sua família. A história de muitos angolanos. Em 1997, já tinha ouvido uma história idêntica de uma jovem, também jornalista, que fugiu a pé do cenário da guerra e me motivou a escrever “os jornalistas e a saúde”, para o Jornal de Angola.

Eu e o Luciano tornamo-nos amigos via internet. Ele reagiu a uma crónica que escrevi neste jornal e criou-se uma simpatia mútua. Depois, descobrimos amigos comuns dentro e fora de Angola e fui portador de encomendas para ele. O Luciano é do Kuanza-Sul, terra onde eu passei parte da infância. Discutindo via e-mail, ficamos amigos.

Mais tarde, aceitei o desafio que ele me colocou para rever e prefaciar o seu primeiro livro, publicado há uma semana com o título de “O Sonho de Kaúia”. Fiz várias observações ao texto, a mais importante das quais foi a necessidade de definoir fronteiras entre a ficção literária e um diário com referências a actores políticos do tempo que ele retrata. Disse-lhe que deveria criar personagens e dar-lhes suficiente liberdade em cada capítulo ou episódio, sem medo. “Dá mais autonomia aos teus personagens e quanto menos te intrometeres será melhor, para o leitor. Tu és o criador, eles são os protagonistas”, insistia sempre. Em Julho de 2010, o sonho de Soberano estava realizado. O lançamento ocorreu na sexta-feira, dia 17 de Dezembro, nas instalações do Cefojor, aqui em Luanda, num ambiente bastante agradável, testemunhado por jornalistas, escritores, líderes religiosos e amigos da literatura.

O Sonho de Kaúia pode não ser uma obra perfeita, mas é seguramente uma história interessante e perspicaz.

O Manuel Muanza, jornalista, professor e crítico literário fez reparos semânticos antes de dizer que a obra é “um instruimento de denúncia social e de crítica a uma prática que se tornou instituição na nossa sociedade”. Ele “corrigiu” várias vezes o autor, sugerindo que se escrevesse Kanhanga e não Canhanga; Kawya em vez de Kaúia; Kyanda e não Kianda. “São convênios”, explicou ele. Eu confesso que também não sabia.

Sobre o conteúdo do livro, disse substancialmente: “na Europa ocidental, o realismo de Balzac e Flaubert aconteceu no momento das grandes transformações económicas e culturais. (…) Nas sociedades em construção como a nossa, os problemas sociais, económicos e culturais não vão deixar de envenenar o texto literário, como é agora o caso”.

Sejam quais forem as “PaLaVras…” sobre esta primeira obra, estamos perante um livro digno de ser livro. E é um conselho aos jovens que pouco recebem dos adultos: leiam mais, como alternativa às sextas-feiras do homem e aos “clipes e outdoors” que vos induzem a beber desenfreadamente, com trágicas consequências aos fins de semana!

Depos da crítica de Manuel Muanza e de Arlindo Isabel, cujo discurso também exortou os jovens a seguir as “regras de bem escrever”, o Luciano coinfessou que tinha vontade de fugir da sala e deixou em branco a magnífica oportunidade de repetir o olhar crítico da sua obra. Foi pena!

Gostaria que ele contasse aos presentes como surgiu como surgiu e como desenvolveu a ideia deste livro. Mas, logo compreendi que sendo o primeiro “sonho”, ele imaginou-se um peixinho acabado de nascer no meio de “tubarões” e protegeu o seu investimento, autografando-o em silêncio! Mais tarde, recebi um sms dele, no meu telemóvel, explicando o que tinha sentido: “… Kota, partilho consigo as críticas e os elogios!”.

“Uma boa aposta. Este rapaz tem futuro”, termino como ele próprio terminou o diálogo entre os personagens do “seu” grande “Sonho de Kaúia” (pág. 111). Luciano, segue o teu caminho!


* Tazuary Nkeita (José Soares Caetano) in: Semanário Angolense, edic. 398, de 25 Dez. 2010, pág. 26.
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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O RELÓGIO DO VELHO TRINTA

O calendário apontava o mês de Janeiro dum ano já apagado da memória. No Rimbe, o que se dizia ser a aldeia não passava de pequenas ilhas distanciadas. Casas e lavras de famílias que tinham abandonado o Kuteca e Katoto em busca de terras ainda virgens e maior tranquilidade. Era, no fundo, a prosperidade e a independência que alí os levara.

Velho Trinta e os seus filhos: Neto, Nando, Raúl e Kimone; seus netos; noras e genro constituiam o maior agregado comunitário. Umas dez casas sem soba , recaindo a autoridade em Neto Trinta, o filho primogênito, e no conselho sempre pronto e sábio do ancião.

Noutro pequeno povoado estava Xica Yango, esposa e seus filhos: Jorge Kakonda, Ngunza Kabolo e a caçula Eva. Os filhos varões já estavam casados e tinham-no presenteado com uns cinco netos. A família estava ainda no começo do seu alargamento.

Xika Yango tinha sido soba no Kuteka e, embora tivesse reunciado voluntariamente, conservava ainda o título, pois assim o tratavam todos os que o conhecimam e que por ele procuravam. Até mesmo os do Kuteka, já administrados por um novo soba que fora coadjutor de Xika Yango, mantinham a mesma admiração e respeito.

António, primo de Xica e Katumbo, também prima de Nzumba Tembo, a esposa de Xica, viviam também numa outra ilha continental. Porém, a morte de prematura de António levou Katumbo, a prole de cinco menores e suas crias; três bodes e algumas galinhas a juntar-se aos primos.

No Rimbe vivia ainda o Domingos Kastruque, também ele oriundo do distante Kuteca que dista trinta e cinco quilómetros percorridos sempre a pé ou de tractor até à estrada naciona 120. Kastruque tinha finalmente se afiliado aos Trinta para cujo aglomerado se tranferiu posteriormente.

Embora ilhado, o Rimbe crescia e era tido por todos como uma aldeia dependente da regedoria de Tumba Grande. A vida comunitária, a partilha do mel e fel da vida entre os chefes das famílias e seus dependentes fazia deles uma unidade coesa até que chegou a guerra.

Velho Trinta, setenta ou mais anos às costas, ninguém sabia ao certo quando tinha nascido. Apesar da aparente robustez, mostrava-se já sem forças para subir e descer montanhas, fugindo dos guerrilheiros opositores ao governo instalado no dia da independência.

- Sei que se me encontram nada me faze, e se me matam apenas me oferecem uma viagem pro descanso. – Atirou certa vez aos netos, em jeito de brincadeira. O seu único temor era a possibilidade de ficar sem a companhia dos netos, já jovens e adolescentes, que para as hostes da UNITA valiam como ouro.

- Avô, se voce fica aqui sei que nada lhe fazem, mas quem vai acarretar água e cozinhar para si? - Questionou a pequena Katembo respondendo ao avô.

- Hum, vou só mesmo me enrascar. – Respondeu cauteloso, ciente da dificuldade que seria acarretar lenha e água e colher e confeccionar alimentos.

A fome era na verdade um inimigo que matava lentamente, por isso seguia tropego a comitiva de fugitivos que cortavam um atalho sertanejo de vinte e tal quilómetros.

Velho Trinta algodão à cabeça, metro e oitenta de altura a curva-lhe a coluna e voz ainda férrea, anda cantando suas malambas .

- Oh relógio que bates tic-tac,

Avaria sem conserto

Para de uma vez por todas

Deixar de leslizar este ponteiro

Oh relógio que estás no peito

Meu prazo está caducado …


Os netos, alguns ainda inocentes, perguntavam por que razão teria ele guardado o relógio no peito, enquanto Mariana, a esposa de Neto Trinta, procurava distrair o sogro com cenas do bom tempo, quando o velho ainda jovem o contactou para esposa do filho que andava na guerra contra os Tugas no Quitexe e Kamabatela.

- Papá lembras-te quando foste ter com os meus pais para me juntar com o Neto?

- Sim Mariana. Como é me ia esquecer de algo que me deu tantos netos e alegrias?

- Também havia guerra do Kuata-Kuata …- Lembrou a nora.

- Pois claro, minha filha. Mas se o Neto estava nas frentes de combate nós estávamos aqui a cavar a nossa mandioca e ninguém tinha que dormir nas matas. Só mesmos já no ano da revolução quando se começaram a escaramuçar é que a coisa mudou um pouco…

Mal o Velho terminou a explanação, rebentamentos de bazucas, disparadas à distância, assustavam a coluna de fugitivos. A longa fila de homens, mulheres e crianças lembrava o tempo de contratados. Todos, uns e outros, temendo apenas pela vida. Velho Trinta correu ainda vezes incontaveis, durante uns cinco anos, entre Rimbe e Katoto, sua aldeia natal, sempre implorando ao seu relógio para parar o tic-tac.

- Oh relógio que bates tic-tac,

Avaria sem conserto

Para de uma vez por todas

Deixar de leslizar este ponteiro…

Inesperadamente despediu-se numa noite em que o único barulho que se ouvia na noite escura era o farfalhar da chuva ao corpo hirto das chapas de zinco.

Mariana tinha madrugado, como sempre, à porta do sogro que ficava a uns dez metros da sua.

- Sessa ngana!

Era um exercício diário e vezeiro. Todas as manhàs, todos os anos em que Neto trinta os fez membros de uma mesma família. À saudação segui-se um silêncio nunca antes observado.

- Uaué cocolo diamié? - Gritou desesperada.

Ao choro da mulher juntaram-se outras vozes e outros choros de mulheres vindas de outras aldeias, algumas longínquas, trazidas pelo som do tantã das más novas. Havia também mulheres que aproveitavam o passamento do velho Trinta para recordar outros mortos ainda frescos na memória.

- Ai meu homem, como você me faz falta… - Lamentava Katumbo lembrando seu marido.

Velho Trinta leva saudações para meus pais e minha filha… - Chorava Eva Kambundu.

Os homens com ideias e valores traçavam planos para a feitura da campa e as exéquias fúnebres, enquanto outros descapitalizados ofereciam o seu choro e as suas preces, juntando-se ao exército feminino que se vestia de mulalas entre as pernas.

- Mas esse mano então que está a chorar assim é quem é do falecido?- Questionou Eva Kambundu.

- Hum filha, lhe deixa só. – Respondeu Katumbo interrompendo o choro - Se você está ver já um homem meteu mulala tipo é mulher, lhe controla. É porque não tem dinheiro para contribuir nas despezas do óbito e se mistura ’mbora connosco.

Mal terminou a explicação, Katumbo desatou outra vez aos gritos, evocando a memória do seu António partido recentemente para o nunca mais.

Outras mulheres faziam-se ao caminho do riacho em busca de água, levando sangas e latas de vinte litros à cabeça. Os mizangala dirigiam-se ao mato em busca de lenhas enquanto os dikotas procuravam pelo Sô Miguel da cerâmica para os tijolos da campa.

- Sabalo! - Chamou Neto ao filho.

- Papá!

- Não te esqueças de avisar o papá Nagana Ngunji, amigo do teu avô, para lavar o defunto e manterem a última conversa a sós.

- Mas papá, morto fala?

- Vai, seu burro. A tradição nunca se muda. Anda!

Velho Trinta e Ngana Ngunji eram do kissoco e companheiros em muitas caminhadas. A ele, Ngana Ngunji, cabia, após um monólogo com o finado, desvendar à família os segredos do amigo ainda ocultos.

Ngana Ngunji, também na casa dos setenta ou oitenta, chegou à noite com a mulher e uns parentes, trazidos numa “avó chegou” . Depois do habitual mahezo entre os que chegam e os anfitriões, o velho ficou alguns intantes a sós com cadáver a quem relembrou as alianças firmadas, os caminhos trilhados, a necessidade que tem agora de procurar por um outro confidente e, sobretudo, a pertinência de abrir aos filhos e netos o seu livro de vida, guardado a sete chaves até aquele dia.

- Mano, o que nos une só tu e eu sabemos. O que fizemos também só tu e eu sabemos. O que nos separa ainda é desconhecido, mas hoje, o mano me perdoa, vou violar os segredos para que não morram comigo. - Monologou.

No dia seguinte, seria também ele a aparar a barba do amigo, dar-lhe banho e vesti-lo. Era o compromisso a que tinha chegado com o amigo ainda vivo. Depois viriam os netos varões para depositar o cadáver na urna.


Homens à frente, revezando-se no transporte da tipoia que carregava o caixão acastanhado com os restos do velho Trinta; mulheres choronas no meio da comitiva e crianças curiosas a trás, seguiam todos em coluna. Um por um, lembrando filas indianas. O cortejo seguia ao lngo de dois quilómetros acompanhado pelo Kimbanda contratado para descobrir e anunciar nos dois dias seguintes as razões da morte.

- Velho Trinta, vingue-se dos seus inimigos. Não se esqueça de contactar os nossos antepassados para que estes me revelem se é causa de Deus ou dum nganga qualquer.

Entre passo e pausas no monólogo o kimbanda volta a suplicar:

- Mais velho, ajude-me a “escarlecer” quem foi que lhe “cumeu”. Se é alguém com dívida por receber ou se é só mesmo inveja do mundo…

A frase do adivinho foi usada para debate dos miúdos, à rectaguarda da fila, que já frequentavam a escola e com algum raciocínio de lógica científica.

- Mas oh João, ouviste bem o kimbanda?

- Sim ouvi e estou também a buscar o meu entendimento. “Comué” que o avô está no caixão e esse velho bacoco está ai a entrujar que foi comido por alguém?- Questionou-se.

- Ya, eu também estou buamado e vou mesmo recorrer ao professor para nos tirar essa dúvida. – Respondeu o Júlio, um dos primos de João Trinta.

Quem não perdeu tempo foi mesmo Phande que, aproveitando-se do facto de ser primo do professor Jorge Kakonda, marcou uns passos à frente e o interceptou no momento em que a urna descia à cova.


- Camá pressor, mi disculpa só ainda!


- Diz lá, mas fala baixinho.


- Pessoa si come?


- Como assim?


- Sim mano - Phande esqueceu-se, por instantes, da regra imposta pelo professor de que mano era apenas na informalidade da casa - ouvi o kimbanda a falar que o avô Trinta foi “cumido”num feiticeiro…


- Oh pioneiro, tens de entender que esses velhos traduzem tudo ao pé da letra.


O rapaz ficou mais confuso ainda com a expressào inusitada do professor Kakonda.

- Prossor letra tem pé? Não é só pontos nos is e traços nos tés?

- Phande, os mais velhos traduzem para o português o que se comunica em Kimbundu. Como é que se tem dito quando alguém morre ou quando alguém gasta dinheiro alheio?

- É “cumeu”, camá pressor!

Feito o funeral, as pessoas desoladas voltaram cada uma no seu caminho. Velho Nagana Ngunji, apesar da idade que lhe proporcionava experiência e coragem em situações análogas, parecia sem forças e pronto a despedir-se também.

- Avô tens de fazer coragem. Teu amigo foi p’ro decanso. – Aconselhou Joaquim Neto, o neto mais velho do Velho Trinta.

- Sim meu neto. Avisaainda os pais, os tios e os teus irmãos. Todos os netos que já se amigaram para abrirmos o segredo do vosso avô falecido. - Ordenou o ancião.

Em poucos minutos o jango tornou-se pequeno. Todos contados chegavam aos cem. O Velho Trinta tinha tido boa safra e o número de netos e bisnetos crescia todos os meses. E começou:

- Filhos, o falecido partiu. Choremo-lo, mas festejemos também. Ele cuidou-se bem e fez essa riqueza – apontava o dedo indicador para a assistência - fez também coisas que só hoje vão saber, o que é próprio de um homem com a desenvoltura do mano Trinta.

A assistência fez a vénia em jeito de aprovação do discurso e o velho continuou.

- Chamem o Domingos para estar também aqui.

- Avô, qual Domingos mais que falta se já estamos todos os filhos e netos aqui? – Perguntou Sabalo.

- Aquele do Kuteca que vocês chamam de Kastruque…

Gerou-se um pequeno pânico e interrogações. Procurava-se entender por que razão teria Kastruque acesso àquela reunião restrita, não sendo ele parente directo do finado. Domingos, o homem dos truques, era apenas um amigo da família.

- Chamem só. Eu sei porquê. - Ordenou algo impaciente.


Esse - apontava para o recém-entrado - também é vosso irmão. Neto, você que é o mais velho dá-lhe ainda um abraço…

Silêncio total. Ali não era para mugir nem tugir. Uns ficaram até boquiabertos perante a revelação. Nunca lhes passara pela cabeça o que acabavam de ouvir.

- O meu amigo tem ainda uma filha no Ebo onde esteve como contratado no tempo do caputo . Neto, manda para lá um emissário, de preferência um dos netos do mano Trinta, que vai ao encontro da tia. A foto dela está aqui - exibiu-a à multidão -, os dados todos estão escritos atrá. O mais velho deixou também quinze bois no Roussel e uma dívida de dois cabritos com o Xika Yango que está alí fora. Quando sairem podem contactá-lo para saber se ele quer a dívida dele ou se não… - Orientou.

Com a assistêncioa sempre atenta, em silêncio, fazendo apenas o gesto de aprovação com a cabeça ligeiramente bailonçada para frente e para trás, o ancião prosseguiu:

- Têm também uma conta a receber na fazenda Sector Sete. Os docuemntos estão aqui. - Entregou-os ao filho mais velho, Neto Trinta.

Feito o relatório, velho Ngana Ngunji soltou as lágrimas, as últimas que ainda guardava, e evocou aos soluços a memória do amigo a quem esteve ligado por mais de meia centena de anos.

- Mano, vai com Deus, mas revela-nos nos sonhos. Se foi mesmo a hora que chegou, descansa em paz, mas se foi um nganga que te comeu atormenta-o a ele e sua casa. Não lhe poupa nem o curral, nem a capoeira.

Filhos e netos do Velho Trinta que a pouco acompanhavam Ngana Ngunji no choro abanavam de novo as cabeças em jeito de aprovação do discurso.

- Avô aparece no meu sonho e revela-me se “kalunga ka ngana ó kalunga ka kifumbe”. - Recomendou Katembo, interrompendo o silêncio.

A noite descrevia a sua última curva e os galos já anunciavam o nascer do outro dia. Lá fora aquecia a dança à volta da ngoma e da kissaca , tocadas por gente experiente convidada de outras aldeias, e fazia-se festa. Festa rija que nunca mais houvera naqueles tempos de guerra. Velho Nganga Ngunji foi dormir e no dia seguinte não mais acordou. Seguiu o caminho do amigo.



segunda-feira, 1 de novembro de 2010

OLH'O MALUCO

Era no mês de Outubro. As aulas na primária tinham começado a um mês. Alunos e professores procuravam ganhar tempo naqueles dias de relativa acalmia. Já que há três meses que não se ouviam disparos, nem boatos sobre kitotas . Até mesmo o Kissongo, terra predilecta da guerrilha, parecia pacificado.

-Clovis!

- Camá pressor!

Que pretendes ser quando fores grande?

O menino meneia a cabeça. A pergunta foi-lhe colocada em contra-mão e não tem a resposta formada. Nunca, nos seus oito anos, tinha pensado no que seria quando fosse grande.

- Qual é a profissão que queres seguir quando fores mais velho?- Endireitou o professor Lotário.

- Quero ser pai, camá pressor!

- Pai?

- Sim, camá pressor!

- Mas porquê?

- Porque os pai “comeum” bué!

A resposta despreconceituosa do aluno deixou a turma e o professor em alta pressão. Risadas e risos controlados nos quatro cantos da sala. Lotário teve mesmo de sair para buscar concentração e inspirar ar puro. A aula de ciências integradas, da terceira classe, tinha chegado ao fim, cinco minutos depois da motivação. Clovis, agora jovem, nunca se esquece do episódio que lhe custou a alcunha de “Os pai comeum bué”. Era por este nome que todos os meninos da escola número três de Calulo o tratavam sempre que o objectivo fosse zombaria . Assim foi até chegar à quinta classe e mudar de escola.

A frequentar a preparatória no Instituto Kwame Nkrumah e a trabalhar de tipógrafo numa cerâmica, Clovis está agora decidido em ter um nome e uma profissão que dignifiquem a família e a sua vila amada.

“O pão, ainda que mal amassado, exige sacrifícios”! Era esta a lição que Clovis carregava e distribuía por onde quer que fosse, por isso, fazia-se manhã cedo à estrada acompanhando a música dos militares.

“Ngongoé, ngongoé

yá, yá, yá

Ngongo ya mon’âdiala !

Ya, yá yá”!

O jovem aprendera com os pais, já finados, a fazer armadilhas para animais de pequeno e médio porte e a cultivar numa pequena horta que visitava ao raiar do sol, já que tinha de voltar à vila para o trabalho administrativo na cerâmica do Sô Miguel.

Na estrada, negra e encurvada como serpente, que faz deslizar os carros para Luanda, uma fila de noventa jovens mancebos corre ainda despreocupada com o devir. Muitos tinham sido retirados à força do colo de suas mães e outros, poucos, eram vuluntários cansados das rusgas e maus-tratos familiares. Qualquer um podia ainda ir para à casa pernoitar junto da família e apresentar-se à unidade no dia seguinte, pois só no fim da recruta é que seriam distribuídos pelas frentes que o LCB tinha nas comunas. Aí sim. Seria a vida dura dum militar.

O sol apresentava-se ainda como uma bolinha amarela e envergonhada, sem força para aquecer. Embora transcorresse o mês de Outubro, era mesmo o frio que ainda dominava. Homens, uns já nas ruas com samarras soviéticas, acordados pela companhia de instruendos das FAPLA’s, e outros ainda debaixo das mantas, sugando o último calor de suas amadas.

Clovis estava entre os madrugadores, buscando inspiração nos homens de sucesso que conhecia, no chilrear dos passarinhos e até no zunir dos ventos. O jovem queria ser escritor de fama e por isso usava de tudo para escrever, mesmo quando lhe faltasse o papel.

- Clovis! Estás sempre a levar lapiseira no bolso mas nunca levas papel para escrever. - Disse-lhe certa vez Peregrina, a irmã.

- Sim. Se não tiver papel há sempre um trazido pelo vento ou sirvo-me de uma folha de árvore. Há muitas por aí.

- E por que escreves tanta coisa que não é da escola, nem é do serviço e nem é carta?

- Um dia saberás, minha maninha.

- Hum… Um dia… Ainda te chamam de maluco…- Resmungou insatisfeita. A útima frase foi, porém, pronunciada já em surdina.

Peregrina não estava enganada. Devido ao seu hábito de parar em qualquer esquina para apanhar papéis, quando lhe soprasse a inspiração, muitos já o tinham como demente.

- Olh’o maluco!- Gritavam os miúdos da rua sempre que o vissem passar.

- Maluco é… Cuidado miúdo... Um dia parto-te as fuças!

Ele sabia do que fazia, como também sabia do que dele se dizia. Mas dava tempo ao tempo para mostrar quem mais estava próximo da demência. Se ele ou os que assim o tratavam.

Às sete, hora de regresso à vila, Clovis cruzou novamente com a mizangala da tropa. Os mancebos cantavam, já sem a mesma forças das cinco da manhã, a predilecta canção:

“Oh fantoche,

oh fantoche tunda kó !

oh fantoche,

oh fantoche tunda ko, ko Kissongo”!

Na fila estava também uma moça de poucos anos e seios ainda duros como laranjas. A jovem recruta era muito mais do que linda. Também era desejável tê-la onde quer que fosse. Era um poço de carne tenra que se expunha num vai-e-vem seguindo em passos preguiçosos.

- Sucuama! – Suspirou Clovis ao ver a “máquina” a passar, enfiada num camuflado que mal cobria as nádegas.

- Mas quê que essa moça, tão boa, está aí a fazer no meio destes marmanjos todos? - Questionou um dos traunseuntes.

- Deve ser para “desencravar” as armas dos chefes! - Respondeu outro. Era Salviano Margoso, um agricultor biscateiro .

A estrada estava dividida em duas filas: Uma era dos mancebos que corriam a passos curtos. Curtinhos mesmo. Pareciam andar em vez de correr. A outra era dos civis, que também eram muitos, que se dirigiam às lavras, aos kadiengues , aos empregos e mesmo às aldeias distantes. Todos aproveitavam o sol ainda manso e preguiçoso para ganhar terreno. Clovis seguia-os a todos ao pormenor, embora tivesse os olhos fixos no corpo daquela musa metida naquela farda verde-oliverira.

- Xê mano, não olha assim para a mulher do outro. – Ironizou Salviano, também ele atento ao passar do primeiro pelotão. O homem tinha na boca um cigarro de kangonha que acabara de enrolar.

- E quem te disse que é do outro? – Interrogou Clovis. - Mulher com dono não anda nessa vida, nem fica a puxar as calças para cima e para baixo de metro em metro. Já pensou no que seria essa mana se estivesse na vida civi?

- Mano, elas estão a levar a moda também à vida militar. É já assim mesmo. O mano não anda a ver as meninas na rua? É só já olhar e fechar a boca.- Respondeu-lhe o lavrador.

O primeiro pelotão estava já a subir a montanha da Pedra Santa e o terceiro fazia-se à baixa do rio Kambuco. A moça perdia terreno para os segundos e parecia estar no mesmo lugar em que Clovis e Salviano ensaiavam a prosa matinal.

- Moda tem limites. Quem se expõe é porque quer ser vista e o belo é para ser contemplado - Disse Clovis.

- E desejado também, né mano?- Emendou o lavrador.

A moça que ainda pôde ouvir a sentença do lavrador, largou uma estrondosa gargalhada que assustou os colegas menos atentos.

- kiá-kiá-kia-kia…

- Quê isso Marinete?

- É esse moço aí.- Apontava ela para Clovis já meio distante.

- Que te fez o homem?- Perguntou um dos instrutores.

- Chefe, o moço é bué! Só o que me falou?

- Que foi que te disse o refractário- Interrogou o tenente em tom ameaçador.

- Te conto na hora do descanso, chefe.

Luis Garrincha, o instrutor, era dos que mais guarida dava a Marinete, procurando tirar alguns loros duarante aquele período de aprendizagem. Aliás, Marinete era benquista de todos. Era a única mulher da companhia de instruendos e todos a tinham como mascote.


Um dia, daqueles em que toda a população era chamada a enclinar-se ao som tosco do Toshiba para ouvir as notícias do país, Clovis tinha sido informado sobre a constituição obrigatória de Brigadas Populares de Literatura e tinha gostado da ideia. Procurou pelo patrão, Miguel Serafim, que o insentivou a escrever e a ler. O branco de Trás-os-Montes, que na revolução ficou do lado dos patrícios, tinha colocado à disposição do jovem empregado um “José Maria Relvas” e vários outros livros de autores tugas do século dezanove.

- Olha, seu patrício, podes ler este ”libro” mas nunca o levas daqui, está bem?

-Está bem Sô Miguel, obrigado.

- E quando amadureceres, vê lá se não te esqueces de me consultar, porque não é com decretos e nem com duas cantigas que se fazem escritores, está bem? - Voltou a recomendar o branco.

- Sim Sô Miguel. Mas assim, Sô Miguel, vou começar mesmo por onde então?

- Olha! Tens de “escreber” muito e rasgar sempre – orientou - até conseguires a forma.

- Mas isso não demora muito?

- Pois é, seu Clovis. Ser escritor é paciência. Tens de “escrebinhar” em quase tudo e sobre quase tudo. Também tens de engolir este “libro” aí. Ensaia a Olivetti e depois a forma e a fama vêm a seguir.- Recomendou.

O homem deu volta e meia e meteu-se pelo fundo do quintal onde os mecânicos consertavam uma empilhadeira avariada a um par de anos. Havia encomendas atrasadas por falta de máquina e de força braçal para o carregamento de tijolos.

No pequeno escritório, onde repousava o livro de ponto e as facturas, a máquina de escrever, cansada de tanto uso e pouca atenção, parecia uma velhota vergastada pelo tempo. O tic-tac do movimento das teclas já era audível a mais de trezentos metros de distância, mesmo com o barulho das máquinas da cerâmica. Foi nela que Clovis aprendeu a dactilografar os rabiscos que trazia de casa em folhas arrancadas de cadernos escolares, outras apanhadas na rua e outras ainda arrancadas de árvores, quando papel lhe faltasse.

Já de longe, o patrão ainda voltou a adverti-lo: -Oh Clovis!

- Sô Miguel!

- Vê se não me partes as teclas que eu te parto a ti também, ouviste?

- Sim patrão!

- Patrão não, Sô Miguel, ok?- Corrigiu o transmontano.

-Sim Sô Miguel.

- Vê lá! Ainda me confundem com os contra-revolucionários e pequeno-burgueses que andam por aí a pôr pânico no “goberno”… Eu, por cá, não quero encrencas, está bem?

- Não Sô Miguel,me desculpa já.

- Ok. Vê lá então se não partes a Olivetti. - Voltou a recomendar.

- Não Sô Miguel, os ossos da “Oliveira” é que já estão sem ”sangue”. – Ironizou o aprendiz.


No quartel, a tarde estava reservada à educação patriótica e revolucionária, a aula do tenente Garrincha. Marinete estava, como sempre, no centro das atenções.

- Camaradas! - Gritou ele à companhia em parada.

- Prontos comandante!

- Olhem para a moça! – ordenou. – Têm dois minutos para descrevê-la em função do nosso tema.

- Escrever, comandante? Eu só cheguei até à primeira classe. – Disse Claudomiro.

- Cala a boca seu ignorante. Dá dois passos à frente e vinte cambalhotas já. – Ordenou o instrutor.

O Jovem, dezoito anos por fazer, desconhecia a gramática e escrever ou descrever para ele eram a mesma coisa.

- O chefe está a me castigar só à toa. - Resmungou, mas sem deixar de cumprir.

- Mateus! – Voltou a gritar, olhando para o meio da companhia.

- Pronto comandante!

- Então, que dizes da Marinete, pá?

- Sim comandante. Ela é um pedaço que não serve na minha boca, chefe!

- De joelhos já! - Sentenciou transtornado pela resposta que acabara de ouvir.

- E tu Gregório?

- Bem, “prontos”, comandante, como disse o camarada Clo, eu também “num” lhe conheço bem.

- Outro ignorante. Cambada de mentecaptos. Vinte cangurús – Ordenou.

- Satula!

- Pronto, maior!

- Salva-me a tarde, meu guerrilheiro.

Satula estava a ser sondado para o curso de sargentos na Gomes Spencer, no Huambo, tão logo terminasse a recruta. O jovem, estaura acima da média, deu dois passos à frente e, pés ligeiramente afastados, postura frontal e vertical, expôs:

- Permita-me maior. Ela é uma heroina viva nos dias de hoje em que as mulheres apenas servem o exército como voluntárias ou assalariadas civis.

A turma nem esperou pela aprovação do instrutor e rápidamente gritou vivas ao colega pela brilhante descrição. O homem tinha visto qualidades onde os outros apenas viam sexo. Garrincha bateu palmas e os instruendos seguiram-lhe o exemplo.

- E tu Marinete que dizes dos camaradas aqui em parada?

-Chefe, tirando uns, são todos uns buezezas . Apenas me comem com os olhos e nunca me dizem nada!

A resposta da jovem criou um espanto total, até ao instrutor que passava a vida a planificar a melhor altura para lhe cantar o fado. Garrincha deu meia volta, ergueu a boina, e marchou uns poucos metros para buscar postura e mudar de tema. A companhia de instruendos falaria sobre os feitos de Che, Deolinda, Henda e do Guia Imortal.


Na Olaria Moderna de Miguel & Filhos, o jovem dactilógrafo vivia em regime voluntário de enclausuramento. As saídas estavam restingidas à escola e ao cuidado da horta que muito prezava. Alcunhava-se como “o feitor da natureza”. Os convivios sociais tinham sido embargados para o pós livro.

- Então, jovem Clovis, já não te vejo nas farras, que se passa contigo?

- Estou em processo de fecundação intelectual. - Respondeu ele ao professor Lotário que o procurara para ver umas facturas de compra de tijolos.

- Olha, dizem que vêm ai os kassav e o Mamborrô. – Insistiu.

Clovis começava a ganhar a fama de novo intelectual, dada a sua nova forma refinada de se expressar em público e a limitação das suas saídas, algo que Lotário queria confirmar.

- Camarada professor, adiei tudo parta o futuro. O meu presente é o cumprimento do meu sonho. Não foi o senhor que me tinha questionado sobre o que seria no futuro? Pois que é chegado o futuro.

Lotário, apesar dos vinte cacimbos que tinha a cima do Clovis não escondia a admiração que criava e a amizade que pretendia construir. O menino que queria ser pai era na verdade uma outra criatura.

- Sim rapaz, mas quê isso de fecundação intelectual?

-É um processo de elevação espiritual e de criação estético-literária. Estou a escrever uma obra-prima que vai elevar a nossa municipalidade aos areópagos da intelectualidade artístico-literária.

O profesor, que até fazia parte da nata intelectual da vila, ficou buambo . Tinha ouvido tudo ao pormenor, mas pouco tinha entendido. Tão fortes eram o português que o ex-pupilo losava .

- Puthu ya diuabela, mas kimbundu kota .- Atirou, rendendo-se à preparação verbal de Clovis.

- Mas onde é que eparendeste tudo isso em tão pouco tempo?

- Professor, é tão somente a elvação que me proporciona a auto-superação possível através do “ndunda” do Zé Maria Relvas que o Sô Miguel me emprestou. Ele tem sido também o meu guia nesta travessia irrecusável e necessária.

- Uaué, mon’âmié? Então te estás a cultivar na língua de Camões…

- Sim Professor Lotário. Foi o senhor que certo dia me perguntou o que seria quando fosse grande. Eis agora o meu futuro. Quero ser escritor.

- Ok. Bravo, meu rapaz. E quando é que te leio de verdade?

- Dentro em breve, senhor professor, dentro em breve. O Sô Miguel e os filhos dele, lá na metrópole, estão a ver quem vai editar o livro. É só uma questão de escolha e de tempo porque valor já disseram que tem.

- E o livro vai chegar até aqui?

- De facto, senhor professor. Depois do Sô Miguel, o senhor professor vai receber o primeiro autógrafo por ter sido a pessoa que me ensinou a pensar no futuro…


Terminada a recruta, Marinete foi enviada à escola Fadário Muteka para cursar comunicações. O comandante queria voltar a tê-la sempre ao seu lado e como pessoa de confiança.

- Jovem mulher!

- Pronta chefe! – respondeu.

- Vais fazer três meses no Fadário e quando voltares vais pegar as máquinas do Manda-Boca que vai subir .- Ordenou o comandante em parada.

Seria a primeira vez que sairia da sua terra natal e que ficaria sem a protecção do seu amante, mas Marinete tinha consciência de que na tropa não se podia negar uma ordem.

- Sim chefe. Aceito.

- Então prepara a mochila poque o eleicóptero chega mesmo já amanhã. Hoje à noite falo com o camarada Garrincha que, pelo que sei, anda contigo...

Marinete apenas sorriu e dirigiu-se à caserna do Garrincha que já dominava o assunto.

No Huambo, Marinete e Vutuka eram as únicas meninas que eram militares de verdade, sendo complementadas em número por umas seis senhoras já de idade que trabalhavam como cozinheiras e lavadeiras da unidade-escola.

Txakumuena Vutuka era procedente de Muatxibundo, no nordeste, e orfã de pai e mãe. Melhor, como ela mesma dizia, era orfã de tudo. Era sobrevivente única de uma família que fora dizimada pela guerrilha.

- Mana, nem imaginas o que me aconteceu para cá estar no meio dos homens… - Abriu-se ela certa vez à companheira quando falavam do seu percurso para a vida militar.

- Conta-me mana. Que foi que te trouxe à tropa. Estás cansada dos abusos dos homens na tua aldeias?

- Yame ká !

- Como assim?

- Quem me dera. Fui ao município representar a OPA num concurso de Cianda e os meus pais foram todos “matados” pelos fantches do imperialismo.

- Aié? Qiue pena. Temos mesmo de fazer força para ver se lhes damos o troco que merecem… - Respondeu comovida a colega, evitando outros comentários que a podessem transtornar.

Vutuka, apesar de mulher coragiosa e libertária, tinha um lado bastante sencível. A colega queria evitar ressuscitar as dores que ainda inundavam a sua alma e limitou-se na conversa, buscando outros motivos.

- xtás a ver aquele gajo do Sakaiossa? O gajo é um gentio…

- É teu tio?

- Não, gentio. Pessoa sem consideração. Um matumbo de primeira. Como é que lhe dou um geito e fica aí a me espalhar?

- Se fizeram?

- Não. Eu com ele? Só se fosse o único à superfície da terra. Encontrou-me em baixa e trocamos apenas um beijo.

- E que te fez mais?

- Nada mais. Não é que o gajo anda aí a tratar-me por Vareta do comandante só porque lhe neguei o “bife”?

Aié? E tu já apresentaste queixa ao comandante da escola? – Questionou Vutuka que se apresentava mais experiente no campo dos amores sem rodeios.

Marinete tinha tido algumas experiências durante a recruta com o agora aspirante a sargento Satula e com o instrutor Garrincha. Mas foram todas entregas afectivas e nada de fazer por fazer.

- Sabes, aqui não tenho protecção e esses gajos são sempre mal intencionados. Ainda me suja só e já sabes que o boato anda mais depressa do que as pessoas.

- Nada de medo, somos todos tropas. Se lhe deixas te sujar ele te come até as espinhas. Ou então lhe aceitas já ou queixas “no” comandante.- Aconselhou.


No Fádário Muteka, Satula levava já mês e meio carregando sêmen. As idas às aldeias próximas do acampamento militar tinham sido proibidas devido ao “mi gosta” que fazia os homens até fugir da unidade militar para se juntarem às moças das aldeias vizinhas.


- Oh, Chipalavela!- Chamou o comandante da escola, o capitão Cara Podre, ao ajudante de campo.

- Sim comandante, ordene!

- Avisa a tropa. Todos. Homens e mulheres que vestem farda. Estão proibidos de hoje em dia a irem na buala . Há muito abuso na formatura por causa do “mi gosta”.

- Sim chefe. Mas, se comandante me autoriza…

- Podes falar. Quê que queres contestar já?

- Sim chefe. O comandante sabe da principal carência daqui na unidade. Água e comida temos em “ambundâncha”, mas que não há mesmo é só “curtição” e chefe sabe que o “mi gosta” vem mesmo do tempo do kaprandanda e a tropa sempre combateu contra o Kaputu .

Cara Podre, assim apelidado por gostar de franzir o rosto, endireitou a boina e olho-no-olho colocou-se à frente da tropa.

- Se vocês me disserem que aceitam castigo severo de quem falhar na formatura eu retiro o que disse. Mas fica compromisso militar mesmo.

A tropa, em coro, emitiu um barulhento “Viva comandante!” em sinal de aprovação. Satula, na primeira fila, era dos que mais satisfeitos se mostravam ante a pequena abertura do camandante.

(continua)




sábado, 2 de outubro de 2010

O SEGREDO DA MUXIMA

O dia nasceu envergonhado. Lá em cima a lua, cinzenta ainda com preguiça do longo descanso, e o sol também vaidoso e todo ele alaranjado, pareciam gêmeos. A cidade, porém, está já com a agitação do meio-dia doutros tempos.

"- … Me desculpa só ué! Eu sou a outra. Também mereço ser feliz…" O rádio dentro dum Toyota Hiace tinha o volume excessivamente alto. E os passageiros precisavam gritar para comunicar o local da paragem ou aproveitar a viagem para uma prosa com a pessoa ao lado.

A viatura de nove lugares parecia “empanturrada” de gente. Eram dezasseis no total. Por onde passava soltava ritmos que convidavam à dança e à reflexão de senhoras puritanas e libertárias flagelando-se com farpas que estendiam ao autor material da música em voga.

– Mas esse moço foi criado aonde, para trazer aqui essas suas modas de segunda? – Interrogou Domingas António, devota católica e frequentadora assídua do santuário da Muxima .

– Mana Domingas, deixa só. – Aconselhou Madalena José, sua comadre e companheira de rezas e viagens, também ela procedente do santuário além Kwanza.

Manda-diá- Zuze ou Madó, para as colegas da paróquia, é crente e devota, muito dada à caridade e trabalhos sociais na comunidade. A sua elegância contrasta porém com a vida pacata que leva. Mãe de dois filhos, “sem pai”, confiados à benevolência do Padre Abreu, que os tem como afiliados, buscava a forma mágica de manter um segredo apenas seu.

Enquanto as devotas vão tentando se acalmar do sururú causado por aquela música ou no mínimo procurar fôlego para engolir aquele “também mereço” do Damásio, uma jovem põe “lenha na fogueira” e desbota:

– Hoje em dia o homem já não é “empresa privada”. Se você estiver ’mbora a dormir ou a engordar à toa com as regalias, são as outras que ficam com ele de verdade. - Chiquita mal tinha terminado a exposição, quando ganhou o complemento de Manuela que estava na cabine, junto ao motorista, dirigindo-se de forma provocadora às devotas:

– Mamãs! Os tempos mudaram e os gostos também. Os tios agora gostam coisas que vocês nunca imaginaram fazer…

- O quê? – Questionaram as senhoras indignadas.

Madó tentou engolir a provocação em seco, mas foi-lhe dificil. Interropmeu, por instantes, a sua viagem à memória e a conversa com os botões e atirou:

– Mas agora é assim? Suas cabronas de merda! Já não se respeita mai sas mais velhas e até marido das vossas mães também estão a receber? E ainda vos acodem na música deste malandro que as p… também merecem… Deus, Nossa Senhora!- Desabafou transtornada pelo que acabara de ouvir das jovens.

Os nervos afloravam à pele e a senhora teve mesmo de se controlar para não soltar palavras que nunca se esperavam sair da boca de uma senhora de idade. Madó tinha-se lembrado do ditado popular .

- Mana ambula ngó. Madiuanu ! - Acalmou Domingas António.

No clima de “conversa puxa conversa”, uma autêntica confusão se instalou no Hiace para a gratidão do cobrador que, devido ao calor e falta de acépsia, ia distribuindo odores fedorentos aos mais próximos.

– Pôças, esses jovens nem higiene laboral têm! Mal o mecânico termina os trabalhos eu juro: Nunca mais essa merda! – Desabafou desgostoso um homem de idade, Matias Fuccic de seu nome de registo civil.

A viagem prossegue. Com ela, a “música do momento” que passa, repassa e torna a passar como se outra não houvesse. Entre prós e contras se fomentam conversas várias e aumentam-se os volumes bocais. O que sai para fora da viatura é já um turbilhão de vaias, elogios e palavras desencontradas. Os sons emitidos pelos altifalantes, os gemidos de um carro já cansado e sufocado pelo excesso de peso e as vozes dos que se xingam. Jovens atrevidos assobiam ao desgosto da mulheres ortodoxas.

- Hoje é hoje… - Desafiou Serafim, um conhecido gatuno de telemóveis e carteiras que costumava viajar nos candongueiros para avisar os amigos que se encontravam em prontidão nas diversas paragens.

- Parece que as "mamoites" vão perder a batalha (das palavras)! - Emendou outro jovem, dos cinco que se faziam transportar no veículo.

- Calem masé as bocas, seus pirralhos! – Repreendeu com veemência Domingas António, já cansada de tanto disse-que-disse.

- Hum, Mana Minga Deixa só. Esses assim querem já confiança, mas estão enganados. - Acalmou a compenheira.

Na primeira paragem, Domingas António decide abandonar o carro e aliviar-se do sufoco. Serafim que se apercebera da intenção da senhora tinha avisado por sms os amigos que a aguardavam em prontidão.

A horda de larápios tinha ensaiado a rota para a fuga e como descontrolar a vítima sem recurso à arma branca.

Mal a senhora, com sacola a tiracolo, poisou o primeiro pé no chão, um atrevido espetou-lhe uma kibiona para a desconcentrar.

-Mamoite passa o mambo! - Advertiu o larápio com o dedo indicador entre o canal rectal da senhora.

Aflita, entre resguardar a sanidade moral e a sacola, preferiu a primeira opção. Aliás nem tempo teve para pensar. A sacola, com os haveres, caiu em mãos do mal-feitor.

- Socorro, é ngombiri ! Socorro Sô polícia! Me levaram a pasta. - Gritava aflita ao que se seguiu um “agarra gatuno!, “prendam o ladrão” e outras gritarias apenas para entreter. Quem gritavam eram os proprios amigos de quem tinha furtado a sacola.

Com o episódio, instalou-se uma outra confusão no interior do táxi, juntando-se a que se passava na rua Revolução de Outubro, onde nem polícias, nem fiscais se aprontaram para o solicitado SOS.

- Os tempos estão mesmo mudados - Atirou Domingas António aos seus botões.

A sociedade impiedosa assistia impávida ao filme. O ladrão caminhava impune. E os carros revezavam-se na paragem para apanhar ou deixar passageiros. A vida continuava apressada como sempre. Aos soluços ficou Domingas António, seguindo o rasto da música que rumava ao São Paulo, destino daqueles Hiaces, sempre com a “queta” do momento, num vai e vem sem fim.

… Me desculpa só ué. Eu sou a outra. Também mereço ser feliz…

Na segunda-feira, dia seguinte, o tema, "Valerá ceder ou vamos continuar a rezar para reter os nossos maridos?" foi levado ao padre Abreu, na Capela da Dona Maria.

As mulheres queriam, aí mesmo, debitar ideias. Mas foi uma agitação tão grande e um falar alto que não permitia o entendimento. Havia três correntes formadas em função das faixas etárias. As liberais, as revolucionárias e as ortodoxas, cada grupo puxando a brasa para a sua sardinha. O padre teve de solicitar que o mesmo fosse motivo de reflexão caseira para um debate posterior, na reunião da “sociedade de mulheres de idade”.

- As irmãs vão primeiro reflectir cada uma no seu canto e depois, na próxima quinta-feira, vão concluir aqui na capela. A irmã Madalena José será a moderadora. – Recomendou padre.

As mulheres ainda tentaram convence-lo para que fosse ele a dissertar, mas o religioso passou a bola à uma delas. Tinha ele outros planos para a semana e faltar-lhe-ia tempo para preparar o tema.

No dia combinado para o reencontro das devotas, Madalena José surpreendeu-as com uma súbita ausência. Ninguém sabia por que motivo, ela que nunca faltava à reunião da quinta, estava ausente.

- Deve estar com problema ou adoentada. – Conjecturavam as colegas.

- Mana Maria Simão, mana Isabel Francês, mana Luarica Gomes e eu vamos à casa da Manda-dia-Zuze. – Era a voz comandante de Domingas António.

A comissão de visita, munida de frutas e alguns valores em dinheiro, foi de imediato à casa de Madalena tendo-a encontrado vivinha da silva. Apenas um detalhe:

Na mesma noite em que se combinou realizar o debate na quinta-feira, o padre avisado da ausência prolongada do marido, foi rever os afiliados e envolver-se na quentura carnal da sua amada. Fazia tempo que não ensaiava os versos líricos.

- Sabes Madó, amo-te muito.
- Hum. Não me parece, sô padre!
- Por quê amor meu de Cristo?
- Tens estado mais em outros lugares do que aqui. Ou deixaste de ser homem como os outros que adam de Jeans e sapatos de bico fino?
- Quê isso mulher?
- Sim. Sei que tens superiores que são “deus e homem”, mas tu nem tempo tens para os filhos que ate são teus! Dizes a isso amor?
- É sim, irmã Madó. Tem sido difícil concilar o trabalho de servo e de homem terreno. Repartir-me tem sido dificil…
- E assim dizes que me amas? Até os teus filhos andam saudosos…
- Os meus afilhados estão bem e vejo-os todos os dias nos colégios.
- E para mim bastam os filhos starem com saúde? E Homem?
- Peço perdão a Deus e a ti Madó, mas tens de pôr na cabeça que a curva que estamos a descrever é apertada…
- Tenho dúvidas, meu padre.
- Já te disse. A dois deixo de representar a Cristo.
- Mas amanhã estarás vestido de batina ao saires daqui. Ou me engano?
- Em parte certa e em parte errada. Mas não me trates por padre porque nesta condição não te posso amar como pretendes.
- Então confirmas que não me amas não é? E até já estás com cara de pressa de sair. Hoje não vais sem molhar a sopa!
- Amo-te como um pastor ama as suas ovelhas e um homem de carne a uma mulher carnal.
- Prova-me isso então. Apalpa-me o meu peito e recebe-me como carne que sou para tua boca faminta.
- És um sabor agridoce mas recebo-te com prazer…

E os momentos que se seguiram foram de êxtase até que passada hora e meia da meia noite o galo cantou de aviso, feito vigilante. Tinha chegado o momento da partida do home-padre. Madó acordaria, como sempre, envoltra em lençois. Estava acostumada e já não fazia caso contentando-se com o efémero momento vivido e olhando para a taça de pé alto com o rosé ainda por beber. Abreu, por seu lado, entraria de pianinho na casa paroquial numa hora em que a cidade se preparava para mais um dia de agitação.

No dia seguinte, terça-feira, Abreu tinha outra visita no bairro na Lixeira, casa de Maria Simão, por sinal, uma amiga de longos anos de Madalena José. Há meses que tricavam olhares intencionais e ambos tinham combinado aproveitar a ausência dos filhos de maria que tinham ido visitar o pai na distante Lunda, onde trabalhava. A tarde, solorenta seria momento ideal para pôr a conversa em dia, e quicá…

O sol brilhava furioso ao meio da circunferência azul. Dificil se tornava olhar para ele e caminhar sem água tornava-se sufocante. Madalena, que saia das compras no Roque Santeiro, decidiu então ir à casa da amiga e afinar algumas ideias sobre o debate agendado para quinta-feira. De longe reparou que havia uma viatura junto à casaa e ganhou confiança de que a iria encontrar.

Ao avistar a viatura paroquial estacionada em frente ao portão, Madalena nem imaginou no que estaria a acontecer intra-muros. Como de costume, a porta estava entreaberta e mal a empurrou deparou-se com um inimaginável cenário: Maria e Abreu trocavam intimidades.

- Xê mana, Kima kiânhi mualô banga ?

Foia a aflição total para Maria que se achava seguracom o padre Abreu naquele hora em sua casa, sem ninguém à volta, e para o "anunciante das boas novas" que nunca imaginou ser surpreendido nas suas caçadas.


- Mana que susto! Então combinamos já hoje o debate e a comadre faltou? - Questionou Domingas.
- Manas obrigada por me terem vindo visitar. Estava sem forças. Viram na igreja o padre Abreu?
- Não! - Responderam em coro admiradas.
- Viram a mana Maria?
- Sim. Ela veio connosco. - Responderam em coro, sem dar conta da ausência da companheira.

Enquanto se dirigiam à casa de Madalena nem se deram conta da desistência de Maria Simão. Custou à Madalena abrir-se às amigas e contar que tinha surpreendido a sua melhor amiga, Maria Simão, com o Padre Abreu, homem com quem ela fizera os dois meninos. Foi o fim do segredo da Muxima.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

PAPÁ CHEGOU!


...
Kambuta chegou de viagem. Se tivesse de andar num azul-e-branco até à casa teria de gastar, ao fim do percurso que separa o Aeroporto do Bairro Viana Nova, um total de Kz. 400,00, divididos em 4 trechos de igual valor. Foi a pobreza momentânea que o forçou naquele dia, último da tolerância contra os azuis-e-brancos, a optar pelo transporte colectivo urbano. A passos da paragem ainda pôde trocar prosas sobre a vida na capital.


-Epá, - dizia ele para um colega de viagem, - isso agora parece que está mais p’ro inferno do que para a urbanidade!


- Sim, meu camarada! É só ver como andam as pessoas nos carros, todos ensardinhados, e aengolir cada vez mais poeira levantada pelos veículos...


- É. Isso anda maluco! e nós que estamos mais no interior do que na capital sofremos mais ainda.


- Pois é. - Replicou Kitomangombe, o seu interlocutor, que vivia ininterruptamente na capital. Porém a semana de ausência, no nordeste, também lhe causava estranhezas.


- E como é que vais à casa? - Perguntou ainda Kitomangombe.


-Epá, vou me desenrascar... De qualquer meio que aparecer. Kupapata ou mesmo “avó chegou” , tudo serve.


Kitomangombe seguiu o caminho do Rocha Pinto e ele, Kambuta, dirigiu-se ao Banco que ladeia a estrada da "Revolução Soviética". Estava decidido em alugar, se possivel, uma viatura particular para chegar cedo à casa, onde os filhos e a amada o aguardavam esperançosos.


- Meus senhores, bom dia!


- Bom dia, - respondeu um dos guardas que acabava de endireitar os olhos enramelados na noite mal dormida. O homem parecia "estar apenas por estar" .


- O senhor pode cuidar da minha mala cá fora? é que venho de viagem e estou sem dinheiro para chegar à casa…


- Vem de viagem? Mas o senhor não pode deixar aqui a sua mala.


- Então posso levá-la comigo até lá dentro...


- O quê? levar lá dentro e se der maka?


- Que maka? O senhor está bem da cabeça ou faz-se?- perguntou já sem paciência.


O jogo de perguntas e respostas atraía mais gente à porta do banco. uns dando razões ao Kambuta e outros alegando que devido aos aconteciemntos dos últimos tempos em que muitos guardas foram driblados, o segurança estava certo. Kambuta operdia a paciência, perante um rasteiro vigilante que estava longe de um polimento urbano.


Sem dinheiro no bolso teria mesmo de enfrentar os autocarros, coisa que não fazia há mais de dois anos, desde que propositadamente fez o percurso Rangel/Viana para registar os cânticos anónimos. Mas de lá para cá muita coisa mudou. Pelo menos, dizia-se nos jornais, Rádio e televisão que muita coisa havia evoluído. Apregoaram-se autocarros limpos e cómodos, equipados com AC e silenciosos, com mais jornais em leitura do que falas dispersas


… Diálogo…

O primeiro machimbombo que por ele passou tinha a designação de Segura a Gola d’Outro e estava apinhado de gente. Tudo quanto ouvira levaram-no e pensar que se tratasse de um funeral e não desistiu da espera. O segundo, da companhia Tira o Colete e Ultima a Luta, também rebentava pelas chaparias. Desesperado tentou enfiar-se por um espaço que restava entre pernas mal colocadas na pequena escada do pesado, mas sem sucesso. Desistiu.


- Taxi, taxi. - Chamou ele deseperado.


- É 'scongolense, papoite. - Advertiu o cobrador.


- Quanto é a passagem?


- Preço da igreja meu papoite!


Pagou os primeiros Akz.100,00 para um percurso aproximado de 2km. Encontrou uma agência bancária com multicaixa e tentou a longa fila. Os Kwanzas acabaram e a reposição tardava com a mesma persistência com que o sol atingia o epicentro.


À saída da agência, colocou a mala sobre o lancil, à sobra duma velha acácia húmida de mijo. Riu de forma aberta, espantou os nervos e caminhou mais um trecho. Agora sem dinheiro e sem força nas pernas, Kambuta limpa a mala, esconde os óculos que o identificam com facilidade e mistura-se num aglomerado que aguarda pelos autocarros. Estava perante o último recurso.


- Não há escolha. – Introspectou.


Ao chegar à paragem o primeiro autocarro da companhia Tira Ultima Risada e Anda, Kambuta não titubeou e nem mesmo os passageiros à boca da porta o fizeram desistir. Estava já há duas horas na capital, tempo superior ao da viagem aérea em que transpôs mil quilómetros.


- Tomara que seja mesmo climatizado. -Falou aos botões.


Já dentro, os empurrões e os cheiros desencontrados davam-lhe as boas vindas.


Gelados de múcua , kikuanga , makayabo , kapuka madrugador, vómitos mal lavados e outras náuseas imundas fazia o cocktail fedorento.


- Moço,”mi disculpa” só paizinho! Toca mais à frente! - Ordenou a cobradora.


Próximo da porta frontal, que servia de entrada, uma jovem nos seus 15 aninhos reclamou:


- Pôça! Até cheiro de liamba? Para quê que não vão à pé? Alguém tem de ver isso. – Desabafou desesperada.


- Xê kanuca! ‘Stás a falar assim a quem? - A voz rouca e pouco higienzizada era dum jovem que aparentava 29 ou 30 anos. Estava ébrio. Diria mesmo encharcado. Grandes teriam sido as dozes que engolira na véspera e que faziam dele um evaporadouro de álcool etílico.


- Hum, falei pra ti? Olha então a cara dele… - Resmungou a jovem.


Entre reencontros provocados pelas travagens repentinas e contorções da viatura que soluçava ao encontro dos enormes buracos deixados pela chuva recente na estrada repavimentada, os passageiros iam tomando contactos mais íntimos. Corpo a corpo e suor no suor, qual molhados de fogo da paixão. Mais se parava, mais se falava e mais se ia trocando salivas das falas dispersas, deixando fervilhar no ar um perfume de aromas desconhecidos. E tudo mudava.


Os penteados desfeitos pareciam noites intermináveis de amor da puberdade ao passo que outros cabelos, industriais ou herdados de indianas, jaziam também sapato abaixo, naquele chão, evocando aos fios o sofrimento que é uma viagem num machimbombo de Luanda.


Foi nesse clima que Kambuta reencontrou a capital, a horas da declaração da Tolerância Zero aos desmandos dos automobilistas. Os cintos de segurança, os porta-bebés, os macacos, os coletes reflectores, as chaves de rodas e outros apetrechos passam a ser obrigatórios e as penalizações vão até ao tecto de 2 anos de salário mínimo.

Nas ruas as más-línguas apregoam que no dia primeiro de Maio haveria no largo da Cimangola um palratório de todos os candongueiros para reclamarem das vindouras multas policiais.


As boas línguas, porém, reforçam na media que ninguém mais abortará a aplicação da Mudança. Apregoa-se também, nos altifalantes públicos e privados de vocação pública, a inundação da cidade de novos autocarros. Políticos, empresários e pseudo empresários se revezam nas promessas e a “Revolução Viária” se torna palavra de ordem. A mesma ordem que ainda se confunde com a “gasosa” das multas adiadas em conversas de cavalheiros.


Já em casa, Kambuta, maltratado pela viagem, é recebido apenas por uma das filhas que o reconhece pelas rugas no rosto.


- Como foi a viagem papá?


- Terrível filha, terrível! Os autocarros são baratos mas bastante infernais. -Respondeu aborrecido.


 

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

UM PEQUENO PROBLEMA

O homem entrou fulo no avião da "Palanca Negra". Tinham-no acordado de manhã, muito cedo, para a viagem das seis e meia.
- Meu senhor, algo o inquieta?
- Sim, minha querida. Esse banco perece que não recua e viajar assim não é nada cómodo.
- Por favor, deixe-me ver. - Disse ela tentando confirmar a reclamação.
- Mas...
Nem terminou a desenhar o que tinha para disparar, a hospedeira rapidamente o convidou.
- Há lugares vagos lá atrás. O senhor quer vir comigo?
Meneou a cabeça e ficou a reflectir, emitindo um sinal parecido a um NIM . Mudar de lugar ou encostar-se à quentura da colega Bia sentada à sua esquerda?
As senhoras, colega e hospedeira, mantiveram-se caladas enquanto ele falava com os botões.
- Joãozinho, podes ir. Aqui vais sofrer.
- Mas esses senhores têm de reparar isso. Essas sucatas em pleno século vinte e um são uma aberração. Assim não pode ser. - Resmungou.
- Vou ficar aqui sofrendo ao teu lado que até me dá um grande prazer. - Ironizou para acalmar a Bia.
Bia apenas sorriu enquanto a hospedeira atendia a um "’tá-me doer" duma criança, algures no avião.
- Joãozinho, tenho um bom livro da professora Repolho. Acho que vais gostar. - Tentou Bia descontrair o clima.
- É sobre psiquiatria ou Geografia?
- Estás a ver aquele trabalho que te mostrei da outra vez? É relacionado.
- Ok. Quando o avião levantar voo.
Joãozinho tenta, com custo, compensar a noite não dormida e transferir os seus desejos mal terminados com a esposa para a mulher que lhe faz companhia.
- Felizardo de quem pega nesse pedaço! – Pensou sem o dizer de viva voz.
Joãozinho tinha ficado cinco dias em Luanda para trabalho e apenas por duas vezes pôde se entregar à quentura da "sua dona". O cansaço provocado pelo trabalho sem tréguas e outras preocupações familiares tinham diluído todo o seu tempo e motivação para o pagamento do "dízimo". Aliás, a segunda vez nem ao meio chegou, pois foi interrompida pelo grito enraivecido do telhado de zinco ao ser agredido por uma pedra madrugadora.
- Deve ser o motorista que chegou.
- Ai é? Dá-me o relógio...
Eram três da madrugada, hora improvável para a recolha ao aeroporto. Mesmo assim levantou-se e foi ver o que se passava fora do quintal murado.
- Passa a bula meu...
- Calma, mô ui, calma.
Eram dois jovens que buscavam inspiração num charuto de kangonha . Voltou ao quarto, aonde a amada o esperava, já sem prazer nem sono.
- Amor vem.
- Sabes que tenho de lavar a boca para não ficar a deitar salivas...
No fundo queria cuidar da assepsia matinal e buscar a última inspiração para retomar o que os liambeiros tinham interrompido.
- Ai amor, como me dói a hora da despedida.
- É. É tudo duro mas tenho mesmo de partir.
Não tardou o telefone tocou. Desta vez é da companhia que presta serviço de transporte à sua empresa.
- Alô, já está à porta?
- Não, senhor Joãozinho. É que queríamos pedir desculpas porque o motorista que conhece a casa do engenheiro faltou e ...
- Engenheiro não, Joãozinho. Se quer pode falar doutor.
- Sim sô doutor! Estamos com um pequeno problema.
- Está a me dizer que não me apanham...
A mulher que acompanhava de longe a conversa telefónica e ao subir do tom do marido decidiu intervir.
- Amor faz como das vezes passadas. Pegas o carro e vais à estrada principal, depois voltam juntos para deixar o carro no quintal.
Joãozinho, puxou pelo relógio para confirmar a hora que caminhava veloz.
- Pôças Joãozinho! Esses teus colegas são uns desmancha-prazeres.
Olhou-a nos olhos, deu-a um beijo na testa e procurou pela roupa. Tudo o que estava por fazer estava perdido e teria de esperar pela próxima folga.

Na sua cadeira, no avião, o homem navegava de sonho em sonho. Transpirava por dentro vendo retoques de beleza escondida num fato azul-marinho da colega, mesmo com os cacimbos visíveis já ultrapassados.
- Joãozinho, estás distraído? - Perguntou Bia.
- Não querida. Estava a pensar numa crónica de viagem.
- E qual será o tema?
Joãozinho ficou a pensar por momentos que o tema devia ser "como te vou pegar, meu pedaço?"
Mas ouviu-se a dizer, com o ar mais pacífico deste mundo:
- Hoje vou escrever sobre um pequeno problema. Sobre essa cadeira que não recua...



terça-feira, 6 de julho de 2010

TRABALHO E FESTA

Havia tempo que o homem não tinha sonos completos. Mal dormia. À sombra da crescente mulemba trazida do Muriege, pensava no que dava e no que recebia. A balança pesava-lhe negativamente. Sempre que pousasse a cabeça sobre o travesseiro da cama vinham-lhe ideias sobre os gastos da mulher em lojas de conveniência, os brinquedos e presentes para os filhos que mais chumbavam do que passavam, e dos enormes encargos com terceiros. De recompensa, tirando o amor e felicidade familiar, tinha nada de material. O carro era velho e caía aos pedaços, sem como o substituir. A casa era alheia, pois a própria tardava, adiada, vezes sem conta, pela parca poupança que o orçamento mensal lhe proporcionava. Até a roupa que usava, grande parte era conseguida no areió-arreió¹.

Durante trezentos e sessenta e seis dias daquele ano bissexto, Ndvumba wa Iena trabalhou de forma árdua. Tinha pela frente o sustento da família os encargos com a nova residência, o sustento dos parentes directos e amigos de peito e outras despesas. Tinha, porém, um hábito velho de que não se desfazia que era o de oferecer presentes aos vários sobrinhos no dia de Natal. Reunia-os todos em sua casa e, um a um, chamando-os pelo nome e anunciando os méritos e deméritos da premiação, atribuía o que a cada um cabia. Anos atrás de anos assim procedeu, sem em troca receber semelhantes elogios e estímulos, até que um dia pensou em homenagear-se a si mesmo.

No princípio do mês décimo segundo, Ndvumba procurou por uma loja da cidade e pediu que lhe arranjassem algo para presentear um amigo muito laborioso, bom pai de família e merecedor de uma distinção não muito cara, mas bastante honrosa. Pediu também que fosse forrado com o melhor papel de embrulho que houvesse e inclusa uma dedicatória àquele “grande senhor” da sua vida. Lamba Lia Musono, a funcionária da loja Kufupha Falanga, fez a preceito e como lhe fora solicitado. Ndvumba fez de tudo para que a surpresa não fosse descoberta, nem por si mesmo, que também não sabia o que continha o embrulho. Com muito custo lutou e venceu a ansiedade e a tentação.

No dia D, família reunida como de hábito em sua casa. Uma mesa estendida e decorada expunha os muitos embrulhos numerados e nomeados como de costume.

Irmãs, primas, sobrinhos (estes tinham aumentado durante o ano) amigos, parentes e até vizinhos, todos esperavam ansiosos o que cada um deles receberia de elogios e de recompensa material. Era assim que fazia havia já cinco anos.

Tângua lia Zao, o filho primogénito tinha sido promovido naquele dia em mestre de cerimónia, função para a qual fora preparado durante meses e que exerceria doravante naquele e noutros eventos correlacionados. Era a natural passagem de testemunho. Kuji ya Phembe assim fizera com ele, Ndvumba wa Iena, enquanto sobrinho mais velho e herdeiro tradicional do tio. Tângua estava entre a ansiedade e os nervos. Tamanha era para ele a responsabilidade em sair-se bem e ver, se calhar, a sua recompensa duplicada. Um bom presente, apesar de não ser dos alunos mais brilhantes daquele ano académico, e uma posição na família, enquanto porta-voz dos encontros e debates mensais.

O relógio marchava apressado, o sol do meio-dia queimava a calvície dos anciãos convidados, remetendo-os a uma sombra conseguida com o recurso aos lençóis estendidos no quintal. Os embrulhos expostos na mesa de jantar, transladada para o vasto quintal, pareciam também reclamar do sol, suor e da demora, até que Tângua lia Zao aparece no seu fato de Caqui brilhante que o confundia com um cantor da nova vaga.

Tângua saudou pomposamente os tios, primos e demais convivas e passou, de imediato, a palavra ao pai que procederia à chamada, nome a nome, dos premiados do dia.

E a lista começa com um pequeno discurso:

_ Por ter sido exemplar, foi aqui dito, por não ter fugido às suas obrigações paternais, por ter sido aglutinador de uma família que se quer grande e unida... pausa e indica para o mestre de cerimónia o embrulho mais vistoso e continua... ofereço a Ndumba wa Iena, eu portanto, esta prenda que reconhece o trabalho e esforços despendidos ao longo do ano prestes a terminar.

A família, entre olhares díspares, bate palmas e soam os vivas. Nos cantos, as velhas beliscam-se pasmadas. Coisa igual nunca se tinha assistido ainda. Mas todos se rejubilam e tomam nota.

- Ele também merece. - Atirou a matriarca Kaxina Kaji escondida nos seus panos de origem holandesa. A velha era pouco faladora e tudo o que dizia era carregado de uma grande sabedoria. Por isso, ninguém a reprovou.

Com os poros rebentados e suor a transbordar, recebe beijos da sua amada e chovem abraços dos sobrinhos que por instantes desviaram a atenção que prestavam àquela mesa dos presentes.

Quando se preparava para retomar a lista dos contemplados, estalou o champagne e tempo teve apenas para presentear o porta-voz que lhe faria o trabalho subsequente.
- As vossas lembranças estão aqui. Ser-vos-ão entregues pelo vosso irmão Tângua...

Todos os seus filhos e sobrinhos eram incentivados a tratar-se como irmãos. Ndvumba cultivava o espírito de irmandade que tinha apreendido com seus país e que resultava na família unida que eram. Seria então Tângua e distribuir os panos para a avó, os carros e bonecas para os primos e convidar os tios para o repasto. Ndvumba tinha proferido, por obras, um “Viva eu”!

 
Soberano Canhanga

quarta-feira, 16 de junho de 2010

LIVRO PRONTO PARA GRÁFICA

Caro frequentador desta página,
Convido-o a percorrer as páginas que foram reescritas e reavaliadas.
FALTA POUCO.
Boa leitura

domingo, 18 de abril de 2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Capítulo I: MARIA KATUMBO

ARIAEra no tempo da guerra e, na aldeia de Rimbe, no Libolo, Maria tem muitas preocupações sendo a maior delas o marido que está muito doente. O filho mais velho estava na casa-de-água e não pode manter contacto com o mundo exterior que é a sua comunidade. As meninas eram três e a caçula tinha apenas dois anos.

Maria vive os problemas mas nada a desarma, nem desiste. Acompanha o marido ao hospital de Calulo e, de lá, consegue que ele seja transferido para o Sumbe. Na capital kuanza-sulina não tem familiares e ela nem dinheiro possui. Como a saúde do marido se degrada a cada hora que passa receia o pior e decide levá-lo a Luanda onde tem um irmão empregado bancário e uma sobrinha no hospital sanatório. Para viajar só vê uma solução: destilar e vender makiakia cuja receita serviria para pagar a passagem num machimbombo.

Em busca de soluções, outro entrave se atravessa o caminho: um primo do marido, depois de embriagado entorna o tambor da makiakia em destilação, complicando ainda mais os planos da Maria, mas nem assim ela desiste. Obtém um empréstimo e chegam a Luanda, onde o marido viria a falecer uma semana depois do internamento.

Feito o funeral às custas do irmão, a viúva regressa desamparada, sem dinheiro, com dívidas por saldar e quatro filhos menores por cuidar. O mais velho, ainda na casa-de-água, tem oito anos e a menina mais nova tem dois. A tradição exige novo funeral, apesar de ser de faz-de-conta. E, passado um ano, o sacrifício de um bode para tirar o luto.

Mesmo sem armas, Maria não se sente desarmada e nunca desiste. Trabalha nas lavras, trabalha onde pode, tudo fazendo para manter a família e a cabeça erguida de quem pagou o que devia.

Entretanto chega o ano de 1984. A guerra apertava dias sim semanas sempre. Mais noites eram passadas nas matas, sob intensa chuva, expostos aos mosquitos e outros inimigos do homem, do que no casebre de pau-a-pique coberto de velhas chapas de zinco. Fartos da situação, mãe e filhos começam o “exílio”.

Refugiam-se na sede comunal da Munenga e é nesse mesmo dia, 15 de Fevereiro, que a rebelião armada ataca com toda a força e impiedade. O que restava dos haveres foi levado pelos guerrilheiros e a família refugia-se noutra aldeia, Samba Caringe, onde por um mês vive graças ao trabalho prestado nas lavras de aldeões locais.

Com tudo perdido, regressa, com as “mãos na cabeça” à aldeia de origem, a mais de 60Km. Junta, contudo, os trapos e as forças, até o limite extremo, arriscando a viagem para Luanda, com os filhos, onde o irmão mais velho de novo os receberia.

Falela Nganga, já na casa dos setenta, era pai de três filhos. O primogénito varão estava perdido na cangonha e bebedice. Vivia da pesca e das aldrabices num lugar qualquer da Ilha de Luanda e só em momentos de apuros visitava o pai. A menina estava casada com um militar da força aérea e tinha já vida feita. O caçula estava em local incerto no extenso Libolo. Para ser sincero nunca o tinha visto, pois a mãe partiu grávida e nunca mais voltou. Sabia apenas de ouvir dizer que tinha um terceiro filho sem nome atribuído nem registo. Casado em quartas núpcias e sem rebentos, via nos sobrinhos recém-chegados a consolação que lhe fugia desde 1978, quando se juntou a Nzamba-a-Lumingo.

A esposa, apesar da inquietude que lhe provocava a traquinice e imperícia à vida urbana dos visitantes, preferia fechar os olhos aos desmandos e desabafar à distância, nas conversas com as amigas do chafariz ou nas caminhadas para o cultivo na honga que ficava atrás do quartel da polícia montada do Kapolo.

Aos olhos do irmão, se não fosse o exíguo espaço daquela libata de madeira, Maria e os filhos teriam aí ficado por muito tempo, sem grandes incómodos, mas Falela decidiu conferir maior comodidade às famílias, a sua e a da irmã, e maior espaço para os sobrinhos que precisavam de estudar e brincar. Ao primeiro anúncio do inquilino dum anexo que possuía na rua do Kalissangue, Falela não vacilou e numa noite de sexta-feira, depois do culto metodista, anunciou à irmã:

– Katumbo! – era assim chamava a irmã – o Kitongo vai sair da casa pequena. Vocês vão mudar para lá e eu vos vou ajudar na comida e noutros gastos do miúdo que anda na escola.

Foi um misto de alegria e tristeza. A distância era mínima mas deixariam os sobrinhos de beijar ao tio na hora da saída para o trabalho e deixariam também de receber, em primeira mão, os figos que trazia dos jardins da casa do governador do banco nacional onde fazia jardinagem. Quem transbordava de alegria, apesar de contida, era mesmo Nzamba-a-Lumingo farta de ver a sua loiça quebrada pelos sobrinhos do marido. Mas no seu íntimo nunca se desfez a amizade e carinho pelos miúdos que também a ajudavam no acarretamento da água e lavagem da loiça.

Para Maria, sair do ninho obrigar-lhe-ia a aprender a esgravatar e a defender-se com as armas que ainda não possuía na grande cidade. No mato onde vivera até aos quarenta a principal actividade restringia-se à agricultura e ao cuidar dos filhos. Luanda tinha outros desafios. Era o comércio informal que mantinha os fogões acesos e as panelas em actividade diária. Maria começou por acompanhar a cunhada e as novas vizinhas nos negócios até se estabelecer como peixe na água, embora ainda em baixa profundidade.

Começou com uma venda de pequeno valor. Comprava no Mercado das Corridas quiabos, gindungo, sal e outras iguarias que revendia à porta de casa, no Kalissangue.

Com o decorrer dos meses o leque dos produtos foi aumentando e concomitantemente os valores empregues. Comprava milho e massambala para deles obter a farinha que tinha uma grande procura naqueles dias de fome. Os sábados eram reservados à honga, um pequeno retalho de terra cedido pela cunhada, onde brotavam abóboras para a mingueleka , os quiabos e a mandioqueira para a quizaca . Era dessa forma que os hábitos campestres também contribuíam para a melhoria da dieta e o equilíbrio da vida urbana.

Em seis meses Maria se adaptou na totalidade e já mantinha, sem recurso permanente ao irmão, o sustento dos quatro menores. Ajuda o irmão mais novo, um desertor do exército governamental, então com a designação de FAPLA, e os sobrinhos abrangidos para a vida militar.

Apesar de mulher carente não pensa no prazer de ter outro homem. Abdica de amores por amor aos filhos e esmera-se nos negócios da fuba de milho, peixe miúdo e outros bens de primeira necessidade, comprados e revendidos na candonga . Com a poupança, melhora as condições do casebre e junta dinheiro para recomeçar a vida destruída no campo.

Amenizada a guerra, em 1987, regressa à terra natal e recomeça a vida campestre, dividindo-se entre o campo e a cidade capital onde ficaram os filhos.

O mais velho afina a caneta e apruma-se nos mais variados ofícios: aprende a costurar e cedo se livra da compra de vestuário; aprende electricidade e resolve os problemas da casa e da vizinhança que agradece; monta uma turma de superação de dúvidas aos filhos dos vizinhos que recompensam. E a vida segue remendada.

Phande-a-Umba tinha bem guardada a lição do Ti-Chico. Era em surdina que a recitava de vez em quando para nunca a esquecer.

Ele era trabalhador agrícola na fazenda Israel. Em tempos livres, aqueles que seriam os do seu repouso, dedicava-se à lavra familiar de onde vinha o sustento diário. Do salário pouco se gastava. Era tão ínfimo que só ele o suportava. Mas tinha algo de bom: atribuía aos filhos o correspondente abono de família. Com os Kz 120,00 que cada um dos filhos cadastrados tinha por direito, comprava o vestuário escolar. Naquele tempo da formação do “homem novo”, os cadernos e os livros eram da responsabilidade da escola.

António Dambi, filho mais velho de um desafogado cafeicultor e curandeiro tradicional, tinha a mania de não depender do esforço do pai. Detestava a herança e trabalhava com as suas forças aquilo que seria o seu sustento e a herança para a sua prole de sete. Foi assim que em 1978 negou a fazenda do pai, a carrinha Land Rover de caixa curta e dinheiro vivo. Apesar da pouca instrução académica era bastante polido. António Chico, para os seus amigos de infância, tinha uma visão global muito rica para o seu tempo. Formação académica e profissional eram, a seu ver, os caminhos para o sucesso, como não se cansava de afirmar, quando se resolvia a chamar-me:

- Phande!

- Pai!

- Ouve! Um homem nascido numa família como a nossa tem dois caminhos para ser homem de verdade: a escola que te dará formação académica ou seguir uma profissão.

- ‘stá bem pai! Mas assim vou ser então o quê?

- Estuda! Quero que sejas professor para dar aulas também "nos" teus irmãos (nas aldeias todos os miúdos são tratados como irmãos) e se um dia faltar professor p’ra ti ponho-te na profissão!

Assim foi, vezes sem conta, com Phande-a-Umba, seu quarto filho, primeiro de segundas núpcias, e depois com o afilhado Kaúia, até expirar o último fôlego da vida. Esperava ele que a lição fosse aprendida.


Ti-Chico queria deixar uma herança espiritual que se reproduzisse de geração em geração e que o recordassem em cada sucesso e insucesso. Não muito feliz ainda, morreu Ti-Chico, numa altura em que a vida estava entre chamas ateadas pela guerra e marchas empreendidas pela população fugitiva. E tudo ficaria para traz; os conselhos, os pertences, a terra herdada e dos sonhos e a vida também.