quinta-feira, 25 de maio de 2017

ALMOÇO DE NATAL


Como excelente homem de caça, com muitos cães, armadilhas e boa pontaria na hora de levar o dedo ao gatilho da caçadeira ou da flecha, Mangodinho é apreciador de carne, mas a seca ou defumada fazem melhor o seu engodo.

Natal e ano novo chegaram. No mato é tempo de chuva, capim já alto com as presas distantes do olhar humano. Mangodinho e sua kalumba decidiram ir ao Lubango, visitar os tios e fazer-lhes companhia, num ano em que não havia motivação para festim. Os rapazes que foram cursar enfermagem ara a atender o  Posto da aldeia também avisaram em carta que enviaram no meio de Dezembro:

- Ti-Godinho, no começo do ano, vai nos buscar porque vamos já terminar a formação. O tio que nos ajudou, não dá para toda hora lhe pedir isso e aquilo. O tio, se puder, vem e , com ele, cuidam já de nos levar e tudo.

Até Luanda Mangodinho e a mulher foram de autocarro mas da capital às terras altas de Chela foram transportados num jeep V8 do chefe Sabalo. O motorista estava em Luanda e aproveitaram a boleia.

Pelo caminho, Kilombo, a kazola de Mangodinho, primeira viagem longa de sua vida, só espanto. Era capim, árvores, montanhas e tudo a correr para traz, enquanto as travagens tanto faziam-lhe vertigens quanto aproveitava dar uns bicos ao banco de frente, como se injectando a travagem.

Chegaram 18 horas, quando o sol já envergonhado, se escondia de trás da cordilheira. Casa vasta e arejada. Kilombo, boca aberta de convidar moscas. Pena ou sorte, não havia insectos na vivenda unifamiliar de portas e janelas enredadas.

No dia seguinte, domingo, dia de família, Mangodinho e Kilombo estavam sós. À volta só aquele casarão e as árvores a dançarem com o vento, parecendo que se iam partir, mas sempre flexíveis e a deixá-lo passar. As empregadas haviam sido dispensadas.

- Não precisam vir amanhã, nem façam turno. Aqui não haverá festa e vocês podem conviver todas, cada uma com sua família. - Ordenou Ita, a dona de casa. Kilombo só na contemplação e Mangodinho quase se instalou na adega. Desde aquele episódio do "dia da janta" que já não bebia vinho como água. Maneirava gestos delicados ao servir e entornar a água tinturada ao estômago carente.

- Vamos levar umas ofertas ao lar dos órfãos e visitar os dois meninos que estão a fazer enfermagem no lar de estudantes. Comam o que quiserem que nós comeremos pelo caminho ou algo rápido à chegada. Disse Sabalo, o tio, a despedir-se do casal.

Mangodinho na cave. Vinho pedia petisco. Já tinha provado o cheiro e sabor de presunto que se achava pendurado na cozinha. Cortou pedaços e levou consigo. Kilombo pensou em fazer almoço. Embora a arca estivesse a cuspir carnes e peixe para fora, técnica de descongelar e temperar não tinha ainda. No mato ou se come fresco ou seco. O .rio termo é somente o defumado. Assim como se apresentava aquela perna de porco, curada e já sem banha. Pensou na satisfação de seu marido ver à mesa carne seca de porco sarado, molho ajindungado de tomate e funji de bombó.

- O homem, com os vinho dele na cabeça, vai me gostar ainda mais e até vai andar me convidar nas reuniões do comissariado e nas visitas ao pai. - Pensou Kilombo.

O fogão cantava contente e o lume chiava. A panela brilhava e o molho corava. Presunto duro, duro como porco que resiste à morte. Mangodinho até gostou e lambeu os beiços. Meio sério, meio alcoolizado, ligou o leitor de DC e acompanhou Robertinho no "amor canarinho", improvisando uma serenata à Kilombo. 

Ita, Vanito e Sabalo entraram sem se fazerem denunciar. Não foi a pé de galo, não. A música que Godinho ouvia e acompanhava para agradecer o repasto servido por Kilombo é que estava mesmo alta.

- Ó Zequeno (assim é também tratado no seio familiar)?! - Chamou o tio.

- Pai!

- Para petiscar, precisavas levar a perna de presunto ao meio?

- Não, pai. Comi um pouco de carne crua com aquele vinho que me indicou e a sua nora cozinhou também outro bocado para o almoço.

 Ita, Vanito e Sabalo quase morreram de risos ao saber qual tinha sido o "gostoso pitéu" de Mangodinho naquela tarde de natal.

- Funji com presunto refogado em molho ajindungado de tomate?!

segunda-feira, 1 de maio de 2017

A PAZ ENTRE O BODE E O CÃO

Conta-se: Que, em tempos idos, o cão e o cabrito viviam numa paz total. Aliás, habitavam o mesmo espaço e sob o domínio de um mesmo amo.
O cabrito, sendo herbívoro, acordava manhã cedo e punha-se a aparar a relva ao redor da casa, descansando tempos depois, quando os donos de casa, humanos, se faziam à mesa. Quem ficava na sala, de olhos para a mesa, era sempre o cão que tinha o mesmo regime alimentar do seu amo. O cabrito regurgitava e, sendo ruminante, dava forma aos alimentos que engolia antes sem boas mastigadelas.
Apesar de um frequentar o interior da casa e outro se confinar ao estábulo e ao jardim, a paz entre o cão e o cabrito era firme. Total. Chegou um dia em que os de casa decidiram viajar por uma semana. Como à volta de casa frequentavam umas lebres, Mukwamana, o dono de casa, decidiu deixar o portão aberto, de tal sorte que Kawa, o cão, tanto pudesse guardar a propriedade como caçar para saciar a sua fome. Mpembe, o cabrito, continuaria a podar a relva e, se comida lhe faltasse, também podia obtê-la fora daquele domínio.
Passaram-se dois dias. O cabrito sempre com a sua rotina: recolhia relva, levava à pança, regurgitava e voltava a deglutir, sempre sentado à sombra da cajamangueira do quintal. Kawa, por sua vez, padecia de fome. Não tinha as sobras de sempre e minguava. Tinha se esquecido até de farejar. Lá fora, sem o barulho do costume, as lebres festejavam e se procriavam.
Uma cadela rafeira, que passava por perto, ainda perguntou por que razão Kawa não ia à caça, queixando-se de fome com lebres por perto. Este respondeu que estava a espera do momento em que os testículos de Mpembe cairiam.
Passaram-se mais dois dias e a fome apertava. Mpembe sempre com a sua rotina de sempre. Quando já não podia mais viver sem comer, Kawa tentou atacar Mpembe para roubar-lhe os testículos mas este estava firme e sadio. Deu-lhe uma sacudidela e Kawa quase se estraçalhou, indo parar na rua.
Por sorte, a cadela rafeira tinha caçado uma lebre e Kawa teve de se contentar com os ossos deixados por ela. Daí em diante, Kawa e Mpembe vivem uma paz precária. Um está sempre a espera que outro se distraia para roubar-lhe os testículos, ao passo que Mpembe está sempre pronto a defender o que lhe faz ser macho.
Adaptado por Soberano Canhanga, 19.04.2017.