sábado, 24 de dezembro de 2022

KATEMBA KEVALA O "CINCO LITROS"

Nasceu algures. Longe no tempo e na geografia. A Lunda foi terra de desterro, no tempo dos contratos camuflados, pagos com fuba rejeitada, peixe podre e porrada, se refilasse. Kaputu estava no poder e o mumbundu de abaixo da vida de um cão colonial morto de sarna.

Vila Luso e Vila Teixeira de Sousa são os únicos nomes de terras distantes de que se lembra. A sua embala, no planalto do Vye, é desconhecida do mapa mundi e por mais que a grite ninguém dela tem memória. Longe da terra, dos pais e dos folguedos de juventude mutilada, passeiam-lhe no pensamento apenas os pássaros, as danças à volta da fogueira com aquelas kafeko de seios encajuados e o cheiro da chuva. Sim, o cheiro da chuva caída na madrugada do dia da desgraça.

Pelo Luso apenas passou quando fez a sua primeira viagem naquele comboio movido a brasas de eucaliptos. Pela Teixeira de Sousa apenas parou para ser acorrentado ao pescoço com outros vyenos e conduzidos à Bed Ford que os levou à vila Henrique de Carvalho, escala para Portugália, numa empresa de diamantes.

- Meus akunlu, meus antepassados, meus espíritos - cantava dia e noite quando folga houvesse – mostrem-me onde estou e que caminho devo tomar para regressar ao kimbu.

Os amigos, outros contratados mbalundu, alcunharam- -no de «Cinco Litros». Seu nome, Katimba Kevala, há muito tinha caído no esquecimento. Na roça, na mina ou em casa de um patrão ocasional, carregando picaretas ou cascalho, Katimba Kevala levava sempre uma mochila às costas, na qual estava alojado um garrafão de cinco litros repleto de kacipembe ou walende. Uma cortiça evitava a evaporação e o entorno do destilado que lhe chegava à boca através de uma canalização arrojada.

Um dia, quando chamado para capinar o terreno à volta do posto de socorro da Companhia Kamanga, encontrou já umas tubagens minúsculas que servem para canalizar o soro fisiológico.

Chegado à casa, juntou a arte ao engenho e do garrafão alojado na mochila à sua boca foi meio caminho. Qualquer biscate em casa de gente com dinheiro servia para abastecer o seu garrafão de cinco litros.

Aguentou os dois anos de contrato, uma forma de moderna escravatura luz-e-tana, como peça de trabalho força- do. A dureza do acampamento fê-lo construir uma palhota com duas divisões: o dormitório e outro que chamava de cozinha. Na verdade, não passava de quatro paus planta- dos no solo, um tecto de capim e uns ramos barreados que travavam os bichos acossados pela chuva e os ventos mais violentos do Nordeste.

Resistiu às mulheres mais adornadas da região e às kaxinakaji carentes de calor. O seu calor era o conteúdo do seu garrafão de cinco litros. Esse sim, era o seu melhor amigo e consolo em dias de má memória.

Embora ferido na carne e na mente, Katimba Kevala guardou sempre o sonho de liberdade, a esperança de ver os seus semelhantes na posição dos brancos que mandavam, que queixavam à administração, que batiam de forma indiscriminada, que faziam do corpo do negro seu saco de treinos. E fez um plano.

-No dia do pagamento. Ekumbi lyo kufeta ekumbi lyange. (O dia do pagamento é o meu dia). E comprarei caçadeiras e pólvora. E inverteremos as bandejas. Treparemos montanhas. Gritaremos alto também. Era sua canção encriptada em língua gentílica. Poucos a sabiam decifrar.

Os homens trazidos pelo comboio estavam visivelmente esgotados e as mortes eram notícia constante. A farmácia já registava uma gritante carência de antibióticos e, mais dias menos dias, aquela colónia estaria sem homens. A companhia decidiu chamar o intermediário, também conhecido como contratante, para pagar os escravos e levá-los de volta. Em substituição pediu homens fortes. Mbalundu jovens que não tenham desperdiçado vidas no walende ou kangonha. Lopes da Sé, o funante para seus conterrâneos, era o homem que percorria as al- deias interiores com cipaios à caça de nativos, cuja força de trabalho vendia aos belgas e ingleses da Companhia Kamanga. Foi chamado pela companhia para receber a paga: a sua e a dos serviçais mbalundu.

Cinco Litros tinha acabado de chegar do alambique quando foi avisado que o pagamento e o regresso estavam para dias. Colocou-se junto ao muro do quintal de Lopes da Sé que não demorou em chamá-lo para arrumar as imbambas que levaria à nova missão de rapina.

«Cinco Litros» atento ao trabalho e aos detalhes do que ia acontecendo em casa do luz-e-tano Lopes da Sé, assistiu à chegada da mala de dinheiro que o angariador de escravos modernos escondeu de baixo da cama. Findo o trabalho, fingiu despedir-se e rumar à sua palhota. Mas apercebendo-se da saída de Lopes para festejar a mala cheia e tomar umas imperiais com o primo que chegara da metrópole, Cinco Litros abeirou-se da casa e fez-se cama abaixo, levando para um esconderijo que abrira na sua cozinha a apetecível mala do pagamento.

A noite foi de rusgas e interrogatórios. Todos os contratados e empregados livres estavam sob o olho da pidesca judiciária. As saídas foram suspensas e as compras nas lojas sob o olho atento do comerciante que tinha um menino pronto para avisar a polícia. Os que apresentassem notas de cem angolares eram automaticamente despojados do valor e encaminhados à administração, onde eram recebidos com valentes palmatórias até descobrirem o que não fizeram.

Cinco Litros manteve-se tranquilo. Foi gastando as no- tas inferiores nos seus alambiques, uma a uma. As maiores levar-lhe-iam a cumprir o sonho guardado a sete chaves. Fazia o seu trabalho diário e nunca a polícia desconfiou dele. Viveu à grande, na sua pequenice, mês e meio, até que as cédulas inferiores se esgotaram. Aos seus consortes dizia apenas que estava a "gastar o fruto do seu trabalho durante dois anos de penúria.

-Estou a consumir o meu sangue e o suor de anos de escuridão.

Ninguém o levava a sério, dado o seu estado de kacipembado permanente.

Sem dinheiro miúdo, Cinco Litros levou uma cédula de cem angolares ao alambique de Kexilemba, mulher respeitada na Lunda. Pediu para que a trocasse em notas miúdas que gastaria inteirinhas na sua destilaria.

-Vou tentar – Concordou a mulher, católica praticante e temente ao Deus trazido pelos colonos.

A mulher tentou e acabou detida. Os seus negócios conhecidos pelos brancos da companhia permitiram sus sol tura. Mas a nota retida ficou.

Era sábado. Lopes da Sé e o administrador Xavier Martins estavam insatisfeitos em ver o tempo passar sem que uma pista sobre a mala do pagamento tivesse sido encontrada. Um padre bufo foi recrutado sacristia adentro. Kexilemba, domingueira, foi ao confessionário do padre pide.

- Filha de Deus, como vão seus negócios? - perguntou o padre pidesco, procurando conversa.

- Os ningócio vai bem, sô padre.

- Então conta-me quantas notas de cem angolares recebeste nesta última semana.

- Só uma, sô padre.

- E de quem recebestes os ricos angolares? É voz de Deus que te pergunta, minha filha.  

- É do Cingo Litro, sô padre...

Enrolada pelo padre, Kexilemba o segredo do dinheiro contou. E seu irmão entregou.

Cinco Litros foi amarrado e deitado sobre a roda da Bed For. A sua sorte estava dependente do resultado do desbarate que sofreria sua casa.

Homens fortes, provenientes doutra margem do Luachimo, foram enviados à palhota do infeliz. Arrancaram o colmo e nada. Desplantaram os troncos e nada. Enxadas, picaretas e pás um metro de terra removeram.

À primeira picaretada a relva foi aos ares.

- Fogo! Fogo! Lenge-no!

Correram os menos corajosos e pasmaram-se os mais destemidos. O contacto entre metais, picareta e mala me- tálica do pagamento fez estalar uma fagulha. Estava descoberto o segredo.

Lopes da Sé encarregou-se ele mesmo de desembraiar a Bed Ford e despedaçar -Cinco Litros, cujo corpo foi alimentar os répteis famintos do Luachimo.

Não se sabe exactamente há quanto tempo ocorreu isso, mas até hoje sua fama ainda corre o leste e o trecho do rio em que foram jogados seus pedaços é conhecido como a lagoa do Cinco Litros.

Nota: adaptação de uma estória contada pelo ancião Jorge Lopes, em Mwono Waha, Saurimo, a 11 de Novembro 2014.

Publicado pelo Jornal Cultura de 15.03.2023

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O SALÁRIO DO ARLINDO E O CÁGADO DO METRO

Manhã de domingo, seis horas. O meu sono ia ainda à quinta velocidade, mas, sendo tropa antigo (que não dorme) fui a tempo de ouvir o Arlindo (13 anos por completar) a despedir-se:

- Mamã, bom dia!
- Bom dia, filho! Aonde vais tão cedo?
- Eu vou trabalhar. - Respondeu altivo e cheio de humor.
Dentro de mim, as palavras que não saíram começaram a tilintar.
- Que bom! Um filho, menor, que tem (quase) tudo e ganha gosto pelo trabalho é orgulho. Uns cultivam-se em gastar e sonhar com o que o papá vai deixar como herança. - Pensei.
No diálogo conciso que mãe e filho fizeram ainda retive outras passagens:
- Tens dinheiro para táxi?
- Sim. Ainda tenho do meu primeiro salário.
Passavam exactamente sete dias que o Arlindo havia recebido o primeiríssimo salário de sua vida. Foram Kz 15 mil que fez questão de distribuir (voluntariamente) da seguinte forma: 2 mil para a mãe (também dona da empresa), 2 mil para o papá (que acabou recebendo mil ao ver o dinheiro a acabar), e 4 mil que distribuiu para as três irmãs e ao sobrinho Joshua. É aqui que entra o cágado do Metro, um jovem da aldeia de Panga-Panga, antes do Kulangu, para quem trafega de Kanjala ao Lobito.
Em viagem para Benguela, fiquei a pensar no que compraria com a minha porção do primeiro salário do Arlindo. Devia ser algo utilitário e duradouro que levasse, quando atingir a fase adulta, o Arlindo orgulhar-se de ter começado a trabalhar voluntariamente aos 12 anos e ter distribuído o seu primeiro ordenado. Mas mil Kwanzas era coisa pouca aos preços dos "utilitários e duradouros".
Pensei depois em algo que vivesse o tempo de muitas vidas. Algo que tenho com bicho-de-estimação e que contasse muitas estórias, eventualmente até a meus netos vindouros.
Quando ia a passar a aldeia de Panga-Panga, vi sacos de carvão vegetal à venda. No local eu havia comprado, há um ano, três jabutis (semelhantes ao cágado,  mas sendo eles totalmente terrestres ao contrário do cágado que divide a terra com a água doce). Parei e gritei (disfónico) com a força que me restava:
- Aqui já não vendem mbew?¹
- Ó mano, esse tempo já não costuma aparecer. - Apressaram-se em responder as mamãs do carvão.
Porém,  da pequena kamunda², vi um rapazola correndo em minha direcção e trazendo na mão algo que se parecia a um minúsculo objecto, uma pedra, vista de longe, e gritando:
- Ó tio, está aqui!
Olhei para ele. Era um jabutizinho com uns dez centímetros de envergadura.
- Quanto é?
- É dois mil. - Respondeu a olhar para o carro.
- É a mim que deves olhar nos olhos e estipular preço. O carro é do patrão. Baixa mais o preço.
- Leva por mil e quinhentos. - Respondeu o Metro.
- Só tenho mil. - Regateei.
- Está bem pai.
Paguei e pedi que guardasse o animal até sábado, quando estivesse de volta a Luanda.
- Se durante a semana você encontrar outros,  guarde-os para mim e pagarei todos. Trocamos nomes e fui à "cidade mãe das cidades" angolanas.
Sábado, 04 de Junho, de regresso à capitalíssima, passei pela aldeia do Metro que me entregou o "cágado". Era único.
- Ó tio, não encontrei mais. Nem os meus amigos. Agora está difícil. - Explicou-se.
Recebi feliz, pela sua seriedade. Não se escapuliu. Com os mil Kwanzas do 1° salário do Arlindo, que trabalha como voluntário na empresa da própria mãe, comprei o jabuti que vai crescer, ter vida longa e ouvir contadas muitas estórias à volta dele.
=
¹- cágado/jabuti (Umbundu)
²- pequena elevação/monte.

Publicado pelo Jornal de Angola a 02.10.22

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

ANGOLA, FRELIMO E COINCIDÊNCIAS

A história da colonização portuguesa, com apetites ingleses pelo meio, o mapa cor-de-rosa, as rebeliões nativas, a tomada de consciência nacional, a frequência de mesmas escolas metropolitanas, a passagem pela CEI¹ e a mobilização para a luta armada que levou às independências são comuns. Tirando pequenos laivos de "excessivo apego à estrutura sintática", para os luso-índico-africanos, e refinada dicção, a roçar ao tuga alfacinha, para os luso-afro-tropicais-atlânticos, é tudo, como se diz em Umbundu, walisetahãla²!

Há angolanos, mais pelo interior, sobretudo os que frequentaram missões católicas que reverenciam a sintaxe, mas descuidam a prosódia. Assim como os há, sazonalmente, em Moçambique. É por isso que sem alistar os santomenses, netos de nossos antepassados aí levados para povoar as duas ilhas perdidas no kalunga lwiji³, os kanimambu⁴ são os nossos irmãos siameses no comportamento social, nas cleptomanias, e no que só Mia sabe descrever.
Falando em Mia Couto, biólogo que, para mim, é nobável⁵ sempre que o leio nas suas caracterizações de Mussa Al-Bike, penso que ele é meu vizinho, colega de trabalho e confessionário de mesmas crenças e dogmas. É tanta coincidência entre os dois países banhados por oceanos distintos!
Conta-se que estando em Moçambique dois angolanos, idos do Ndongo, decidiram procurar por um restaurante à beira-mar, em Beira, onde encontrariam apetecíveis garoupas grelhadas, regáveis com as mais suculentas produções vinícolas lus-e-tanas.
- Bem-vindos queridos fregueses. Aqui tem de tudo: peixe, mariscos, frutos do mar, petiscos e bons vinhos portugueses e mandelenses. - Convidou Hibrahima, mulher de pele achocolatada aparentando ascendência etíopes.
- Boa tarde e muito obrigado pelo convite. - Respondeu António Tandela, meio reclinado, veniando a donzela, enquanto o companheiro retirava o boné da cabeça.
- Em que vos pode valer a minha serventia, cavalheiros? - Perguntou Hibrahima, ao mesmo tempo que minuciava os gestos, sotaques, o brilho e o aroma que os recém-entrados expeliam.
- Há bons dias que não passamos de carnes e aves. Hoje é peixe que queremos: calafate, garoupa, pungo, o que houver de bom. - Respondeu Dias, até então calado.
- Traga-nos também a carta das pomadas⁶. Este sol pede um bom litro⁷. Para mim, água de côco. - Emendou Tandela.
Hibrahima tomou nota do pedido no bloco de apontamentos que levou à cozinha e ao bar, deixando lacrados no cérebro as informações descritivas sobre os dois cavalheiros.
Feitas as diligência, e quando as garoupas mostravam já as espinhas dorsais e a garrafa de Don Juan e verter por baixo, Hibrahima, no papel de boa anfitriã, voltou a questionar.
- Desculpe, senhor Dias. Vocês me parecem de Nhambate, pois não?
- Nhambane? Nem conhecemos ainda. Nós somos angolanos. - Retorquiu Dias procurando saber o porquê da colação a Nhambane.
- É que, pelo vosso sotaque, só podem ser de Nhambane. Tenho certeza porque já lá vivi e convivo com muitos nhambanenses. - Explicou arguciosa.
Nisso, Tandela que inclinara as últimas gotas do envelhecido Don Juan entrou em cena procurando por um documento que levasse Hibrahima a dirimir as dúvidas.
- Só um momento minha senhora e já lhe mostro que somos mesmo angolanos. - Apelou, tentando encontrar, entre os papéis no bolso interior do casaco, um documento que indicasse a sua proveniência. Não foi, porém, a tempo, pois Joia, uma garçonete que se achava a poucos metros, atirou em seco.
- Porquê que vocês da Frelimo gostam tanto de mentir? Depois da refeição, se quiserem conhecer Beira, podem ligar para mim que já estou no fim do meu turno. Aceito jornada after work.
Trocaram nomes e telefones para o intercâmbio de culturas, odores e suores nos dias que faltavam à missão. Quanto à língua herdada da colonização e aos sotaques, ficou provado. Angola tem tudo de Moçambique e vice-versa!
==
¹ Casa de Estudantes do Império.
² Parecidos.
³ Mar, aceno, imensidão.
⁴ Alusão a moçambicanos. Saudação.
⁵ Merecedor de prémio Nobel.
⁶ Alusão ao vinho tinto.
⁷ Garrafa.
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Obs: Publicado pelo Jornal de Angola de 04.07.2021

sábado, 1 de outubro de 2022

VULAMA LEVA MANGODINHO A TEIXEIRA DE SOUSA

Quando lhe disseram "se prepara, dia 42 vais a Teixeira de Sousa", Mangodinho rir era só rir que deixava à mostra o último dente de siso. Preparou as imbambas, beijou os filhos, um a um. À mulher, deu um selinho só. Antes de meter o pé fora de casa, revisitou as palavras que guardara no ouvido e no caderno de notas.

Começou a ensaiar, a treinar treinamento de criança da kabunga.
- Nguneza, ngunaye, ngunasakwila, nakuzanga cinji, kizundamo, mafo, walwa, ixi, xima, mujimba, mulelenu, muxahenu, mulambenu ... enu!.. - Sabulou para ele próprio e para o surdo vento, num misto de saudade e vulama¹ que Lamba lhe deu, já voam oito anos, e que o faz dormir no Leste e acordar na capitalíssima.
Nas missivas que recebe, até nos áudios e vídeos, Lamba, a sua inspiradora, diz-lhe "estar saudosa e desacompanhada", contando luares e estrelas infinitas.
- Nguneza. Prepara kalembula, matamba, kingombwa, xima nyi ifo e tudo mais. Quero comer até me arrebentar. Aliás, esqueci uma coisa. Kandonda num esquece. - Recomendou Mangodinho ao entrar no avião.
O grande kalunga lwiji² já tinha ficado para trás. Por cima das nuvens brancas que pareciam ter invertido o seu sentido de orientação, o filósofo das embalas foi meditando:
- Quando estamos em baixo, as nuvens estão por cima de nós. No avião elas estão de baixo de nós, abrindo-se um outro céu azul infinito. Ou tem mais coisas cá em cima?
Às nuvens, entre a terra firme e o infinito azulado, cor de mar, aditou o espanto sobre o andar curvilíneo dos rios que pareciam preguiçosos e relutantes em dirigir-se ao mar.
- Eh! Issêasssim? Mam! - Ora se levantava, ora monologava sentado, inquietando o passageiro vizinho.
A viagem demorou hora e tal. Quase duas. Esperava encontrar alguém para o receber e gritar-lhe tambwokenu! Não aconteceu, não fez reclamação. Apenas pensou:
- Lamba deve andar às compras ou já a preparar a forragem para o estômago.
Faminto de iguarias que apenas o leste e nordeste e deram a provar, Mangodinho fez de propósito. Não jantou no dia anterior à viagem e também não matabichou.
Conhecedor da vila Teixeira de Sousa e dos caminhos de corta-mato, Mangodinho não demorou fazer-se à casa de Lamba, sua musa.
- Lamba, cheguei! - Gritou dez metros, antes da casa que conservava a mesma tinta sobre os adobes salpicados de cimento escasso e areia farta.
- Kenhê? - Gritou um homem lá dentro com autoridade de quem andou aos copos.
Mangodinho diminuiu o passo. Fingiu tropeçar para reforçar o caminho, os contornos da casa, as lembranças e as ideias também. Das ideias, sobretudo as mais audazes, viria a precisar.
- Mas... - Tentou gritar e mandar a todos os ventos velozes um porra que lhe é característico.
No descampado em que se acha plantada a casa de Lamba, os adolescentes que jogavam à bola, crianças há sete anos, ainda o reconheceram e começaram a cochichar.
- Ewe, mana Lamba! Kota Porra então chegou. Agora vai ser como com o ti Cizenge?
Alimentado pelo que lhe chegou aos ouvidos, Mangodinho puxou coragem. Pôs força nas pernas que teketavam nervosas. O cérebro dizia avança. As pernas e pés queriam desistir. Avançou até à porta e pôs um berro de homem corajoso.
- Lamba, estás aí?
- Kenhê? - Voltou a responder Cizenge.
- Porra! Issêabuzu! Ainda não morri e já estão a me lundular? Fiadacaxa, sacana de merda. Põe-te a andar! - Falou Mangodinho com toda a ira que lhe estava na garganta.
Mangodinho e Cizenge trocavam ainda mimos, procurando ocupar espaço no terreno e na audição da multidão que se fazia à volta. Mangodinho com um pé já dentro da salinha parecia que ia desalojar o consorte.
Cizengue estava ainda com roupas interiores e mal conseguia ver onde estava sua farda e botas. Tinha disbundado metade do ordenado policial, mas tentou mostrar autoridade de quem fez instrução para-militar, embora denotasse gagueira, dadas as elevadas doses etílicas de véspera.
- Kenhê você, mukwakwiza de merda?! Achas que me amedrontas? Tua sorte é que vim sem a minha kalashe. - Desafiou Cizenge.
Não demorou, chegou Lamba, carregada de coisas e ávida de mandar Cizenge embora.
- Mana Lamba, estão então a ser dar mulambenu na tua casa. Kota Porra voltou e o ti Cizenge num foi embora. - Contaram os jovens da bola.
- Mama yami! Vou fazê cumu então?! - Interjeitou.
Atrás, olhos nela, um coro ululante fez-se sala adentro, expectante no desfecho.
- Lamba lyeza!
=
¹- Mixórdia que faz o cidadão emigrante esquecer a sua origem. Os do centro de Angola usam o termo "migosta".
²- Mar, imensidão.

Obs: publicado pelo Jornal de Angola a 18.05.2022

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

MORDENDO O CINTO DO PAPÁ

O café, que se estendia da mata densa ao vilarejo, dava olhos ao posto administrativo e virava-se de costas ao acampamento dos cipaios onde despontavam Kafebele e Van-Dúnem Mulalu.
O Kisongo dos anos sessenta eram várias aldeias dispersas e perdidas no sertão, administradas por um chefe de Posto, auxiliado por cipaios negros e poucos mestiços, no dizer de hoje, também eles auxiliares de polícias da administração colonial.
Entre Kisongo-vila e Mbang'Wanga, mais à margem do Kwanza, estava Kambaw, aldeia de Nzumba, mãe de Lumbu.
Alto, forte, voz firme, capaz de secar uma árvore desobediente, Van-Dúnem era dos mais pungentes cipaios do Kisongo e a quem o administrador recorria para os assuntos mais bicudos como: pacificar aldeias revoltosas, chamar à razão fazendeiros brancos e ou mestiços faltosos aos impostos, castigar negros reincidentes e recalcitrantes entre outros serviços que demandavam força e imposição de ordem.
Van-Dúnem passava semanas sim e semanas também ocupado pelo Posto. Apenas nos dias que calhassem ia à casa visitar Zumba e os filhos. Era mais ao final de semana que fazia renda com Kafebele, pequeno, lero, altivo e negro da cor da pedra do ferreiro, que havia sido transferido da Munenga ao Kisongo.
Um dos adereços por que Van-Dúnem ganhara afeição era o seu cinto de pele de jiboia, confeccionado por um artesão da Kisama. Na verdade, não era apenas um eram dois cintos. Tanto que ora os tinha no quarto do acampamento, ora os tinha distribuídos pelo acampamento e pela casa familiar em Kambaw.
Num ano, que a memória deixou escapar, havia faltado chuva, apesar de nuvens semi-carregadas que viajavam sem parar, provocando intermitências ao sol que tudo fazia secar. Até rios contavam gotas d'água, pondo em disputa o homem da aldeia, o kyombo do mato e demais bichos sedentos que se tornavam comida do homem caçador.
Lumbu, dois anitos ainda, brincava junto à sanga que distribuía água fresca aos que iam e vinha da lavoura circunscrita às ribeiras. Mais não se colhia senão kizaka, malanga, jihasa, kindombo e alguns grãos.
A fome era total. Até jiphuku escasseavam e os gatos haviam fugido de tanto bocejarem sem nada tragar.
Aproveitando-se do silêncio da madrugada, ausência do gato e da frescura da sanga, uma cobra adentrou a sala de terra batida e enrodilhou-se na base do reservatório refrigerador.
Lumbu viu no animal o adereço com que sempre brincava à chegada do pai. Assistira um dia o pai a punir o irmão mais velho, servindo-se do cinto. Puxou-o, com sua força de monandenge, e procurou mordê-lo com os dentes que tinha por completar.
- Lumbu larga. É perigo! - Gritava a mãe atónita.
- Lumbu dá isso. Tem tutu. - Ajudava o soba chamado às pressas, sem lograr.
Num pestanejar, a casa ficou apinhada e a aldeia em alvoroço.
- Como é possível?
- Cumué ku bicho entrou?
- Como salvar mininu? - Mil vozes, mil perguntas lá fora.
Vieram uns mizangala, dos mais destemidos da aldeia, que enfiavam mãos desprotegidas em tocas para sacar surucucus e jiboias.
- Dá licença! - Disse um deles autoritário.
Abriu-se lhe caminho. O momento era para homens corajosos. Lumbu corria risco.
Kindalá, jovem com apenas dois terços de dentes. Outros perdidos em pelejas e quedas empunhava uma vara terminada em Y. Pôs-se à entrada.
- Passo atrás! - Ordenou que os assistentes recuassem.
Precisava de zona vital para manobras. Um olho em Lumbu que mordiscava a cauda da cobra e outro olho à procura da cabeça do réptil.
- Lumbu, larga é tutu? - Tentou persuadir.
- Hum, né nada. É cinto do papá! - Soltou o infante, engatinhando para o quarto, puxando pelo bicho, forçando-o a mostrar a cabeça.
Num toque mágico, Kindalá, com a sua vara terminada em Y, golpeou-a pela mandíbula, fazendo da serpente um verdadeiro futuro cinto para o cipaio Van-Dúnem Mulalu que se aperceberia do acorrido quinze dias depois.

Estória base: Eduardo Cussendala
Texto pblicado no Jornal de Angola de 4 de Setembro de 2022

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

De Saulhimbo a Saurimo: APRESENTAÇÃO NA UEA

Caros confrades (escritores),

Parentes e amigos do Dr. Domingos Kajama,

Minhas senhoras e meus senhores!

Façamos uma vênia especial a todos meninos presentes.

Permitam-me agradecer ao autor, Dr. Domingos Kajama, por me ter confiado a missão de falar aos ilustres presentes sobre o seu livro.

Até hoje ainda me pergunto, por que me terá recaído essa missão, existindo nessa imensa floresta de literatos mentes conhecedoras e criativas que dão vida a penas escorreitas (Soberano Kanyanga é ainda uma criança a tentar engatinhar).

Quando em Maio deste ano, o Dr. Kajama me contactou para prefaciar o livro que temos em presença, dando-me nada mais do que duas semanas, fiz-lhe a seguinte pergunta:

- Porquê eu?

- És tu porque gostas da Lunda, teus escritos trazem a Lunda e és, por essa razão, um mwana Kacokwe!

- Ewa tata, nguna sakwila cinji. Yami nguli kacokwe! – Respondi, aceitando a missão.

À medida que fui lendo, fomos trocando impressões, alertando para pequenas gralhas no texto inicial, ou discutindo, por exemplo, por que razão apresentava o título “O diamante e suas consequências”?

Quando o título evoluiu para “DE SAULIMBO A SAURIMO”, apresentava um acento grave sobre A, o que nos levou a novo debate até à e retirada do sinal diacrítico. Também analisamos por que não escrevia segundo o que dita a Resolução 3/87 de 23 de Maio, do Conselho de Ministros, sobre o alfabeto da Ucokwe e respectivas regras de transcrição (só para particularizar essa língua).

E, tal como eu fui anotando os conhecimentos que o livro acrescentava aos meus dez anos intensos de vida e trabalho na Lunda, o Dr. Kajama também foi tomando notas e respondendo ao que lhe colocava. Encontrei em Kajama um pai, com muito para ensinar e aberto a somar aos seus largos conhecimentos o que é necessário agregar.

O livro está estruturado em dez capítulos em que se aborda, nomeadamente:

1-    O percurso dos colonizadores portugueses, a ocupação do império Lunda e denominação da antiga sede do Distrito da Lunda;

2-    A vida sociocultural, económica e política dos habitantes do antigo Império Lunda;

3-    A chegada dos portugueses a Saulhimbo e impacto na vida política, económica e sociocultural dos nativos;

4-    A descoberta do diamante e suas consequências;

5-    Contribuição da Diamang no desenvolvimento económico e sociocultural do então Distrito da Lunda;

6-    A elevação da vila Henrique de Carvalho à categoria de cidade;

7-    O papel determinante dos Movimentos de Libertação Nacional;

8-    A independência de Angola e as transformações políticas, económicas e socioculturais;

9-    Notas Conclusivas

10-                      Provérbios, parábolas e anedotário (Cokwe).

Em todo o livro, Domingos Kajama pregoa o despertar do homem do Leste angolano, cuja aculturação, subjugação psico-social e política do então colonizador adormeceu o seu “eu”. Esse livro é um despertador que o leva ao passado histórico (pré-colonial), recordando-lhe a essência angolana e africana do povo que habita a região da Lunda. Em todas as páginas do “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, Kajama parece falar em vez de escrever, ou melhor, escreve como se estivesse a contar as suas memórias/vivências: o que ouviu, o que leu, o que viveu e o que pensa, apresentando-nos um texto escorreito e convidativo, repleto de imagens, sons e ruídos (das águas, folhas e do vento) que também nos trazem mensagens.

Bem, não falarei mais sobre o prefácio que muitos já terão lido e outros vão ler. Vou reforçar o pedido que tenho feito aos mais velhos: registem os vossos conhecimentos, as vossas experiências, tirem da cabeça e passem ao papel. Mesmo quando a mão não obedece, há sempre um sobrinho ou neto para gravar e converter em texto. O resto vem por arrasto.

Quanto a isso, o Dr. Domingos Kajama fez, e com a mestria e qualidade requeridas, a sua parte.  Cumpriu com um dever de homem do seu tempo e de sua dimensão política e intelectual. Muito obrigado, Dr. Kajama, e parabéns!

É, em suma, um livro que nos faz viajar no espaço e no tempo, apontando-nos caminhos lestos para um reencontro com a nossa identidade.

Muito obrigado!


Soberano Kanyanga, UEA, 04.08.2022

sexta-feira, 1 de julho de 2022

O BÊBADO QUE NÃO BEBEU


Osábado tinha sido de revista habitual às infraestruturas. Aliás, em sua casa é assim. Sábado é dia de ver paredes com
fissuras, árvores por podar ou a secar, torneiras avariadas, tomadas deslocadas, lâmpadas fundidas e chapas furadas. Feito isso, sai-se para visita às casas da mãe e da sogra que são, na verdade, obras inacabadas, a que se junta a Kam&mesa. É por isso que o dia de descanso bíblico foi baptizado como o dia das infras.
Para piorar o cansaço, Katemo tinha trabalho com o patrão ao
domingo, numa jornada que tinha princípio mas sem data do fim.
Era já duas da tarde. Corpo a doer e estômago com martelos a bater-se entre si, quando Katemo foi liberado do trabalho, na baixa de Luanda.

Até à casa, levava hora e meia. Pelo caminho deu boleia a um convidado que estava sem carro e foi ver um dikota que lhe prometera katula mbinza.

O transito até estava bom. A abertura das praias, na pausa da
covid-19, tinha levado meio mundo ao mar, em semana de água rara e sol ardente. A chuva só ameaçava mas cair de verdade, nada!
Katemo, dirigido pelo google, chegou ao destino indicado pelo kota do katula mbinza. Encontrou a família, um amigo comum e fez nova amizade. Afinal kapuka das ponteiras sempre arrastou amigos ao alambique e continua a fazer novos amigos até mesmo em cidades grandes como a capitalíssima.
Entre um dedo de conversa e uma pinga, aproveitou comer. Estava a paz feita com a moagem estomacal que o empurrava ao encontro do funji domingueiro. Contou-se a cena de um bêbado que não estava bêbado e os seis convivas entraram em gargalhadas. O campo, as relações de proximidade e benfeitorias, bem como o descaso dos endinheirados também desfilaram entre garfadas e goles fortes de vinho da estranja e kapuka canelada da banda.
Quando o sol já se curvava, em vênia ao Atlântico, Katemo despediu-se, saindo zunado. Na corrida do Suv, as duas garrafas de katula mbinza tilintavam ruidosas no assento traseiro, fazendo temer um desastre. Olhou à frente. Havia ainda muito xingilamento. Acostou, diante de uma propriedade bem cuidada e guarnecida, para separar as garrafas se se digladiavam violentamente, agitadas pelos saltos que se revezavam intensos.
Sem saber que as litigantes se haviam separado, abriu a porta, escapando-lhe a que abandonara o assento.
- Buá! - Lá se foi, para a sua tristeza, a garrafa de um litro de primeira gota, destilada em Kambaw e envelhecida no Nova Vida.
Veio-lhe à memória a estória do "magnata" que, portando uma
vasilha semelhante de katula mbinza, envolveu-se em um acidente que levou à destruição da garrafa. Os primeiros que o socorreram deram-no por bêbado, mesmo não tendo tomado naquele dia, pois, chamados pela curiosidade, foram brindados com um altivo e gostoso odor que saia libertado do carro danificado.
Posto na polícia de trânsito, onde o proprietário da outra
viatura fez questão de exigir que fosse soprar o bafômetro, ficou conhecido como o bêbado que não bebeu.
- Como xtá, senhor Doutor bêbado que não bebe?! - Saudam-no
hoje assim.
Obs: publicado pelo Jornal Cultura de 13.04.2022

quarta-feira, 1 de junho de 2022

O KISONGO DAQUELE TEMPO

O Kisongo daquele tempo era um conglomerado de aldeias e aldeolas familiares que, juntas, chegavam a 50 mil pessoas.

No dizer dos mais velhos de hoje, que viveram com o colono, ainda anandenge ou já mizangala, nunca, jamais nesse século XXI o Kisongo de hoje, com mais ou menos 5 mil indivíduos que se remedeiam na agricultura e nas poucas fazendas que chegam tímidas, chega à áurea dos anos sessenta (sec. XX).
No vilarejo perdido na selva libolense, a caminho do Kwanza distante, a que chamavam Posto Administrativo, Mulalo, metro e noventa e cinco de altura, corpo de três homens médios, mão grossa e força de ngufu, era cipaio ao serviço da administração. Kambambi, amigo do pai, dos cipaios do acampamento e dos tios que choravam lágrimas e suor sugados pelo sol e palmatória, era o filho derradeiro de Mulalo.
O Phalanga e o Lumbu, irmão dele que lhe puxa, já tinham força para trabalhar, na lavra ou no kalyenge, e frequentavam também o "mbe e â? - Mba!" Por tudo isso, sendo os ajudantes permanentes da mamã, estavam isentados de levar comida ao papá que punha ordem no Posto e nas aldeias aos devassos e fugitivos ao imposto indígena.
Certo dia, tarde de futebol para os adolescentes, sol ardente lá fora e chuva a prometer açoitar os telhados de colmo. Phalanga e Lumbu estavam na bola. Em casa, Nzumba olha para os céus a profecia: Vai cair nvula de encher rios e marido vai dormir no trabalho.
- Kambambi!
- Mamã!
- Vem. Prepara os quedes. Num demora. Vai levar comida no papá. Vi, chegaram do Mbang'wanga pessoas na carrinha do sô 'diministrador. Deve ter trabalho grande. Chuva vai chegar sem escurecer.
Previsão de quem vive o comportamento do tempo é palmatória na mão de Mulalu ou tiro de caçador temperado. Não falha.
Nzumba arrumou a comida para o marido. numa marmita o funji e noutra o conduto: carne de paca apanhada da armadilha do Lumbu. O Phalanga era mais dado à pesca e tinha conseguido uns peixinhos que Nzumba preparou também para o marido. Estavam, com a Kizaka noutra marmita, a terceira e mais pequena de todas.
Era já hábito. Mulher e os filhos sabiam e disso não reclamavam. Quando o trabalho apertasse ou fosse noite de chuva, Mulalu não voltava à casa, preferindo dormitar no acampamento que distava cinco quilómetros da aldeia.
Kambambi meteu-se a caminho, cantarolando como rola ao nascer do sol. Transpôs um riacho e mais dois quando começou a gotejar. Chuva ainda miúda, criança como ele, caindo sobre as folhas das grandes árvores que se faziam paralelas à picada. Acelerou o passo para evitar chegar ensopado. A comida não. Estava segura, com as marmitas embrulhada em um saco de plástico.

Chegou molhado, numa mistura de gotejos pluviais e suor, mas alegre. Entregue a encomenda, passeou os olhos pela sala que se achava enorme, com uma mesa grande e duas cadeiras lado a lado. Era nela que o pai recebia os interrogados, antes de os sovar com a Maria da dores. No canto esquerdo estava um armário adornado com diversas palmatórias, todas elas nomeadas.
- É isso que faz os tios chorar como crianças?! - Interrogou-se sem o verbalizar, ante a presença de um "urso polar", cujo corpaço a todos intimidava e fazia descobrir o que houvesse de mais oculto.

Irrequieto, como são os kasule, Kambambi, num salto de corsa, desfez-se da sala e foi instalar-se à copa de um cafeeiro que exalava um cheiro ímpar, saído de flores virgens cor de neve. Trabalhavam nele alguns presos, sob o olhar de Xiku Adá, que empunhava uma caçadeira "22 longos". Uns faziam a poda atrasada e outros a adubagem, esperando incrementar a colheita do ano.
- Boa tarde, ti Manel, boa tarde tio Ngana Zando!- Cumprimentou, um a um aqueles que conhecia. Alguns eram de bairros próximos. Outros foi conhecendo à medida que ia levando comida e buscando os pratos vazios, mas eram todos do Kisongu.

Chegou a noite com todo o seu silêncio, interrompido, às vezes, pelo rosnar de um cão medrica ou de uma raposa no cio. O sol cedeu lugar às estrelas ofuscadas pela nuvens cinzentas, que viajam e se revezam sem parar, deixando tudo que é luz à mercê dos pirilampos e dos candeeiros do Posto administrativo.
- Kambambi!
- Papá!
- Vem dormir. - Chamou Mulalu ao filho.
- Papá, já tenho lugar no ti Januário!
- Qual Januário? Aquele terrorista?
- Não papá. Ele não é tractorista. Trabalha mesmo com catana na poda do café!
- Vem cá, pá e não te metas com esses trafulheiros que só sabem transgredir. - Voltou a chamar com uma voz mais enérgica.

Kambambi num canto. Um olho mirado para dentro, a contar as palmatórias e outro olho a contar as estrelas que se afundavam nas nuvens passageiras. Vieram-lhe à mente as lágrimas de mais velhos acossados pelas pancadas dos cipaios. Surgiram-lhe também memórias sobre a ternura daqueles tios e a doçura de suas estórias, contadas enquanto trabalham e ele brincando, ao pôr do sol, com os bagos do café que se desprendem das árvores.
- Papá, deixa-me só hoje dormir com eles. O meu papá é tão forte e invencível que eles nunca me fariam mal para não serem palmatoados.
Na cela e num lwandu, com os detidos, Kambambi passou uma noite inapagável. Soube que aqueles tios eram boas pessoas que não mereciam apanhar palmatórias que tiravam lágrimas, ranho e suor. No seu caderninho de memória rígida registou: tio Januário destilou kapuka que todos gostam de beber. Tio Kabari não pagou imposto porque a lavra dele pegou fogo. Tio Jwá Kindundango discutiu com o branco que lhe aumentou dias na renda. Tio Kindala deu cabeçada no mulato que dormiu com a mulher dele. Tio Nguxi lhe apanharam a ouvir rádio proibida. Tio Wayxi lhe apanharam com arma de matar branco. Tio Kambwiji meteu kalembe no rio para apanhar peixe. Tio Nyanga mulher bebeu kandingolo e lhe deu bofa. Ele lhe meteu dente na testa da tia Hebo. Tio Mbumba-a-Lunga não aceitou vender milho dele no sô Kahungu. Tio Kituji lhe apanharam com carta que disseram é panfleto. Tio Phande-a-Umba e Ngana Zando falaram no sô 'diministrador Kisongo é nosso...
Obs: fição pura baseada em relatos sobre a infância de Eduardo Cussendala)
Texto publicado pelo Jornal Cultura, edição de 6 Julho 2022.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

De Saulhimbo a Saurimo: Prefácio

Quão bom é ser leitor primário!

Sabe o autor por que, numa imensa floresta de árvores preciosas e frondosas, como aquelas que a Lunda tem e conserva, escolheu a mais fina e aparentemente frágil. Se calhar, a escolha seja um presente, tal como enuncia numa das páginas finais desse livro -Wakwaha cawana kexi kusopha nenyi! (Não se deve discutir o valor de algo recebido de graça!)

E mais. O autor também ensina (pg. 131) que Wazeya mwe waya nyi nguali (o humilde leva a perdiz). Por isso aceitei o desafio de percorrer as páginas deste livro e mostrar, de forma resumida e convidativa, a riqueza textual e beleza estética que o mesmo encerra.

O primeiro contacto com a capa do presente livro converteu-se num espavento. Isso mesmo. A versão inicial de título apontava para algo relacionado a “Diamante e suas consequências”.

- Quer o Dr. Domingos Kajama que eu prefacie um livro sobre diamantes, mesmo sabendo que não sou perito no assunto, embora vinculado à indústria? - Não o disse, apesar de pensado.

Perscrutei a centena e meia de páginas e fui levado, numa leitura sem paragens, até ao fim, mergulhando na imensidão da Lunda, percorrendo seus caminhos e atalhos, suas ribeiras e correntezas como as do Cassai, Tchicapa e Luachimo ou emprestando o ouvido às vozes ímpares da ngoma contadora de história e estórias.

A história geral ou total de um povo ou região é, para mim, o somatório e síntese de vários relatos de acontecimentos importantes que marcam o povo de um espaço geográfico. Uma história é (ainda para mim) um constructo (inacabado), à medida que o recurso aos distintos métodos de estudo, ciências auxiliares e métodos de (re)descoberta de verdades importantes faz da Ciência Histórica um produto sempre por concluir.

Apesar de região já bastante etnografada e historiografada, o Leste de Angola é e continuará a ser, por mais tempo ainda, um study case, à medida que os historiadores se forem servindo de documentos textuais (cartas, crônicas, ofícios, diários, relatos), vestígios arqueológicos (objectos de cerâmica, construções, estátuas), representações artísticas/pictóricas (quadros, pinturas, fotos) ou registos orais (testemunhos pessoais transmitidos oralmente), entre outros.

Um dos vários aspectos relevantes, e que você poderá conferir, é o cuidado que Domingos Kajama tem com a língua, enquanto instrumento de trabalho e de comunicação. Kajama diz “conhecer e reconhecer a norma adoptada pelo Estado angolano” mas pretendeu “optar pela representação gráfica a que as pessoas estão mais habituadas” (pg. 14). E fê-lo bem, na medida em que o leitor precisa de perceber a narrativa à primeira leitura.

Outra abordagem ousada e arejada tem a ver com a necessidade de serem valorizados e (eventualmente) repostos os topónimos originais, atendendo ao seu sentido etimológico e semântico nas línguas de que são originários. Mwangeji, Lwavur, Sa Ulhimbo e Soacamombo são exemplos do muito que você vai aprender ou se recordar ao terminar a leitura deste “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda” que traz também respostas às perguntas que você terá já várias vezes colocado ou ouvido de outrem:

- Quantas vezes ouviu falar que “o povo Lunda não gosta de trabalhar”?

- Sabe quem trabalha e sempre trabalhou na extracção manual e mecanizada de diamantes?

- Que relação há entre Saurimo e a região portuguesa de Trás-Os-Montes?

- Focando-se na luta dos contrários, já pensou nas vantagens e desvantagens da descoberta e exploração de diamantes na Lunda?

O livro que Domingos Kajama nos apresenta é uma combinação de “oratura” (fonte primária para a historiografia africana) e literatura, baseada em documentos escritos.

Em “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, Kajama traz-nos, para além de suas vivências de uma vida inteira na Lunda e ao serviço da Lunda, aspectos que nos levam à compreensão etnográfica, geográfica, jurídica e política da região que nos mostra. O “estatuto dos vizinhos” (pg. 50) ou as integrações e disjunções entre a Lunda e Malange é exemplo de narrativa histórico-política que vale apenas ler, conhecer e compreender.

Mas Domingos Kajama escreve mais: pregoa, neste livro, o despertar do homem do Leste angolano, cuja aculturação, subjugação psico-social e política do então colonizador adormeceu o seu “eu”. O livro em suas mãos é um despertador que o leva ao passado histórico (pré-colonial), recordando-lhe a essência angolana e africana do povo e região em causa. E Kajama diz também que “… nem tudo foi mau. A Diamang procurou dedicar a sua atenção em conhecer, divulgar e preservar os valores culturais dos povos” do Leste (pg.92).

Num exercício raro, em que se combina a ciência moderna e a secular, porém sempre actual, o autor fecha o livro com a representação literária da oralidade, trazendo adágios do Leste de Angola que encerram conselhos, e alertas de vária índole e de utilidade transversal. Mais do que esses apontamentos, o meu convite é se encante no brilho deste “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, e percorra o livro de capa a capa, pois como nos lembra na página 143,“Kexi kwiva nyixenyi kumona!” (quem não se documenta/aconselha limita-se a ver/acatar o que lhe acontece ou dizem).

Quem conhece Domingos Kajama encontrará ainda, neste livro, um dos traços do autor: um falar vagaroso, com pausas, e assertivo.

Aliás, em todas as páginas do “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, Domingos Kajama parece falar em vez de escrever, ou melhor, escreve como se estivesse a contar as suas memórias/vivências: o que ouviu, o que leu, o que viveu e o que pensa, apresentando-nos um texto escorreito e convidativo, repleto de imagens, sons e ruídos (das águas, folhas e do vento) que também nos trazem mensagens.

É um livro que nos faz viajar no espaço e no tempo, apontando-nos caminhos lestos para um reencontro com a nossa identidade...

Boa leitura!

Soberano Kanyanga, Maio 2022.