O desabafo
bruto e cru daquele homem de meia idade tinha deixado meio mundo boquiaberto.
Melhor porque foi em mar abeto. Na terra, uma tirada como aquela e saída da boca de quem saiu teria
um imediato catálogo
herege.
O barco em
que seguiam andava à
deriva havia já muitos pares de anos. Todos os avisos das cercanias e de
radares externos tinham sido pura e simplesmente ignorados. Embarcações em
situações análogas há muito tinham afundado ou mudado de comandante. Navio como
aquele e tripulação como aquela já se contavam aos dedos de uma mão pelo mundo oceânico, onde os ventos turbulentos
coligavam com os tubarões de todos
os dia.
Martins, o
homem do desabafo, era marinheiro há já três décadas. O seu apego pelo mar é natural. Nasceu à beira duma ria e cedo seus
pais se mudaram para uma ilhota do
Índico, até que, numa
noite de poucas estrelas, o mar rugiu e fez juntar as águas de todos os lados.
A casota de palhas de palmeiras e mafumeiras foi abraçada pela água furiosa.
Martins perdeu o irmão das brincadeiras e a mãe dos fervidos e assados. Viu-se apenas ele e o pai
flutuando sobre o mar deserto, apoiados em velhos destroços duma antiga piroga.
- Papá, o
mar atingiu-nos. – Disse Martins
tão logo se deu conta da situação calamitosa em que se encontravam.
- Sim
meu filho. O mar atingiu indelevelmente nossas vidas. Comparado a isso foi
apenas o fascismo do início do século. - Respondeu José, o pai.
Vivia-se o
século vinte. Bem no começo da segunda metade. Os náufragos lutaram contra as águas raivosas e o
vento furioso e um sol assador,
até que ao cabo de sete horas sobre aquele dilúvio fizeram-se à terra
firme. Eram heróis aos olhos do povo que perfilava a costa e que já tinha preparado oferendas à Kianda, mãe de todas as sereias daquele mar agitado. Era a forma
habitual de impedir que mais mortes acontecessem.
Lukinda, de
seu nome de nascimento, viu-se apelidado por Martins, uma corruptela de “mar tingiu-nos”. E assim ficou conhecido e
reconhecido agora como marinheiro de incontáveis milhas.
O navio já
levava anos à deriva no Índico.
Martins era capitão. O comandante era Sam Téh. Homem hábil nos tempos que já lá se foram, mas que se
apresenta agora com o cérebro
calvo e fragilizada pelas calemas que sempre o apoquentaram durante os dois séculos
cruzados pela sua vida. Embora Martins fosse pessoa influente e homem de
argumentos que incentivavam os co-viajantes a se
manterem no barco até às últimas
calemas, era Sam Téh que tomava as decisões e a quem todos deviam obediência.
Sam era duma crueldade que alimentava os tubarões com os
seus marinheiros revoltosos. Em
terra firme a capitania já o teria
apeado do leme. Mas em
alto mar, e com o navio sem bússola e sem terra à vita, a ninguém mais Sam prestava atenção
senão ao seu próprio ego.
E não foram poucos os capitães promovidos e despromovidos por erros do Comandante mas sempre imputados a Martins e pares.
Na sua vida de marinheiro, Martins já fora herói e vilão. Soube sempre coabitar
com o mel e fel naquele navio. Em tempos de bom vento, fora inclusive elevado à
categoria de Vice-Comandante. Foi descendo,
descendo, devagar, devagarinho até se deparar com a condição de simples
passageiros. Era isso que não entendia por mais esforço que fizesse.
- Está
difícil manter o Estado
neste barco. – Desabafou Martins perante a multidão que planejava a destituição
do Comandante e
encontrar um comandante que os levasse a porto algum.
- Mas ó
camarada Martins, você
não faz parte da tripulação? - Questionou Taci, um crónico insatisfeito.
- Não meu senhor. Já fiz o que pude
fazer enquanto achei que alguma terra nos pudesse acolher. Com o actual estado
de coisas, tudo o que pretendo é
que passe por cá um barco ou helicóptero que nos socorra e nos salve desta
aventura samtsetiana, disse entre dentes, antes de se retirar.
Mal tinha
colocado o pé na porta do seu aposento,
o seu desabafo já se
tinha convertido em assunto para reflexão e debate.
Primeiro
perguntou-se a autoria do seu nome e depois o significado daquele “está difícil manter o Estado neste barco”.
Ninguém conseguia
perceber o alcance daquelas palavras tão simples quanto profundas como o Índico
que os mantinha cativos entre
a vida e a morte.
Sá Lutenda,
um vidente, sabia do que lhes esperava. Sabia também que caminhos tinha
trilhado Martins e que ideias lhe invadiam a alma. Mas não o disse de imediato. Deixou que a
discussão atingisse o auge.
- Eu sou
contra o Martins e deve ser
levado à razão. – Defendiam os aduladores do Comandante.
- Acho que
o Martins está cheio de razão. Embora
ache que não seja ele a quem de deva confiar o comando do Navio é importante
que se dê oportunidade a pessoas do mar ou que ,no mínimo, se deixe os marinheiros trocar ideias. - Defendeu Lamba, o mais idoso da tripulação.
Lamba, talvez devido ao peso dos seus anos, costuma dizer que já foi árvore,
já foi lenha, já foi carvão e agora é cinza. Diz as coisas sem peneira e de
acordo ao seu conhecimento e experiência. Goza por isso de aceitação e é
reconhecido como grande marinheiro, embora nunca tenha chegado ao leme.
- O mar é
complexo e cada um tem uma experiência que pode ser partilhada. - Continuou Lamba que foi
molhado com assobios elogiosos.
-
Mas, ó kota Lamba, você
que tem mais idade do que este navio, você que conhece todos os comandantes,
capitães e marinheiros, pode nos explicar quem na verdade é o Martins? -
Questionou Lunga Mana, o mais jovem dos passageiros.
- Olha, meu
jovem marujo, podes
anotar na tua caderneta mental. O chefe Martins é um homem que já esteve próximo daquele leme.
Alguém que já fez muito para que o navio continuasse flutuante, embora à deriva. Martins é um jovem
que entrou no navio cheio de vida como tu. Que foi subindo e acertando as velas
ou colocando lenha na caldeira. Já puxou demasiado cabo e descamou demasiado
peixe até chegar à direita do Comandante. Também desencalhou o navio por
diversas vezes. E por diversas vezes prejudicou a si e aos seus para manter a
reputação do Comandante que, apesar de tudo… - Lamba puxou da mutopha carregada de kangonha de Kalandula para pôr mais ar no
peito que já lhe ia rareando vezes sim, vezes sempre. E continuou: - O Martins
é um homem que se deu conta que a seguir o Comandante como às vezes se segue, aplaudindo e remendando os seus
erros de miopia, morremos todos e ninguém encontrará sequer os destroços da
embarcação.
Mais
palavras não houve. Apenas um forte ruído motivado pelo casamento entre o mar,
o navio e a rocha. Bummmmmm!!!!
O choque do
incauto motorista de Hiace contra uma árvore que repousava já meio século no
passeio da rua da Missão, acordou Benedito que seguia embalado no seu sonho de
marinheiro.