sexta-feira, 30 de junho de 2023

UM FANTOCHE NA FARRA

 

Havia semana e meia que o espião terrorista estava misturado entre as gentes, comendo e bebendo com eles, ouvindo as conversas, indagando e sendo respondido e, sobretudo, tomando as notas, corrigindo o "tiro" e planificando novas vias de entrada e saída.

O movimento e movimentação regular de tropas republicanas levavam, às vezes, as pessoas, até os mais avisados e treinados pela herdeira da pide, à desatenção, fazendo com que os espiões "terroristas", fardados com uniforme republicano ou à paisana, penetrassem em surdina e se instalassem entre a população.

Sorte madrasta teve o Nuryeji. Vivia a sua segunda semana no Dundo, de bar em bar e de festa em festa. Exibindo, às vezes, o seu walkie talkie, era um pequeno mwata aos olhos dos incautos convivas, pagando cigarros, walwa e chafurdando o que podia.

A cidade, abastecida de géneros alimentares pela empresa kamanguista, era das mais importantes e recebendo dirigentes da capital e de urbes vizinhas a sul, sudeste e sudoeste. Até os do Comité Central, que politicavam na grande avenida das heroínas e do carro de assalto, mandavam requisições disto e daquilo.

Por essa altura, os terroristas faziam já "visitas" de sabotagem em quase todos os projectos, roubando comida, danificando o transporte de energia e apossando-se de bilhas de concentrado. Estávamos a viver a década de oitenta do século XX. Já tinham surpreendido e neutralizado a guarda e a gestão de um projecto, queimando um Hércules que pousara carregado de comida e sobressalentes.

Um dia, conto a estória dos "escapes rotos" por causa das bebedeiras dos terroristas que confundiram vinagre com vinho branco. Leram vino. Era italiano. Bastou beberem-no com gula de kaporroteiro sedento para diarreiarem dias e noites sem tréguas.

O terrorista Nuryeji estava camuflado numa festa da cidade. As pessoas conheciam-se e os civis toleravam os militares. Ninguém conhecia o terrorista. Por isso, alguns olhos, na festa, estavam postos nele, embora, treinado, se calhar, na bófia israelense, fosse de poucos falares e comedidos movimentos corporais.

Foi que uns akwenze decidiram dar-lhe de beber.

- Beba Camarada, não se acanhe!

Entre a indelicadeza que podia acirrar as desconfianças e a aceitação, o terrorista preferiu a segurança.

Meio copo, mais um copo, mais copo e meio, até que a bebida lhe aqueceu o corpo, ao ponto de meter-se na batucada, à roda dançante do cinguvu e ngoma ya phutu.

À medida que se ia contorcendo, com aquele dançar estranho que borrifava as noites sunguradas de Likwa, as calças do fantoche foram subindo e as peúgas exibindo o macho da galinha.

Alguém atento soltou aos ventos "fantoche na roda!" Instalou-se grande algazarra.

- É fantoche!

- Agarra fantoche, prende fantoche, mata fantoche!

Bem tentou ainda dar um pulo e marcar alguns passos para se desfazer na mata que era a sua predilecta cidade. Porém, os homens em todos os lados fizeram-se floresta e cumpriu-se a sentença:

- Amarra fantoche, prende fantoche, mata o fantoche!

Caído em desgraça, toda a sua vida e conexões foi, depois, exposta pelas vozes que desfilavam na frequência do walkie talkie disfarçável que levava preso à cintura.

Passaram semanas, meses, se calhar, e não se falou em todo o nordeste de outra coisa que integrasse a estória daquele fantoche apanhado na farra.

Publicado pelo Jornal Cultura a 16.03.2022

quinta-feira, 1 de junho de 2023

CÃO SEM DONO vs CÃO COM DIREITOS HUMANOS

IMBWA YAKAMBE NGANA[1] 

 

Já fiz óbito e enterro digno de um cão. Eu era criança ainda no final dos anos setenta do século passado. 


Dias sim, semanas sempre, Dona Maria, amável mulher do sô António, vinha pôr conversa, durante toda a vida do Atenção, tentando estorvar que o canídeo tivesse vida humana. 


_Mas ó minino, num faz isso. Comer com o cão ou lhe dar cuspo para te gostar não é coisa de gente, não. É coisa de bicho que se iguala ao cão. - Atirava ao ver-nos amistosamente envolvidos com o Atenção ou mais tarde com o Tigre, cão que o nosso pai dizia "é cão saído da Baia com o mesmo nome que fica no deserto do Namibe"

_ Pode me chamar "sô meu cão-de-merda", mamã. O Atenção é nosso amigo. Coelho que caça, põe saliva dele na ferida e a mamã come também. Então, mamã, já viu nê? – Respondeu Phande-a- Umba argucioso. 

_ Já viu o quê? 

_ Cuspo de cão Atenção não é veneno. Veneno é só daqueles cães-vadios que não tomam banho, nem comem no prato como o Atenção que é nosso amigo. - Retorquiu resmungão Phande a Umba, redobrando as carícias ao canídeo. 

_ Ai, ê? continua mesmo respondão, sô mô bicho. Ó Sô António, estás a ouvir o teu filho, nê? Depois não me venham cá com kikonya [2] ou outras complicações. Cão que põe boca na porcaria é que você lhe lambe os beiços, assim mesmo está bom? Fala ainda pra tô pai ouvir. Assim está bom, sô mo cão. - Dona Maria levantava o tom de voz para despertar a atenção do marido que concertava as alparcatas para meter-se no mato para mais uma visita às suas armadilhas.  

 

A conversa com pícaros desafiadores e argumentos contraditórios levava tempo. Aliás, era conversa de todos os dias da vida daquele cão. Sô António atento ao que se discutia e sendo ele também bastante afetuoso para com o Atenção, preferiu pôr fim à contenda, chamando pelo filho. 

 

_ Phande! 

_ Papá. 

- Vem cá. Aprende a ser homem e deixa de discuti com a tua mãe. - Ordenou Sô António ao filho. 

_ Papá não fiz nada de mau. É mesmo a mamã que stá a se metê comigo e com o Atenção. – Phande procurou defender-se antevendo uma reprimenda.  

_ Põe corrente no Atenção. Procura salamba[3], calça quedes e vamos. Larga-lhe apenas quando transpusermos a aldeia para não se entreter com as cadelas vadias do sô Jacinto _ Recomendou em voz firme. 

_ Está bem papá. 

Foi momento de júbilo para Phande que rápido se equipou, metendo-se a cantarolar. Cesto às costas, catana na mão direita e Atenção puxado pela esquerda, seguiu atento ao que o pai foi explicando, enquanto Atenção começava a farejar os odores deixados, madrugada recente, pelas pacas, coelhos e ngulu ya muxitu[4]

O dia era ainda criança. Sol não havia. Apenas uma bola que podia ser amarela e quente ou ofuscada pelas nuvens que viajavam na boleia do vento. Dona Maria estava dividida também. Metade de atenção à panela que cozia a batata do mata-bicho e outra metade na Júlia que chorava.  

- Ainda bem que o Sô António chamou o chato do Phande e o seu Atenção. Ao menos, com o pai, aprende a ser pessoa. – Disse para si mesma.  

O ano dessas conversas perdeu-se na memória. Sei que nem eu, nem o Phande andávamos ainda na escola. A contagem das coisas que sabíamos era só mesmo moxi, yadi, tatu, wana[5]. Estávamos ainda em Kitumbulu, fazenda do Sô Fernando, pai do nosso pai. 

Atenção era um pastor alemão, exímio caçador. Um alemão agropecuário na região, entre os potentados de Kuteka e Thumba, ofertara o canídeo ao meu progenitor. 


Atenção ia sozinho à caça e arrastava o animal até à casa. Quando não pudesse fazê-lo, parava e ladrava até que Sô António fosse ajudá-lo.

Certo dia, Atenção foi à caça e cruzou com uma onça. Atenção lutou valentemente. Voltou muito maltratado e dos ferimentos não resistiu. Fizemos-lhe um thambi[6] "de pessoa". Foi a minha primeira experiência.
Depois o Sô António, comprou o Tigre. Era preto, pelos lisos. Chamávamos-lhe "cão mulato". O Tigre também caçava quando integrando caravana humana. Não era caçador independente como o Atenção, mas era melhor do que outros cães vadios da aldeia que só sabiam comer.  

 

Quando o Tigre morreu, de velhice ou doença já não me lembro, eu contava uns seis anos e participei mais activamente no seu enterro. Não teve urna como o Atenção, mas foi envolto em cobertor e lançado em uma cova com um metro de profundidade. Phande e eu ficamos em grande comoção e nesse dia ninguém comeu.

Essas estórias repudiam o tratamento indigno que se vem assistindo aos que ainda são conhecidos como "melhores amigos do homem", lugar que vão, nas cidades, perdendo para o telemóvel.


Cães abandonados, aparentemente sem dono, alimentando-se no lixo, sofrendo pedradas de "meninos também sem família". Quando enfermos ou mortos por doença ou atropelamento, apodrecem nas estradas até à decomposição total. 

 

Certa vez, uma avó, já tão farta de ver tanto cão morto nas estradas, gritou com toda a força que lhe restava no corpo.
 

_ Quem não consegue cuidar cão que não compre/receba, mesmo que seja de oferta!  

Acho que a vovó tinha razão. Quem decidir ter cão que faça como Sô António e seus dois filhos. Eles não deixavam o Atenção e o Tigre comer alimento cru e quase se faziam à mesa com os donos.  

Dona Maria, hoje já velha, ainda se recorda e conta para os netinhos que “o Tigre e o Atenção foram cães com direitos humanos” porque, não podendo sentar-se à mesa com os donos, comia à mesma hora que eles! 

Publicado pelo Jornal de Angola de 12.06.2022

[1] Cão sem dono 

[2] Doença respiratório (do Kimbundu) 

[3] Cesto feito de junco ou fibra de palmeira para transporte de animais de pequeno porte ou carne limpa, depois de uma actividade de caça (do Kimbundu). 

[4] Porco do mato, javali (do Kimbundu) 

[5] Um, dois, três, quatro (do Kimbundu) 

[6] Óbito (do Kimbundu)