domingo, 4 de julho de 2021

NÂMBWA, AVÓ TETÉ E O IFA VERDE

Havia nebulosidade no ar. Aliás, dois tipos de nevoeiro: a tentativa de condensação do de partículas de água suspensas no ar e a nuvem preta levantada pelos ngulu[1] que grunhiam nas matas e nas aldeias, a poeira levantada pelas pessoas andrajosas e irreconhecíveis à chegada e a poeira levantada pelos Nâmbwa[2] e IFA's que se atreviam naquele troço que nos conduz ou nos traz de Muxi-a-lwandu[3].

Avó Treza, oitenta e tal anos nas costas, embora contorcendo-se com dores da idade, estava determinada em ir a Caxito, sede provincial, fazer o seu "estou viva"[4] junto do banco das enchentes e dos antigos combatentes. Tinha sido pioneira em Kaji Mazumbu[5], onde se alistou adolescente e ficou até ao tunda mindele[6].

O dia, como dizia, era friorento e tristonho, mas avó Teté, como também é chamada, meteu-se mesmo assim a caminho. Meteu-se num Nâmbwa, da sua aldeia de Kingimbi até à vila de Muxya[7], 50 quilômetros mais ou menos, para apanhar a guia da delegação municipal dos antigos guerrilheiros. Do Muxya a Caxito, outros cento e tal quilômetros, encimando a carroça do IFA carregado de sacos de macroeira[8] e longos cachos de banana.

Era verde, a perder cor, as pessoas, às vezes, não sabiam ao certo se diziam cor branca esfregada em capim verde dos atalhos ou verde acastanhado da poeira do asfalto ausente. O IFA 50, nos tempos da guerra tratado amável e diferencialmente por IFA industrial, tirando algumas “madres” já cansadas, carros abatidos pela polícia e forças armadas, raros aventureiros que entregavam à destruição suas máquinas novinhas saídas de cidades distantes e os famosos Nambwa, era único, dia sim, semana também, naquela estrada recortada entre um asfalto esburacado e uma picada a reclamar de garganta seca por um pouquinho de asfaltite, qual rico a Lázaro. Para avó Teté o IFA que a levou era verde-cremoso.


Por causa dos saltos e da velocidade de camaleão, a idosa chegou aborrecida, embora nunca tenha escondido a sua simpatia, os caninos e incisivos que ainda desfilavam na boca e o seu verbo refinado quando fosse para comunicar as suas ideias, suas experiências e seu sofrimento nas matas do Kaji Mazumbu.

Caxito, a capital do Bengo, é, aos olhos dela, "vila pequena com rua e meia, sendo a vertical longa para pedestres, esticando-se da açucareira ao açude, e uma transversal que uma criança de cinco anos corre em minuto e meio". Avó Teté passou pela delegação dos antigos guerrilheiros onde renovou a foto. Era já conhecida. Alguns "meninos" que lá trabalhavam eram filhos ou netos de antigos companheiros de avó Teté, por isso não encontrava demora e nem era exposta à fila.

No banco da rede azul, avó Teté chegou aprumada. Trocou o pano sobre o ombro, endireitou o lenço, ajeitou e limpou as sandálias de cabedal e fez-se à fila dos mais velhos.

- Bom dia camaradas. Espero que estejais bem. - Saudou sorridente.

Os presentes retribuíram a vênia com alguns comentários dóceis. Um dos que se encontravam na fila, reconheceu-a pela doçura e expressividade da voz, quase locutora se fosse ao Voz de Angola, no Congo de Ngouabi.

- Camarada Teresa, bom dia. Quando saiu de Nambuangongo? Eu sou o sargento Cardoso do Mazumbu, o segundo logístico da primeira leva. Lembra-se?

- Que belo reencontro, meu camarada. Tenho muito gosto em vê-lo vivo e saudável.

Aproximaram-se e beijaram-se. Dois beijos com as distâncias bem medidas.

- Como vai a sua família? Mulher, filhos, netos e bisnetos, quantos? - Provocou a camarada Teté.

- Pois é, camarada guerrilheira, os filhos estão aí, a caminho também da velhice. Os netos na busca do emprego que não há. Os bisnetos a crescer. Acho que, juntando-os todos, já dava para um destacamento.

Sorriram durante alguns instantes. Se não fosse a educação e o pudor, teriam mesmo mostrado os mabwim[9].

- Tornei-me viúva. Os filhos andam entre o Nâmbwa e Luanda. Os netos idem. A tua estória, as tuas lutas, a esperança que tivemos nas matas bombardeadas com napalm, as frutas que disputávamos aos símios, a contribuição à edificação da nação, as incompreensões pós independência, o descaso a que se votou as aldeias revolucionárias do Nâmbwa e a desilusão é tudo. É tudo similar, camarada Cardoso.

- É sim, camarada Teté. Aprendemos que a luta era para o benefício futuro. Um país sem exploradores, igualitário, com escolas, hospitais e oportunidades ... - Recordou Cardoso.

- Sim camarada! A nossa luta é até ao fim. Até à ultima gota é esperança.

E foram conversando, recordando, com passagens pitorescas pelo meio, assim como o cronista repleta o estômago da sua prosa. Chegou a vez da avó Teté que se encontrava na fila feminina das "pessoas de idade" como os jovens tratavam os idosos daqueles tempos da terceira República. A agência estava cheia, porém alegre. A avó Teté com o seu refinado linguajar era, efectivamente, uma rosa naquela floresta humana.

- Seu nome, avó? - Perguntou a funcionaria bancária.

- Chamo-me Teresa.

- Sua idade, avó?

- Conforme o Bilhete de Identidade. - Respondeu a octogenária, num "bom português', ao mesmo tempo que esticava a mão que continha o documento.

A jovem conferiu, o nome, a filiação, o local e data de nascimento e a altura. Porém, esqueceu-se de ver a assinatura.

No fim do preenchimento da ficha, sacou da almofada com tinta e procurou explicar que dedo a idosa mergulharia no tinteiro.

- Avó esse dedo, aqui, o indicador, é que vai meter assim, e estampar assim?

- O quê? - Questionou meio revoltada a idosa.

- Sim, avó é para assinar.

- Não, não minha netinha. Estudei e ensinei alunos no tempo da ardósia. Dá-me cá uma caneta que eu assino.

Um idoso que se achava ao lado, já com sua conta actualizada, rápido se prestou em esticar a caneta que a avó Teté segurou com toda a delicadeza, como se fosse desenhar uma flor novembrina e, com sua caligrafia de pôr inveja a doutoras de seis pancadas, assinou legivelmente o seu nome.

Teresa Miranda Lopes.

Estupefacta, a rapariga, vinte e tal anos, quase se ajoelhou em súplicas e pedidos de perdão.

- Ngiloloke kuku. Ngakudyondo[10].

Velha Treza, crente metodista confessa e convicta, pôs-lhe a mão sobre a cabeça e desatou:

- Fica com a minha bênção netinha. Não fizeste nada de mau.

==

Texto publicado pelo Jornal Cultura de 14.09.2022, pg. 24.

==

[1] Porco (do Kimbundu).

[2] Triciclo motorizado com carroça para transporte de bens. Em algumas regiões de Angola transporta pessoas e bens,

[3] Do original muxi=árvore; lwandu=esteira: árvore onde se confeccionam esteiras.

[4] Prova de vida. Acto anual para que idosos continuem a beneficiar da pensão.

[5] “Primeira” base de guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola na região de Nambuangongo. Alguns idosos da região atestam ter sido criado entre 1962 a 63.

[6] Alusão à saída dos colonos brancos; independência.

[7] Corruptela de Muxaluando, sede municipal de Nambuangongo, município do Bengo.

[8] Mandioca demolhada e posteriormente seca. Serve para a feitura de fuba ou farinha de bombô.

[9] Espaço sem dente. Desdentado.

[10] Perdoe-me avó. Peço-lhe perdão (do Kimbundu).

Sem comentários:

Enviar um comentário