terça-feira, 6 de julho de 2010

TRABALHO E FESTA

Havia tempo que o homem não tinha sonos completos. Mal dormia. À sombra da crescente mulemba trazida do Muriege, pensava no que dava e no que recebia. A balança pesava-lhe negativamente. Sempre que pousasse a cabeça sobre o travesseiro da cama vinham-lhe ideias sobre os gastos da mulher em lojas de conveniência, os brinquedos e presentes para os filhos que mais chumbavam do que passavam, e dos enormes encargos com terceiros. De recompensa, tirando o amor e felicidade familiar, tinha nada de material. O carro era velho e caía aos pedaços, sem como o substituir. A casa era alheia, pois a própria tardava, adiada, vezes sem conta, pela parca poupança que o orçamento mensal lhe proporcionava. Até a roupa que usava, grande parte era conseguida no areió-arreió¹.

Durante trezentos e sessenta e seis dias daquele ano bissexto, Ndvumba wa Iena trabalhou de forma árdua. Tinha pela frente o sustento da família os encargos com a nova residência, o sustento dos parentes directos e amigos de peito e outras despesas. Tinha, porém, um hábito velho de que não se desfazia que era o de oferecer presentes aos vários sobrinhos no dia de Natal. Reunia-os todos em sua casa e, um a um, chamando-os pelo nome e anunciando os méritos e deméritos da premiação, atribuía o que a cada um cabia. Anos atrás de anos assim procedeu, sem em troca receber semelhantes elogios e estímulos, até que um dia pensou em homenagear-se a si mesmo.

No princípio do mês décimo segundo, Ndvumba procurou por uma loja da cidade e pediu que lhe arranjassem algo para presentear um amigo muito laborioso, bom pai de família e merecedor de uma distinção não muito cara, mas bastante honrosa. Pediu também que fosse forrado com o melhor papel de embrulho que houvesse e inclusa uma dedicatória àquele “grande senhor” da sua vida. Lamba Lia Musono, a funcionária da loja Kufupha Falanga, fez a preceito e como lhe fora solicitado. Ndvumba fez de tudo para que a surpresa não fosse descoberta, nem por si mesmo, que também não sabia o que continha o embrulho. Com muito custo lutou e venceu a ansiedade e a tentação.

No dia D, família reunida como de hábito em sua casa. Uma mesa estendida e decorada expunha os muitos embrulhos numerados e nomeados como de costume.

Irmãs, primas, sobrinhos (estes tinham aumentado durante o ano) amigos, parentes e até vizinhos, todos esperavam ansiosos o que cada um deles receberia de elogios e de recompensa material. Era assim que fazia havia já cinco anos.

Tângua lia Zao, o filho primogénito tinha sido promovido naquele dia em mestre de cerimónia, função para a qual fora preparado durante meses e que exerceria doravante naquele e noutros eventos correlacionados. Era a natural passagem de testemunho. Kuji ya Phembe assim fizera com ele, Ndvumba wa Iena, enquanto sobrinho mais velho e herdeiro tradicional do tio. Tângua estava entre a ansiedade e os nervos. Tamanha era para ele a responsabilidade em sair-se bem e ver, se calhar, a sua recompensa duplicada. Um bom presente, apesar de não ser dos alunos mais brilhantes daquele ano académico, e uma posição na família, enquanto porta-voz dos encontros e debates mensais.

O relógio marchava apressado, o sol do meio-dia queimava a calvície dos anciãos convidados, remetendo-os a uma sombra conseguida com o recurso aos lençóis estendidos no quintal. Os embrulhos expostos na mesa de jantar, transladada para o vasto quintal, pareciam também reclamar do sol, suor e da demora, até que Tângua lia Zao aparece no seu fato de Caqui brilhante que o confundia com um cantor da nova vaga.

Tângua saudou pomposamente os tios, primos e demais convivas e passou, de imediato, a palavra ao pai que procederia à chamada, nome a nome, dos premiados do dia.

E a lista começa com um pequeno discurso:

_ Por ter sido exemplar, foi aqui dito, por não ter fugido às suas obrigações paternais, por ter sido aglutinador de uma família que se quer grande e unida... pausa e indica para o mestre de cerimónia o embrulho mais vistoso e continua... ofereço a Ndumba wa Iena, eu portanto, esta prenda que reconhece o trabalho e esforços despendidos ao longo do ano prestes a terminar.

A família, entre olhares díspares, bate palmas e soam os vivas. Nos cantos, as velhas beliscam-se pasmadas. Coisa igual nunca se tinha assistido ainda. Mas todos se rejubilam e tomam nota.

- Ele também merece. - Atirou a matriarca Kaxina Kaji escondida nos seus panos de origem holandesa. A velha era pouco faladora e tudo o que dizia era carregado de uma grande sabedoria. Por isso, ninguém a reprovou.

Com os poros rebentados e suor a transbordar, recebe beijos da sua amada e chovem abraços dos sobrinhos que por instantes desviaram a atenção que prestavam àquela mesa dos presentes.

Quando se preparava para retomar a lista dos contemplados, estalou o champagne e tempo teve apenas para presentear o porta-voz que lhe faria o trabalho subsequente.
- As vossas lembranças estão aqui. Ser-vos-ão entregues pelo vosso irmão Tângua...

Todos os seus filhos e sobrinhos eram incentivados a tratar-se como irmãos. Ndvumba cultivava o espírito de irmandade que tinha apreendido com seus país e que resultava na família unida que eram. Seria então Tângua e distribuir os panos para a avó, os carros e bonecas para os primos e convidar os tios para o repasto. Ndvumba tinha proferido, por obras, um “Viva eu”!

 
Soberano Canhanga

1 comentário:

  1. Ah! Soberano!

    Esta é, não pode ter mesmo outra classificação: SOBERANA!

    Com efeito, isto passa-se um pouco com todos nós que damos, damos e, por vezes, sentimos que falta qualquer coisa... E não estamos a falar de contrapartidas, estamos a pensar em reconhecimento, em gratidão. Um pouco como "eu já olhei, qando será que olham p'ra mim?"
    Ndumba wa Iena tinha as suas carências, como todos nós, afinal.

    E dei comigo agora a pensar que estes espaços não serão, também, um pouco disso...

    Então, quem sabe, se lá dos fundos dos subconscientes, um Soberano cansado de dar pérolas aos passeantes virtuais, resolve montar um cenário que termina com o desabafo gerador do pensamento inicial: VIVA EU!!!

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