E o disse-que-disse
passava de boca em boca a velocidade estonteante. Ninguém se podia alcandorar
como detentor de verdade sobre o jogo de bastidores e de influências que se
apregoavam na média.
No bairro da Lata, as
ruas estavam movimentadas. A equipa do bairro tinha subido de divisão e teria
no seu primeiro embate o vencedor da taça do ano precedente. Todos queriam
saber quem será o campeão que rebaptizaria a equipa do bairro da Lata no
campeonato maior do Estado.
Na rua das gajajeiras
havia mais gente do que estrada. Até mesmo as frondosas gajajeiras pareciam
desaparecer, ante aquele mar de gente, a subir e a descer para lugar incerto. O
estádio das gajajas estava ainda de portas encerradas. Onde e meia, sol
ardente, bairro a dentro. As kilumbas aproveitavam camuflar a feíce, enquanto
os homens endireitavam as aparências. A “barbaria” do Chiquito, à berma da rua
das gajajeiras, tornou-se lugar de encontros e reencontros. Os homens à direita
e as mulheres perfiladas à esquerda. Conversas díspares poluíam o recinto de 32
metros quadrados. Do lado masculino era o futebol quem comandava.
- Epá, qual dos
adversários preferes para a nossa benquista equipa da Lata?
- Para mim, qualquer. Só
temos campeões na fila da frente. – Lené antecipou-se à pergunta de Kapenda que
era novo naquela pequena urbe e que procurava por afinidades.
- Qualquer como assim?-
Voltou a pôr conversa, na expectativa de mais argumentos e contra-argumentos.
- Sim, qualquer. Veja
bem. Nós seremos neófitos. Na frente do campeonato deste ano estão um
bi-campeão, um campeão, e depois uma equipa que nunca foi campeã, mas que já
tem tradição e com bom plantel. Depois vêm a segunda equipa mais titulada do
campeonato e em quinto o papa títulos. Qualquer um deles será osso duro e não
pêra fácil.
- Boa argumentação! -
Exclamou o barbeiro que acompanhava atento a conversa.
- E vais ao campo ou só
te ficas pela rádio e TV? - Voltou a questionar Kapenda.
- Sou o coordenador do
fã club da equipa da Lata. Não falto a nenhuma partida.- Respondeu Nelé.
Enquanto os homens
festejam o futebol, as mulheres praguejavam os resultados do censo realizado
pelo Estado que tinham colocado a descoberto um segredo que puderam manter
incólume por muito tempo.
- Mana Joia, sabes o que
o censo descobriu?
- Não, Lena. Descobriu o
quê?
- Poças! Nem te digo,
Mana Joia. A dupla e tripla agregação estão em risco.
- Como assim?
- Não viste os
resultados do censo? – Ripostou Mariquinha.
- Ó Mariquinha! Qual
censo qual quê? Mas então o tal censo censou o quê? Me fala meu Deuju!
- Sim, Mana Joia. -
Mariquinha, mais serena, olhou para as companheiras desinformadas e abeirou-se
da pasta onde tinha os relatórios preliminares sobre o comportamento
quantitativo e qualitativo da população. – Não somos assim tantas que cheguem
três a quatro para cada uma.
- Ai é? Como assim?
Então o censo disse o quê?
- Joia, Josina de Andrade,
de nome próprio, natural de Kunda Dya Base, Malanje, criada e crescida em
Luanda, em casa de madrinha abastada, mas pouco escolarizada, parecia adivinhar
um perigo em frente.
Foi aí que Mariquinha
começou a desbobinar.
- Quem olha, e guardamos
isso por mito tempo, pode lhe parecer que haja bwé de terrenos desocupados, mas
é mentira. Quer dum lado quanto do outro, há mbayas.
- Mbayas, como, minha
filha, Interveio dona Joana, mulher de respeito em todo o bairro da Lata. Era a
coordenadora da comissão de bairro, dona de um Jeep que fazia ciúmes aos
governadores da capital.
- Sim tia Joana. O censo
veio a desmontar a ideia de que existiam três a quatro mulheres para cada
angolano. Quase todos os homens se gabavam de garanhões e de terem mais do que
uma “munzúbia”, entre a oficial e as que chamam de posições ou sei la o quê.
- E não é verdade,
filha? Não sabes que morreram muitos na guerra e também, mesmo em tempos de
paz, os rapazes são mais propensos a desportos radicais e outras forças
violentas que os levam, algumas vezes à morte?
- Sim, tia Joana. Sei
disso. Estudamos isso em demografia, mas o censo diz que a proporção é bem
diferente e contrária até ao que dizem os homens. Veja bem - Mariquinha, mais
serena do antes, prossegui na sua explanação – Há mais mulheres do que homens,
mas não chega uma e meia para cada um. São apenas 52 mulheres para cada 48
homens. Quer dizer que, em cada cem pessoas, 52 são mulheres e 48 são homens.
Onde é que saem as demais com que se fazem passear os chefes e kamangwistas?
- Minha filha, eu sou
segunda, mas também não sei. -Respondeu Joana perturbada.
- Sim, tia Joana. Veja
bem. - Mariquinha continuou explicativa e inocente. - O censo demonstrou que
nem sequer há uma mulher e meia para um dos homens. Onde é que saem as demais?
O censo, mana Joana, mostra que as mulheres é que têm múltiplos homens
agregados a si.
- Concordo contigo,
minha filha. - Joana, a boss do
bairro da Lata, começou a entender e não tardou em contar o segredo:
– Então, se os homens pensavam que cada um tinha
direito demográfico de quatro mulheres, a verdade diz que pelo menos três ou
quatro partilham a mesma “xuinga”.
- É isso, Dona Joana. –
Respondeu Lareira, assim apelidada pela sua fama de namoradeira a troco de
boleia e aquecedora de lares apossados de gelo. A moça de má fama resistiu ao
início da conversa mas pode ir mais além. Intrometeu-se na conversa e contando
as verdades verdadeiras de que era dominadora. – Nós é que estamos na mó de
cima, mana Joana. Mesmo no Kunene a diferença é mínima. Nós é que usamos e
abusamos dos homens. Pior é que ainda há homens xuingado que pensam que têm
mesmo por direito demográfico esse número ilusório de mboas e que a xuinga não
passa por várias bocas. Outros assumem voluntariamente o socialismo
mulherístico e empurram a carroça para frente, partilhando com xulos e outros
levando uma vida de timatosismo ou pachequismo.
- Ai é, filha? –
Interrompeu Joana, pensando que fosse única nessas andanças. – Olha, filha,
olhando para o censo, até na Lunda Norte, onde o direito consuetudinnário
institucionaliza a poligamia não há mulheres suficientes para o elevado número
de homens, mas cada uma se arroga ao direito de ter mais do que uma. De onde é
que saem as demais?
- É do segredo, tia
Joana. Responderam as comadres todas do salão de cabeleireira.
E não tardou. O sino do
estádio tocou. A ambulância passou com o seu wion, wion, wion característico.
Seguiu-se o carro da polícia a abrir as alas. O povo todo eufórico. O jogo da
equipa da aldeia nada tinha de importância, pois a subida de divisão era já um
facto. Restava saber com quem se jogaria na primeira volta do campeonato, por
isso, os ouvidos deviam estar ligados ao rádio e os olhos à TV. Nelé e Kapenda
saíram de imediato, com a aparência ainda por terminar. Era dia de futebol!