segunda-feira, 20 de junho de 2016

O ESCURINHO DE BOTOMONA



O homem vinha cansado e saudoso dos seus. Marcava o tripper da sua viatura 948 quilómetros percorridos. Havia feito mais de catorze horas ao volante e perto de dez paragens, entre aquelas orientadas para a fiscalização preventiva do veículo e do seu condutor, ele no caso, e outras em que simplesmente abrandou para saudar as autoridades rodoviárias, falar sobre o percurso e reportar o que de importante encontrara ao longo do trajecto.

Botomona, ficava a menos de 70 quilómetros do destino e já sentia o cheiro do peixe banana que a mulher preparara para o seu jantar.

O Escurinho (nome de ocasião), dois riscos no ombro, altura de basquetebolista e negrura de mostrar apenas os olhos e os dentes quando falasse à noite, estava dum lado e do outro o interpelado Mona a Chico, o viajante.

- Boa noite, senhor automobilista. – Saudou Escurinho, depois da devida sinalização para abrandamento e acostamento da Maria (viatura).

- Boa noite chefe. - Respondeu Mona a Chico, esperando pelas perguntas da praxe cujas respostas tinha já decorado.

Do nordesta a Botomona, não se tinha deparado com acidente ou incidente digno de realce. Apenas ferro retorcido já com curva de idade que as queimadas do capim iam destapando à beira da rodovia.

- De onde vem e como está a ser a viagem? – Voltou a questionar o sargento da polícia rodoviária.

- Venho do nordeste e não me deparei, ao longo dos quase mil quilómetros com incidente ou acidente grave. Apenas a estrada é que vai cedendo aos buracos. Os vossos colegas, em todas as províncias por onde passei, também estão com uma atitude preventiva irrepreensivel. - Elogiou o condutor, enquanto juntava a papelada.

- Sim. Por cá, é por causa da peregrinação à Muxima.- Justificou Escurinho.


O interpelado exibiu os documentos da viatura e os dele e ligou-se à rádio desportiva para acompanhar os resultados da ronda do Girabola. Havia já hora e meia que apenas se ouvia música e vinheta sem locutor para anunciar os resultados da ronda ou a hora que corria ao desgosto dos expectantes amantes da bola na relva.
- Alguém vai "mamar pastilha" na rádio Meia Dúzia! - Disse para si mesmo. Se calhar o locutor substituto da tarde desportiva se tinha ausentado sem que o substituto chegasse, acrescentou em suerdina.

Mona a Chico era conhecedor das andanças da Rádio e estava familiarizado com aquilo. Pena foi não ter ninguém no carro para ouvir o seu esperiente desabafo, para além da própria "Maria" (viatura) com quem conversara durante todo o trajecto. E não tardou para que o interlocutor fardado que fiscalizava os documentos aparecesse com outra questão.
- O seu seguro está caducado e isso dá multa. – Disse ele, com o bloco de notificações e esferográfica à mostra, em sinal de força persuasiva.

- Repare bem, senhor sargento. Renovei o seguro contra terceiros em Maio deste ano e vai até 2016. – Disse-lhe Mona a Chico, exibindo o certificado.

O homem da estrada acendeu a lanterna, confirmou e desculpou-se. Mas sacou da cartola outro gato.

- Onde está a taxa de circulação, senhor automobilista?

Já a desconfiar que havia gato escondido com rabo de fora, o interpelado ganhou coragem e decidiu explicar’-se tim-tim por tim-tim.

 - Senhor Sargento, comprei o carro em Fevereiro deste ano e, tanto quanto sei, o seguro obrigatório tem a ver com o ano derradeiro.

- Mas o livrete tem a data de Novembro de 2014. - Voltou a colocar o homem, aparentemente sedento de alguma inconfissão.

Com a paciência já em falta o "amigo da estrada" sacou da factura e da guia de entrega da viatura pela concessionária e juntou aos documentos em posse do fiscalizador.

- Chefe, eis os documentos de compra. Aqui tem a data em que o carro saiu do parque para a estrada...

O homem, farda azul escuro e colecte reflector verde com barras alface, marcou dois passos atrás, acendeu novamente a lanterna, rodopiou sobre si mesmo e voltou a tirar a sua última cartada.

- Tem mala no banco traseiro que em termos do novo código é bagagem. Está em conflito com o artigo 56 e vou ter de multá-lo.
Habituado a tratar a estrada por tu, quer na sua viatura quer em boleias, aquela colocação do fiscalizador, parecia ter caído dum planeta ainda em estudo. Mona-a-Chico teve de sorver ar fresco, daquela brisa que se forma entre o Atlantico e o Kwanza, para ganhar força e continuar o debate que quase lhe ia algibeira adentro.
- Posso ver a letra do artigo? – Solicitou Mona a Chico, já aborrecido mas sem o demonstrar no discurso.  

O polícia titubeou por algum tempo, procurando por uma resposta que soltou segundos depois. Quase um minuto de gagueira.

- Não tenho aqui o codigo, mas o senhor devia saber. – Atirou com alguma rudeza discursiva Escurinho que se mantinha focado no seu "pente". Afinal tinha chegado o "sábado da boda" e todo o grão que se podesse angariar faria bom serviço ao "papo".
 

- Senhor polícia, confesso-lhe que não conheço a letra do artigo que citou pois não trabalho com essa matéria e nunca mo disseram, pois conduzo há já muitos anos e mesmo hoje parei diante de seus colegas mais de dez vezes, sem que me tivessem falado no tal artigo 56. Por ventura, o senhor pode exibi-lo para convencer o cidadão?
O  Senhor deve ter de cor ou exibi-lo em texto documental. Nao é o que diz a constituição? Quando se tiver de multar ou prender o cidadão tem de ser convenientemente esclarecido sobre as razões da sanção. Ou deixou de ser assim?! – Jogou Mona-a-Chico o que lhe parecia ser o último argumento para se livrar daquela isca.

O  Senhor é que deve ter de cor ou exibir em texto documental para convencer o cidadão. Nao é o que diz a constituição? Quando se tiver de multar ou prender o cidadão tem de ser convenientemente esclarecido sobre as razões da sanção. Ou deixou de ser assim?! – Tentou convencê-lo Mona a Chico.
Encostado à estrada (noutras circunstâncias seria à parede daquela antiga igreja em reuínas em Botomona), o homem saltou a linha da força dos argumentos racionais e passou para o lado da razão da força.

- Ou o Senhor assinas a notificação (que ainda não tinha passado) ou vou te prender por desacato à ordem. – Ameaçou Escurinho autoritário.

 
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- Deste jeito, não assinarei a notificação que ameaça preencher e se me prender saiba já que quando o carcereiro abrir a porta para me soltar da cela, você estará entrando nela. - Disse o condutor, já com paciência aos retalhos, o que fez abrandar a postura ameaçadora do fiscal de trânsito.
- O Senhor é polícia ou militar? - Recuou o fiscalizador que aproveitou chamar um colega, um risco em cada ombro, para ir "explicar no senhor" o artigo 56 do codigo de estrada de Angola.

Quando o segundo homem de farda azul, mais polido, se apresentou, o automobilista tinha ao telefone um oficial general da corporação a quem estava a reportar a interpelaçao, a ameaça de multa e a ausência do citado artigo 56 que "proibe o transporte de sequer uma mala de roupa no banco traseiro de uma pick up de cabine dupla".
- Chefe, tenho mala no banco da trás da pick up e o sargento regulador diz-me que me vai multar por transgressão ao artigo 56 do código, chefe, já que ele não tem, pode dizer-me se tal colocação é verdadeira?

O telefone estava em viva voz. Ali mesmo, os homens que cuidam da segurança das pessoas e dos bens trocaram, trocaram cortesias e senhas parta que pudessem certificar-se de que não era um impostor na linha.

Sem mais palavras, o automobilista viu os seus documentos devolvidos pelo sargento de uma risca, o mais polido.
- Será mesmo que não se tem transportado nem um saquinho de compras no banco de trás? - Questionou o automobilista, em jeito de retirada, ao segundo homem, recebendo desse apenas um cordial aperto de mão e um "boa viagem, amigo automobilista".

 
 Texto publicado no Semanário Angolense de 26.09.2015

sexta-feira, 10 de junho de 2016

KISÂNGWA DE GENGIBRE


Há alguns anos. Não muitos anos ainda, quando chutávamos despreocupadamente à bola de trapos ou outro objecto qualquer para aliviar a distância de casa à escola do povo, no dizer das crianças, eram as tias das panelas grandes e brilhantes ao sol de Abril e canecas, também de alumínio brilhante como nunca, quem vendiam kisângwa adocicada com que empurrávamos pedaços de bolinho ou galetes estômago adentro. Só elas também eram vistas a comprar e vender aos pedacitos o famigerado gengibre. As kotas e os tios que pegavam em pedaços de cola, carregada de acidez, ou gengibre ajindungado eram rapidamente rotulados de langas ou outro ganhavam outros epítetos menos honrosos.

- Esse kota deve ser retrô! (alusão aos retornados angolanos, depois de exilio em país vizinho) - Dizia-se em surdina ou num canto distante colado ao ouvido do companheiro.

- Xê pioneiro, cuidado com a língua. Se o mano te ouve vai te dar kibetu ou dar parte na tua mãe. Não queremos bandidos no bairro. - Advertiam as senhoras da Kisangwa, sempre maternalistas mas também policiais, vigiando-nos quase milimetricamente para não descarrilarmos.

Meninos da kangonya e diazepam como hoje quase não havia, tirando aqueles incorrigíveis pela simples censura colectiva, que eram já designados como #os perdidos gregos#, cuja surra do dia a dia  era para eles elogio. Esses sim, eram detestados pela comunidade e até mesmo pelas próprias mães cujo amor que diziam sentir era só de fingimento.

Nas caminhadas, o sol, a poeira, as basulas, só para aborrecer o amigo e companheiro quando se estivesse já próximo de casa, vindos da escola, caminhavam connosco abraçados. Era ao abeirar-se da porta do quintal que a basula ao companheiro se fazia presente, sendo mimoseado com um vai pra aquilo ou uma pedra a beijar o ferro duro do portão.

- Amanhã vou te apanhar na escola, vais ver só, seu feio e faquiri duma figa! - Consolava-se o ofendido. Mas tudo ficava por aí. O dia seguinte seria de outras cumplicidades na fila do apinhado depósito de pão, nas trambiquices da bola no pelado, das inconfessáveis praias no Bungo ou Chicala de que as mães raramente desconfiavam e da cooperação na resolução dos problemas matemáticos da tarefa escolar.

Naquele tempo, de pouco ter e muita procura do ser e da honradez, o lixo não era amigo. Não nos visitava tanto a ponto de connosco pretender morar. O consumismo e a descartabilidade estavam ainda noutros dicionários não acessíveis a todos os angolanos do cartão da loja do povo e das filas nos talhos. Pedaços de madeira descartados no serviço atendiam o carpinteiro dos banquinhos para as tias das kitandas e da Kisângwa à porta de casa ou da escola. Latas de leite eram carteiras quando não faziam panelas chiar nas casas em que a palha da serração fazia o papel de gás e carvão. Até as escolas tinham-nas em quantidade e qualidade que se traduzia nas marcas onde o nido se destacava.
- Xê, fila da goda! Vocês tomaram nido no mês passado? Tô pai já gasta nas lojas francas ou viajou pro estrangeiro? - Perguntavam os petizes  habituados a ver o colega sentado numa lata de marca corriqueira. A atenção dos rapazes, sobretudo, em relação às novidades dos colegas era tão grande que quem aparecesse com roupa ou sapatos novos era logo brindado com felicitações amistosas.
- Xeie, fulano chamou! São novos ou do Asão? Perguntavam, referindo-se ao mercado do Asa Branca, ao Cazenga, que se tornou célebre por aí ser comercializada muita roupa e calçados usados, doados por organizações não governamentais.

Os papelões tinham uma utilidade qualquer. O ferro, mesmo retorcido, servia para as faças fogareiros e outros artefactos. Os pedaços de chumbo também eram reciclados e davam forma a outros objectos como os que davam peso às redes de pescadores da saveia, matona e lambula. As latas de salsichas e de óleo maná (alimentar) serviam para candeeiros que se expunham em lojas de referência e cantinas, depois de passadas pela arte do funileiro. Até as garrafas de vinho e cerveja eram cuidadas para serem devolvidas inteiras ao revendedor e à fábrica quando não recortadas com engenho para servirem de copos.

A mizangala desocupada não se kangonyava ainda como hoje. Apenas  se kacilingavam (do umbundu kacilingi cimwe) os kotas sem arcaboiços para convencer as manas mais vistosas do bairro. Outros se kapukavam de reco-reco cinquenta ou búlgaro cem Kwanzas. Algumas manas sobradas, por causa da vida fácil com os cooperas regressados à estranja, se migostavam para prender os kotas regressados ou fugidos da vida Kwemba e que procuravam recuperar a vida perdida. Mas eram poucas as mulheres que se entregavam à vida fácil entretidas nas latarias dos cubilas e grades de cerveja dos francós das lojas francas. As jovens queriam e procuravam mesmo era homem para as manter e formar família.

- Vais me fazer pedido com todos os deveres? - Questionavam ao que o cavalheiro candidato respondia com acções e não com as palavras de hoje que o vento leva.

Fora do acompanhamento à kisângwa, os kotas não se gengibravam como hoje, ao que dizem, para calibrar o divumo (diminuir o tamanho do tanque) e aumentar a potência da torneira. Caminhavam sem esforço e nem reforço. Trepavam montanhas sem tração. Era a força das caminhadas longas, sem táxi nem dinheiro para autocarros que os fazia fortes e valentes. E conseguiam convencer e atender até a Zaida Kimbundaria do romance do Ismael Mateus. 

Hoje, tempos do corre-corre, do tenho e proponho, até ngongwenya de gengibre já há.
- Compra gengibre para não usar táctica do galo, subiu e desceu! – Convidam as vendedeiras espalhadas pelas ruas da urbe.

E lá vamos introduzindo na dieta um novo elemento ajindungado, mas também açucarado. É farinha de gengibre. É sumo de gengibre substituindo a kisângwa. É refogado com gengibre... E quão gostoso ele é?!

quarta-feira, 1 de junho de 2016

CUANDO CUBANGO: TERRA QUENTE




No dia 17 de Fevereiro, a temperatura máxima foi de 34 graus. Há alguns anos eram as bazucas e o tri-tri-tri das kalashenikovs mortíferas que aqueciam as "terras do fim do mundo", hoje rebaptizadas por "terras do progresso" que é visível nos rostos das pessoas e nas margens das estradas onde despontam novos edifícios construídos de raiz e outros coloniais que depois de estropiados, beneficiaram de restauro e ou ampliação.

Onde haja muita utilização de cimento, ferro, pedra, areia e tinta há crescimento. Governo e particulares vão fazendo a sua parte. O primeiro investe na habitação e instalações para prestar serviços básicos como educação, saúde e água, ao passo que os cidadãos com algum capital financeiro vão igualmente investindo em serviços e comércio. As ruas largas de Menongue estão semaforizadas e o Cuebe "assiste" apressado a sua ponte histórica em reparação. O palácio do governador confirmou o nome e uma nova cidade se ergue na saída para a comuna de Caiundo.
Dizia-se no tempo da guerra pós-independência que em Caiundo só havia porta de entrada e não a de saída. Aqui, na província do KK, a rebelião tinha a sua base central, Njamba, e os sul-africanos de aparthaid que apoiavam os insurrectos não se cansavam de despejar bombas, medo e terror sobre os angolanos. Basta ver, aí onde a simples reparação não atende, como ficaram os imóveis bombardeados ou dinamitados.
Um ex-Fapla do Ebo dizia mesmo:
"Em Caiundo, fomos e voltamos. Não brinca. Eu e o comandante Kuluzele (Cruz), AK nas costas e pistola silenciosa na mão, só pólvora e 'candáver'. Vai lá se regressas seu mabeco"...
Felizmente, são estórias do passado que ficam para a história. Hoje, a preocupação é outra. É atrair cérebros enquanto se vão formando homens e mulheres locais nos vários institutos médios e na nova universidade pública criada para Cuando Cubango e Cunene. É trazer tudo o que haja de melhor para essas terras que não devem nada às outras regiões angolanas afastadas do Litoral. A pequena indústria vai engatinhando e com a reabilitação do Caminho-de-Ferro do Namibe, reconstrução e construção de novas rodovias, os turistas e empreendedores vão chegando dia sim, semana também.
Eis-me na continuação da EN 140 que vai de Menongue ao Caiundo.
Redijo este apontamento no espaço em que o governo publicita a construção de mil residências sociais. A empreitada ainda não está terminada mas há já casas concluídas e habitadas, umas em acabamentos e outras em início de construção.

 

 Antes que me esqueça, um puxão às orelhas dos condutores imprudentes. As estradas são para a vida, para delas desfrutarmos os benefícios da paz e não para a morte.

Desafiem as estradas mas nunca a vida que é única. Há muito país por ser descoberto sobre rodas.
Não gostei de ver a forma como ficou o Toyota corolla (nas imagens) que trafegava no trajecto Menongue-Cuito Cuanavale e que ceifou quatro vidas. Contaram-me que "uma camioneta Mitsubish Canter que ia a frente do corolla preparava-se para virar a esquerda, tendo o turismo ido ao seu encontro".

 Ali mesmo, tufas. Nem só um "ai ué". - Contaram os testemunhas oculares que removiam os restos da viatura.
Depois do estrondo, apenas um silêncio total. Foi a 19 de Fevereiro 2015.
E como na estrada nem tudo é tristeza, mostro as imagens do campo relvado da comuna do Longa, município do Cuito Cuanavale, a meio caminho entre a histórica vila e a cidade capital do Kwangu nyi Kuvangu.