Durante
o meu percurso académico conheci na escola Ngola Mbandi, ex. Liceu Emídio
Navarro, dois homens, dois contínuos sem precedentes. Um atendia pelo nome de
Ti Pacheco, Domingos de nome próprio, e outro era o Ti Luís. Eram, na verdade,
idosos que atendiam ao papel de pai ou de tio para todos os alunos da Escola do
II e III níveis a que me reporto.
Depois
de longos anos a trabalhar na Secretaria da instituição, Domingos Pacheco, que
morava na Rua de Ambaka, no Rangel, entendeu viver a pré-reforma, servindo de
contínuo, zelador do património escolar e conselheiro de toda a comunidade
escolar (direcção, professores e alunos).
Era a
ele que os novos directores se dirigiam para conhecer os cantos da escola, a
cultura organizacional reinante e os trabalhadores, desde os mais antigos aos
neófitos. O Ti Pacheco também conhecia os alunos, quase que nominalmente. Aos
mais inteligentes costumava catalogar em nome, morada, classe a frequentar e
disciplinas em que era melhor dotado. Na secretaria, contaram-me, o Ti Pacheco
conhecia os livros de cor, desde o tempo do colono aos anos 90 do século XX.
Bastava dizer-se o nome e ano de matrícula para que ele encontrasse o livro,
extraísse os dados e passasse, em tempo record, o documento solicitado.
Quando
as forças para subir e descer o escadote que o levava aos livros mais antigos
da escola começaram a fraquejar, o Ti Pacheco decidiu ser zelador ou contínuo.
E foi já nessa sua nova e importante função para a harmonia do clima escolar
que o conheci. Tocava o sino pontualmente que até os homens que viviam na
periferia da escola acertavam os seus relógios ao som do toque do sino. Recebia
e encaminhava os encarregados de educação e visitantes à direcção, secretaria,
e aos professores. Na sua cadeira, em frente à porta da instituição ou no
jardim escolar, recebia os alunos com dificuldades em fazer as tarefas ou até
aqueles que buscavam por outros conselhos. O Ti Pacheco, que tinha um domínio
de Aritmética e Língua Portuguesa, dirigia--os, quando a questão estivesse
longe do seu alcance, aos alunos brilhantes da sua lista ou indicava os livros
para consulta. Foi nessas circunstâncias que fiz muitas amizades com rapazes e
raparigas que já arrotavam bacalhau e bife, numa altura que boa parte dos
“rangelistas” não passava do "revolucionário" arroz com peixe frito
ou “ngongwenya” ao mata-bicho. A ele se deveu a difusão do meu epíteto de “o
menino que corrigiu o livro de matemática”.
- Ó
pioneiro, toma cuidado. Você que é esperto na escola não se deve meter com esses
kazukuteiros que só vêm por obrigação dos pais.- Aconselhava. O ancião servia
também de conselheiro para aqueles que estavam já na fase dos engates.
- Você
que estuda bem tem que ficar com uma miúda também com juízo. Dois a se formarem
e a trabalharem sustentam bem os “môs” netos.- Dizia, meio sério, meio a
brincar. E não é que os seus bons conselhos resultaram em muitos casamentos,
sendo ele, muitas vezes, padrinho?
Uma vez,
depois de uma tertúlia sobre História, no jardim interior do Ngola Mbandi, o tio
Pacheco passou ao ataque:
- Ó
pioneiro, Você mora aonde?
- Moro
no Rangel, tio Pacheco. Moro mesmo na sua rua.- Respondi-lhe receoso do que
teria de ouvir. Na “trambiquice” da adolescência, nem sempre nossas acções
satisfazem os mais velhos.
- Você é
filo de quem?- Voltou a questionar, aumentando mais ainda o meu receio,
levando-me a pedir uma licença para fazer xixi.
-
Responde ainda filho, depois vais para o teu recreio.
- Sou
filho da dona Maria que vive ao lado da pracinha do Kalisange.- Respondi, já
com as mãos a apertar a “kimeta”.
- Ah,
pois é. Então você é da Kibala, não é?
- Sim.
Não, ti Pacheco. Somos do Libolo.
O mais
velho que se apercebera da minha “kagunfa” esboçou um pequeno sorriso e passou
sua mão pela minha cabeça para me acalmar.
- Boa
gente, os de kalulu. “Akwa Lubolu adya Jinyoka (os libolenses comem carne de
jiboia). É ou não é?
- Sim,
tio Pacheco, mas eu nunca comi ainda.
O Idoso
puxou da sua pasta uma esferográfica e deu-ma de presente.
- Você é
bom rapaz. Pioneiro esperto, estuda muito para ajudar a mamã. Está bem?
- Sim,
Tio Pacheco. E despedimo-nos. Estava a terminar o ano lectivo e a minha sétima
classe.
Tempos
mais tarde, quando foi reformado, o Ti Luís, outro morador do Rangel, Rua 24 da
Comissão, que trabalhara até então na Secretaria da escola com a mesma perícia
do Ti Pacheco, tomou-lhe o lugar de contínuo da escola. Luís e Pacheco, ambos
de Katete, pareciam ser da mesma escola e com o mesmo aproveitamento. Depois de
reformado, o Ti Luís montou uma papelaria em sua casa onde o visitei várias
vezes com o pretexto de comprar material escolar (cadernos, esferográficas,
cola, etc.). Era a forma encontrada para uma conversa com o avô que não tinha e
obter os seus conselhos de graça.
Quanto
ao Tio Pacheco, vivia humildemente na sua casa, na curva da Rua de Ambaka onde
muitas vezes o provoquei amistosamente.
- Como
está Tio Pacheco de Katete?
- Ó, meu
filho! Estás bem? Sempre com juízo?
- Com os
vossos sábios conselhos e na Graça de Deus. - Respondia-lhe descontraído.
Domingos Pacheco chegou mesmo um dia, já aposentado, a chamar-me para uma outra conversa. Já à entrada de sua casa. Apanhou-me num dia de fome, procedente do Instituto, mas inclinei-lhe o ouvido e bebi de sua sabedoria.
- Estás a ver aqueles miúdos?- Indicava ele para uma quadrilha que passava cantarolando e fumando. Ninguém precisava de mais dados para automaticamente os catalogar de amigos do alheio.
- Sim Ti Pacheco. vi-os saírem, da casa da vida, aí no "Beco um". Ajudei.
- Pois é. É isso que está a estragar a miudagem, meu filho. Toma Juízo. Se quereres mulher, pega uma e apresenta-te aos país da "kalumba". Essas casas da vida são desgraça. É kangonha, é doença, é tudo de mau. Estás a ouvir bem?
- Sim, Tio Pacheco. Estou atento e a anotar na cabeça os seus conselhos. - Emendei a seu contento.
- Então vai com Deus e continua com o juízo que te conheci com ele no Emídio Navarro ( o ancião, dificilmente pronunciava o novo baptismo do liceu que se passou a chamar Escola do II e III níveis Ngola Mbandi em homenagem a um "grande homem" da nossa luta de resistência anti-colonial).
Soube de
um neto que se tornara também meu amigo que o Tio de todos os alunos do Ngola
Mbandi já não vive. Nos últimos tempos da sua vida de reformado decidiu
ocupar-se da pequena agricultura. Numa noite de infortúnio, uma parede desabou
e causou-lhe ferimentos de que não resistiu.
- Meu
avô morreu de parede. Disse, sarcástico, o “sacana” do Milton, como diria o tio
Pacheco.
Haverá
ainda nas nossas escolas contínuos como o tio Luís e o tio Pacheco?
Me
parece que a fábrica fechou!
Texto publicado pelo Semanário Angolense a 21 de Agosto de 2015.
Sem comentários:
Enviar um comentário