quarta-feira, 1 de outubro de 2025

NO TEMPO DA LÚCIA

A peça tinha terminado há pouco. Lúcia ainda estava com os olhos marejados — não pela encenação em si, mas pelo jogo que encerrava o espetáculo. Um jogo simples, mas brutal. À porta, transformada em ponto de partida, o pai e os três filhos alinhavam-se. A mãe, com voz firme e olhar distante, fazia perguntas sobre a infância. Cada resposta afirmativa exigia um passo à frente.

— Quem teve, na infância, pão, leite e frutas?
Somente os filhos avançaram.
— Quem tem mais do que um par de sapatos?
De novo, apenas os filhos.
— Quem frequentou colégio privado?
Os filhos marcaram mais um passo.
— Quem nunca foi a pé à escola? Quem sempre teve todo o material escolar? Quem toma todas as refeições diárias?
Somente os filhos marcaram passos. O pai, sozinho e sorridente, permanecia no ponto de partida. Feliz, não por ter ficado para trás, mas por ter conseguido proporcionar aos filhos aquilo que muitos meninos do seu tempo não tiveram — inclusive ele.
A distância entre o pai e os filhos crescia a cada pergunta. Até que uma das filhas, a mais sensível, não aguentou e pôs-se a chorar. Lúcia, que assistira a tudo com olhos atentos, sentiu um nó na garganta. Era como se o palco tivesse virado espelho. E naquele reflexo, ela viu o pai — o seu pai, de quem herdara o nome e a condição de filha derradeira — parado lá atrás, como quem nunca teve direito ao passo.
Mais tarde, quando o pai chegou do trabalho, Lúcia decidiu confrontá-lo. Não com raiva, mas com curiosidade. Queria entender o tempo dele. O tempo em que não havia chocolates em pacotes brilhantes, nem cantinas, nem mochilas com rodinhas.
Ele estava na sala de jantar, distraído com o cheiro do café e o chilrear dos pardais. Ela, no sofá da sala de visitas, cruzava os braços com ar sério.
— Papá, por que no teu tempo não havia carros, nem telemóveis, nem colégio privado?
O pai ajeitou os óculos e mergulhou no passado como quem folheia um álbum de memórias.
— Não havia mesmo. Andávamos a pé, mas éramos felizes. Os poucos carros que existiam davam boleia. E ninguém tinha medo de andar sozinho. A escola pública era boa. Não havia luxo, mas havia respeito.
Lúcia franziu o sobrolho.
— E chocolates?
— Havia pão nos depósitos. Às vezes, doce de goiaba. Cuscuz e leite só quando calhava.
— Então o teu pai não te dava dinheiro?
— Não. Só recebia mesada quando sobrava.
Ela olhou para ele com olhos de quem carrega o mundo inteiro na mochila da infância.
— Mas eu sou tua filha. E o Papá tem de me mimar com dinheiro para comprar chocolates.
O pai riu. Não da exigência, mas da lógica imbatível da infância.
— No meu tempo havia estórias à volta da fogueira. No teu tempo há chocolates. Vamos fazer um acordo: eu dou o dinheiro para os chocolates e tu contas-me estórias.
E assim nasceu um pacto. Cada tablete de chocolate vinha acompanhada de uma estória inventada por Lúcia: princesas que andavam de moto táxi, elefantes que dançavam em rodas e bonecas que ensinavam umbundu.
No fim, Lúcia ganhou chocolates. E o pai, estórias. Estórias que ela contaria aos colegas da segunda classe, nos intervalos da escola, como quem distribui passos à frente — não por posses, mas por imaginação.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A CAÇADEIRA DE KAPAYO

O dia estava agitado, como o vento frio que soprava impiedoso, parido e empurrado pela corrente gélida de Benguela. No vasto espaço ao redor do Estádio de Ombaka, agora metamorfoseado em ruelas e vielas por construções temporárias de stands, homens e mulheres se acotovelavam para passar, levantar ou pousar imbambas de toda sorte. O recinto fervilhava com a azáfama de feirantes vindos de todos os cantos de Angola: lá estavam 21 províncias e 326 municípios que representavam o povo, suas identidades culturais e as idiossincrasias de mais de 378 comunas.

Entre os muitos stands, um em particular chamava atenção — o do Úkwa, antiga comuna perto de Kakwaku da minha infância escolar. Ali, repousava a réplica de uma caçadeira esculpida em madeira, que parecia guardar memórias ancestrais.
— Chefe, estão a vender arma! — exclamou a jovem Suzana, talvez tomada pelo medo ou pela curiosidade pueril.
— Arma? De guerra ou de caça? — perguntei, aproximando-me.
O objecto, embora inofensivo, fez-me recuar quarenta e cinco anos no tempo. A memória trouxe-me a imagem da “passadeira” do tio Kapayo. Era assim que chamávamos a sua pequena caçadeira, usada para espantar os pássaros que desenterravam o milho recém-semeado. Os atrevidos que esvaziavam os mamões ainda nos mamoeiros tinham o mesmo destino — sobretudo os mais corpulentos, que, abatidos, viravam conduto em tardes de sol abrasado e fome de leão.
Às vezes, a "passadeira" do tio Kapayo, na nossa Munenga, também servia para afugentar macacos teimosos ou abater lebres quando a sorte sorria. Mas ninguém, além dele, ousava usá-la. Era dono de uma pontaria que gerava inveja e admiração.
— Quando eu crescer como o tio Kapayo, também quero ter uma igual — sonhávamos, primeiro com a chance de segurá-la, depois com o desejo de possuir uma que nos desse liberdade de disparar e levar o produto às mamães, que se alegravam quando nossas armadilhas traziam conduto para casa.
— Chefe, não sai tiro? — voltou a perguntar a Suzana, inquieta ao ver-me ensaiar uma posição de tiro.
— É de madeira. A verdadeira não pode ser exposta. Lá na nossa zona, as caçadeiras têm grande valor. Homem de verdade tem de ter uma, no mínimo. As pequenas são para abater aves que prejudicam o milho. Também servem para afugentar os macacos que destroem a banana, o milho e outras culturas. As grandes, essas só os mais velhos usam. São eles que se embrenham na floresta densa à procura de veados, corsas, porcos-espinhos, javalis, pacaças e outros animais.
Enquanto eu e a senhora do Úkwa desfiávamos rosários de lembranças, a Suzana balançava a cabeça em aprovação, acompanhando cada detalhe de uma história desconhecida e absorvendo o conhecimento como quem bebe água fresca em dia de calor.
Foi então que se aproximou um homem de porte firme, chapéu de palha e olhar sereno. Chamava-se Mário, artesão e contador de histórias da comuna da Munenga. Trazia consigo um pequeno tambor e uma sacola com diversas sementes.
— Essa caçadeira aí tem alma — disse ele, com voz grave. — Foi feita à imagem da que o Augusto Kapayo usava. Eu mesmo vi ele abater um porco-espinho com um só disparo, sem ferir a carne.
— Conheceu o tio Kapayo? — perguntei, surpreso.
— Conheci. Estudámos Dormimos juntos e passamos várias noite na mata, em tempos de caçadas. Ele dizia que a arma não era só para matar, mas para proteger o milho, a honra e os sonhos dos meninos da Munenga. As nossas caçadeiras atendiam a diversão e o imperativo de levar carne para casa. Lembro que o velho João, pai do Kapayo, trabalhou quase um ano a juntar o dinheiro para comprar a caçadeira que ofereceu de presente ao filho, quando esse completou a quarta classe do tempo colonial que era igual à vossa universidade de hoje.
A Suzana arregalou os olhos.
— Tio Mário, e vocês nunca tiveram medo de dormir na mata?
— Medo? Medo é como sombra: só aparece quando o sol está forte. À noite, quem tem caçadeira não tem medo. O caçador aprende a andar com ela sem tropeçar.
Nesse momento, juntou-se ao grupo uma menina de tranças apertadas e olhos curiosos. Chamava-se Lúcia, filha da senhora do stand. Trazia um cesto com frutas e uma pequena estatueta de madeira.
— Esta é a minha primeira escultura — disse ela, oferecendo-me. — É um macaco a fugir da lavra.
Sorri. A arte, ali, era memória viva. Já tinha visto tantos a fugir da lavra com uma espiga de milho na boca.
— Tia, e os homens do Úkwa não sentem medo dos animais na floresta? — insistiu Suzana.
— Filha, tudo se treina e aprende. Medo é para pessoa kawisu. Mas a vida é cíclica. Muitos dias têm sido de alegria para os caçadores, mas também já houve acidentes na mata em que o caçador virou presa.
Ensaiada a posição de tiro, aquele sonho de infância nunca realizado voltou a pulsar em mim. Mas havia outros afazeres. Parti, deixando a Suzana, a Lúcia e o velho Mário trocando saberes sobre a vida nas aldeias do Úkwa e da Munenga e sobre um país que, ali, se mostrava inteiro aos olhos de todos.
E a caçadeira, brilhante e silenciosa, continuava a contar histórias a quem soubesse escutá-la.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Entre chaladices e filosofias: A tessitura da trama em Chico, Bernardo e Mangodinho

A literatura de Soberano Kanyanga é marcada por uma oralidade vibrante, personagens profundamente humanos e uma crítica social que se entrelaça com humor, dor e sabedoria popular. Neste artigo, analisamos comparativamente três figuras centrais de suas crónicas: Chico "Pé de Muleta", Bernardo "Bebê" e Mangodinho, explorando a tessitura da trama em que cada um se inscreve.

Chico "Pé de Muleta" – A tragédia como sabedoria
Em As Chaladices do Chico "Pé de Muleta", Chico é apresentado como um sobrevivente de um acidente infantil causado pela negligência alcoólica da mãe. A sua deficiência física torna-se marca identitária e símbolo de resistência. A narrativa constrói Chico como um educador informal, que mesmo embriagado, ensina geografia e identidade aos sobrinhos:

“Vocês são burros. Vê lá se ainda não conhecem a cidade.”

A tessitura da trama é trágico-reflexiva, com forte ligação ao espaço comunitário e à memória colectiva. Chico é respeitado e temido, e sua voz carrega a autoridade da experiência vivida.

Bernardo "Bebê" – O riso como crítica

Em As Chaladices do "Bebê", Bernardo é uma figura cômica e provocadora, que habita o espaço da barraca da Dona Páscoa e transforma o quotidiano em sátira. Suas frases ambíguas, como:  

"Esses buracos estão a ser tratados como frangos: primeiro limpam, depois temperam com brita e só depois é que metem o óleo quente".

Ou quando ironiza a política local:

“Aqui, até os buracos têm plano de desenvolvimento. Só falta mesmo o orçamento” são exemplos de como o humor é usado para desmascarar o absurdo social. Bernardo representa a irreverência popular, e sua presença é marcada por leveza, mas também por crítica mordaz. A tessitura da trama é cômico-satírica, com ritmo oral e linguagem popular, aproximando o leitor da realidade angolana com riso e reflexão.

Mangodinho – A dor como arte
Mangodinho, personagem central de textos como o publicado em outubro de 2023, é construído com uma veia filosófica e existencial. Ele representa a dor transformada em arte, a coragem como essência humana, e a marginalidade como espaço de criação:

“Mangodinho é aquele que desafia a dor e ama a arte.”

A tessitura da trama em que Mangodinho se inscreve é densa, simbólica e introspectiva, com linguagem mais literária e menos episódica. Ele transcende o espaço físico e torna-se símbolo de transcendência.

Comparação entre os personagens
Chico, Bernardo e Mangodinho representam três formas distintas de construção narrativa na obra de Soberano Kanyanga. Chico é marcado por uma tonalidade trágico-reflexiva, funcionando como educador marginal e crítico da alienação. Bernardo, por sua vez, é cômico-satírico, provocador popular que usa o riso para expor o absurdo social. Mangodinho é filosófico-existencial, símbolo de transcendência e dor transformada em arte.

Enquanto Chico actua em espaços comunitários rurais e Bernardo em ambientes urbanos populares, Mangodinho transcende o espaço físico, habitando uma dimensão simbólica. A linguagem de Chico e Bernardo é oral, rica em expressões locais, enquanto Mangodinho é tratado com linguagem mais introspectiva e literária.

Todos os três personagens partilham uma profunda humanidade e ligação visceral à realidade angolana, compondo uma tapeçaria literária rica, crítica e afectiva.


quarta-feira, 2 de julho de 2025

"HÁ DIAS ASSIM..."



A frase que dá título a esta postagem é do Armindo Laureano.

Quem me leva a recitá-la é a jovem escritora Unkulu D'Papel (Numélia  Baptista Tchiteculo,

ou Tchite Unculo), natural do Huambo e contando apenas 20 anos.

Conheci a Numélia num das redes sociais. A princípio desconfiei:

_ Por que quer uma adolescente tornar-se minha amiga?

Explicou que lera o meu livro e o inspirou, dai ter procurado pelo autor de "O coleccionador de pirilampos". Passei a ler os escritos dela e a dar-lhe feedback. Apercebi-me pela comunicação social e redes sociais que já tinha feito a sua estreia como autora de um livro de ficção.

Em uma mensagem que me remeteu, Unkulu D'Papel disse que "me tinha como inspirador" e remeteu o seu livro com a dedicatória a mim dirigida.

Quatro Abraços-Os passos encantados que o vento soprou pelas palavras

Muito brigado, Numélia!

domingo, 1 de junho de 2025

Jornal Angola Económico | ESCRITOR SOBERANO KANYANGA

O que o levou a escolher a temática da motivação no ambiente de trabalho, especificamente no contexto do então Ministério da Geologia e Minas?

= Quando, em 2015, cheguei ao então MGM, nomeado director de RH, encontrei muitos desafios como a falta de assiduidade, pontualidade, improdutibidade, a falta de comprometimento e outros aspectos, por parte dos colaboradores, que prejudicavam a organização. Para mim, saído de uma empresa privada onde cada um conhecia o seu descritivo de funções e a actividade estava virada para os resultados, aquilo foi um espanto e preocupação, cujas causas precisavam de ser  conhecidas e mitigadas. Emergi na organização, visitei os outros ministérios que se encontravam no largo António Jacinto (Educação, Cultura, Juventude e Desportos, Agricultura, Antigos Combatentes e alguns departamentos do Mirex) para fazer uma analogia. O primeiro exercício foi ao olho e por via de conversas e permitiu perceber o que os outros tinham e nós, MGM, não tínhamos, e os resultados 

que podiam advir da implementação de certas medidas como o transporte para os funcionários, o seguro de saúde, o maior controlo da pontualidade, a responsabilização, a clarificação das tarefas a atribuir ao colaborador, assim como estabelecer deadlines para a conclusão de tarefas, a melhoria da remuneração e da qualidade de vida no trabalho, a formação, entre outos aspectos.

Quais foram as principais descobertas do seu estudo de caso em relação ao impacto da falta de motivação nos colaboradores?

= A gestão deve ser proactiva e transparente; a comunicação deve ser melhorada na verticalidade e horizontalidade; a política  retribuitiva (remuneração) deve ser adequada e justa; os colaboradores devem conhecer os seus direitos e deveres e os materializarem; a capacitação deve ser contínua; deve haver mobilidade interna para que o colaborador execute as tarefas que saiba e goste; a organização deve responsabilizar os incumpridores; o ambiente laboral deve ser sadio e adequado; deve haver ferramentas e equipamentos de trabalho, etc. É preciso ler o livro.

Como define a relação entre motivação e desempenho organizacional e que evidências apresentas em seu livro para apoiar essa conexão?

= A motivação é intrinseca. O empregador/gestor cria elementos potenciadores da motivação. Trabalhador que se reveja na organização e lute por ela, que esteja consciente de que as suas rendas provêm do seu trabalho, ou seja, que é reforço e não esforço, é um trabalhador motivado. Trabalhador motivado é produtivo e feliz no local de trabalho. Quem passe mais tempo no local de trabalho do que em casa deve sentir-se feliz e gostar de ir aonde presta labor. Motivação e produtividade estão relacionadas.

Durante o processo de pesquisa, quais desafios encontrou ao abordar a questão da motivação no sector mineiro?

= Os desafios foram muitos e começam pela excessiva ideia de que "não se pode falar sobre o trabalho ou sobre o que se faz no trabalho" (cultura do secretismo), mesmo se tratando de um estudo sociológico e com fins académicos (serviu para Pós-graduação e Mestrado). Tivemos de iniciar por obter uma autorização do Ministro Francisco Queiroz, que gostou da iniciativa e autorizou de imediato. Todavia, levei mais de seis meses para recolher uma amostra de 70 inquiridos entre uma população total de 140 colaboradores. A falsa ideia do secretismo ou o desfoque total às questões que digam respeito à melhoria de determinadas práticas administrativas são males que ainda ensombram a administração pública. Em contra-senso, aquilo que se procura esconder aos colegas sai às redes sociais, uma prática que deve ser banida. Tivemos desafios, entretanto superados, pois a vontade de terminar o estudo, para compreender cientificamente a organização e propor melhorias, assim como terminar um desiderato académico, falaram alto. Devo ressaltar o empenho dos meus liderados do GRH, em especial a Helena Cuca, que ajudou bastante na mobilização e recolha do inquérito em que participaram todos os extratos da organização. Directores, chefes de departamento, chefes de secção, técnicos superiores de diferentes categorias, técnicos, técnicos médios, administrativos, operários, todos foram inquiridos. 

Como o lema das Jornadas do Mineiro, "Mineração Responsável, Futuro Brilhante", se relaciona com os temas abordados em seu livro?

= A apresentação pública do livro esteve enquadrada nos festejos do Dia do Mineiro que, para 2025, tem o lema "Mineração Responsável, Futuro Brilhante".

Quais são suas expectativas em relação ao impacto que sua obra pode ter na maneira como as organizações pensam sobre a motivação de seus colaboradores?

= O livro/estudo é um despertador quer para os colaboradores, quanto para os líderes. Foram levantados aspectos que, às vezes, nos passam despercebidos. Foram feitas recomendações também. O livro é por si, um começo e não um fim. As abordagens devem ser continuadas em outros prismas. Sendo resultado de um trabalho científico-académico, também pode servir de consulta a estudantes e gestores de RH. 


quinta-feira, 1 de maio de 2025

"A FALTA DE MOTIVAÇÃO E IMPACTO NOS COLABORADORES" AOS OLHOS DE LÍZIA HENRIQUE

 DALAI LAMA UMA VEZ DISSE “TODA ACÇÃO HUMANA, QUER SE TORNE POSITIVA OU NEGATIVA, PRECISA DEPENDER DE MOTIVAÇÃO”

Boa tarde a todos,

É com enorme prazer que vos dou as boas-vindas a esta sessão tão especial de lançamento do livro A FALTA DE MOTIVAÇÃO E O IMPACTO NOS COLABORADORES- UM ESTUDO DE CASO NO MINISTÉRIO DE GEOLOGIA E MINAS, uma obra que promete marcar não só os leitores, mas também o panorama literário nacional.

Hoje, temos a honra de contar com a presença do seu autor, Luciano Canhanga |Soberano Kanyanga|, uma figura que se destaca pela sua sensibilidade, dedicação à escrita e pela forma como consegue transformar palavras em emoções vivas.

Luciano Canyanga tem vindo a construir um percurso notável, seja através da sua escrita envolvente, bem como da sua capacidade de observação da realidade.

Este, sempre esteve ligado ao jornalismo e comunicação institucional, mas foi nas vestes de Director de Recursos Humanos que se viu digamos, "forçado” a imergir nos desafios que encontrou no então Ministério de Geologia e Minas, quando convidado a dirigir o GRH, após colaboração em uma empresa extractiva (a Sociedade Mineira de Catoca)

Eventualmente, você pergunte: Que desafios encontrou?

 Meus senhores e minhas Senhoras estes desafios encontram-se no livro!

O livro em destaque, aborda um tema crucial para o desempenho organizacional, especialmente no contexto do funcionalismo público angolano.  

Este livro representa não apenas uma contribuição valiosa para o campo de Recursos Humanos, mas também um testemunho do rigor, da dedicação e da paixão que o autor deposita no seu trabalho. Ao longo das suas páginas, somos guiados por uma análise profunda, sustentada em investigação atualizada, metodologias sólidas e um espírito crítico exemplar.

A pesquisa realizada revela, que a falta de motivação é um dos principais factores que impactam negativamente o desempenho dos colaboradores, sendo um desafio significativo para a gestão de actividades no setor público.

Na referida pesquisa o autor utilizou métodos quantitativos e qualitativos, incluindo questionários aplicados a setenta funcionários, a fim de explorar as causas e consequências da desmotivação no então Ministério de Geologia e Minas.

O estudo, realizado no Ministério de Geologia e Minas, identifica que a ausência de políticas e acções voltadas à motivação, como o reconhecimento, a remuneração adequada e incentivos como o seguro de saúde e a formação, contribui para a desmotivação dos funcionários, cujos resultados negativos para a organização todos os gestores conhecem.

Entre as conclusões, destaca-se o facto de a motivação estar diretamente ligada à recompensa e ao estilo de liderança, e que as variáveis sociodemográficas influenciam os resultados. É ainda sugerido, que as lideranças devem repensar as suas práticas para melhorar o ambiente organizacional e a valorização dos colaboradores.

Para além do rico conteúdo, que é uma nítida fotografia dos desafios com que se debatem muitas das instituições públicas, para não dizer todas, o autor procurou, igualmente, preservar a história de um colectivo de colaboradores que cada um ao seu nível, procuraram prestar um serviço público digno e humanizado.

Hoje, infelizmente, não podemos dizer à nova geração que no Largo António Jacinto (conhecido como largo dos Ministérios) existiu um edifício que atendeu os Serviços de Geologia e Minas e, posteriormente, o Ministério de Geologia e Minas, pois este edifício (mostrar a contracapa) já não existe.

Termino com um sincero agradecimento a Luciano Canhanga, não só pela obra que hoje nos apresenta, mas também pelo contributo inestimável que tem dado ao desenvolvimento do conhecimento.

Convido agora o autor a partilhar connosco um pouco do seu processo criativo, das motivações por detrás deste livro e, claro, do que podemos esperar ao mergulhar nesta leitura.                  

Muito obrigado a todos pela presença.

Lízia Henrique

Em Luanda, aos 24 de Abril de 2025.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

SERÁ QUE A MATOU?!

A semana tinha sido difícil. Estressante. A cidade parecia respirar com esforço, como se cada esquina carregasse o peso de uma espera silenciosa. A manhã daquela sexta-feira 13 acordou agoirenta, com um presságio no ar — algo incomum devia acontecer.

O sol, tímido, espreitava por entre nuvens pesadas. A tarde arrastava-se como um velho cansado. Veio o frio. Gélido. Correu com as crianças e os idosos aposentados de todas as lutas para dentro de suas casas. Os casais aconchegaram-se em suas mabata, de onde, minutos depois, se ouviam sussurros religiosos soltos aos ventos:

— Ai, meu Deus!
— Oh, meu senhor!
— Vem, meu cavalheiro, rasga-me esse coração!
— Aperta-me, cabrão!
— Allahu Akbar!

Na festa dos sobrados, a música gritava ao vento aberto. O álcool entorpecente cantava nas veias dos presentes. Vivia-se um comunismo primitivo. Todos eram de todos, até a Feiosa. Dançavam como loucos. Mediam-se olhares e toques. Légua a légua, percorriam distâncias enquanto tarrachavam ao ritmo da música.

Ela estava lá. A mulher de olhos de fogo e passos de felino. Agressiva como uma leoa ferida. Ele também. Calmo, tranquilo, mas desperto como um grilo estridente ao pé da toca. Os olhares cruzaram-se. Não houve palavras. Apenas o silêncio cúmplice dos que sabem o que querem.

Ela pegou-lhe o martelo. Ele, sem hesitar, kibyonou-lhe o eréctil médio que percorreu aceso o córrego húmido e carente. Transbordante de desejos, puxou-o para um canto em meia luz. Prostrada, baixou a cortina e declamou doce e ciosa:

— Acaba de me matar!

Silêncio. O tempo parou. A música continuava lá fora, mas ali, naquele canto, o mundo havia suspendido a respiração. Teria ele obedecido? Teria ela sobrevivido à própria entrega?

A sexta-feira 13 não respondeu. Apenas seguiu, fria e misteriosa, como sempre.

domingo, 23 de março de 2025

AS CHALADICES DO "BEBÊ"

Nota prévia:

O meu primo, de quem me fui despedir pela última vez (ele em outra dimensão da vida e eu nesta prevalecente e ainda racional), nasceu Kitumba. Uma razão terá existido para que lhe fosse atribuído um nome relacionado a amuleto feiticista. No registo civil, entenderam os pais dar-lhe um "pomposo" nome português e passou a Adriano Kambota. Quando fosse a Luanda, tratávamos-lhe por "Guerra fiz mal", em alusão a uma de suas calinadas quando se comunicava em língua portuguesa, dado que toda a sua comunicação era feita, essencialmente, em Kimbundu.

Também soube, da minha mãe, que o antropónimo Kambota está relacionado a uma praga de gafanhotos que aconteceu em um ano qualquer da década de 20 ou 30 do século XX. Primeiro surgiram os gafanhotos, vindos "dos céus" que devoraram tudo o que esverdecia. Chamaram ao fenómeno Ikoho [gafanhotada] e todos os que nasceram naquele ano ganharam o nome de Kikoho [grande gafanhoto ou gafanhotada].

Aditou ainda a septuagenária que depois de devorarem as lavras e o mato incultivado, "os gafanhotos ovificaram e nasceram outros menores em tamanho e quantidade. A estes insectos, menos 'agressivos' e lesivos aos interesses agrícolas do que os precedentes, tendo sido usados para 'forrar os estômagos', enquanto 'conduto', foram apelidados de kambota. Assim, grande parte dos rapazes nascidos naquele ano que a iliteracia não registou foram apelidados de Kambota".

O meu tio, que no registo civil ganhou o nome Xavier Kambota, nasceu no tal ano em que eclodiram os gafanhotos kambota, depois do ano dos kikoho.
Bem, a prosa é sobre Bernardo, rapaz do Dondo [Marginal], que me encontrou junto à barraca [cacussaria] da dona Páscoa, onde, normalmente paro para fazer a minha refeição de "meio-da-viagem" ou encomendo algo para abocanhar à chegada ao destino. Desde que o meu filho Arlindo entornou o frasco da dona Páscoa contendo a "farinha museke" que paro para adentrar a barraca dela, para pegar a encomenda feita previamente ou indico parentes e amigos a frequentar o sítio dela. Estão já transcorridos dez ou mais anos.
_ Papá, deixa-me lavar os teus ténis, é só duzentos. _ Atirou o bernardo, algo simpático e marketeiro.
_ Filho vou à lavra. _ Respondi, afagando-lhe os ombros.
_ Pai, pode limpar os ténis. É para os macacos te estranharem. _ Insistiu o Bernardo, com elevado sentido de humor.
Recebida a encomenda da Dona Pascoa, pois seguia apressado para a aldeia de Pedra Escrita [Munenga] para assistir ao óbito do meu primo Kitumba e não havia tempo para sentar e apreciar a chopa, levei a mão à algibeira das calças e a minha mão conseguiu "pescar" uma moeda de kz 50 que dei ao Bernardo. Este, sempre bem-humorado voltou a recomendar.
_ Papá, cuidado com buracos na estrada que estão a ser tratados como frangos.
_ Como frangos? Como assim? _ Retorqui.
_ Sim, Papá. Primeiro, deixam engordar, depois é que abatem [tapam].
Só quando estava a trafegar entre o desvio da hidroeléctrica de Kambambi e o [novo] Kyamafulu [ponte sobre o rio Kwanza] me apercebi que havia um trabalho de tapa-buracos que tinham deixado engordar.
...

Episódios ocorridos a 18 de Março de 2025. Texto publicado no Jornal de Angola a 23.03.2025.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Um "VIJU" NO DIA DOS NAMORADOS

(Extracto de "O relógio do Velho Trinta)

Ao chegar da viagem, no aeroporto internacional de Mwangope, uma inusitada conversa entre pai e filho atraiu a atenção de Satula que fazia contas para se desfazer, sem dinheiro, daquele recinto.

_ Pai! _ Chamou o rapaz, dez anos, mais ou menos. _ O papá não está a viajar à África do Sul por causa do seu cancro na próstata?

_ Sim filho. _ Respondeu Basílio de Melo. Sessenta anos, mais ou menos, e cabelo algodoado a embermar a pista encefálica.

_ E porquê que o papá disse ao senhor que nos saudou que tem sida, se o exame do médico diz cancro na próstata? _ Voltou a questionar o rapaz na sua inocência.

_ Filho! É preciso ser táctico. Ser vijú. Esses gajos andam de olhos no meu kumbú e na tua mãe. Assim, o boato se alastra e já ninguém colhe as minhas frutas! 
_ Respondeu Basílio, um conhecido empresário de Mwangope, desfazendo-se da incómoda pergunta do garoto que não percebeu a ironia. _ Olha, filho, vê aí se há algo que te agrada. _ Emendou.

Encostado a uma parede, Satula magicava o futuro. A reflexão durante a viagem remeteu-o para um estreito desfiladeiro. “Um empresário sem urnas e, pior ainda, sem as galinhas de ovos de ouro que eram os clientes ricos da zona baixa de Mwangope”. Faminto e cansado, sentia o chão a fugir-lhe. Faltava-lhe energia para se reerguer e chegar à casa. Decidiu caminhar até se acoitar debaixo de uma árvore, das raras que enfeitavam as ruas da cidade. Fez as contas do troco no bolso e traçou o plano: “andar num azul-e-branco até à casa custa, até ao fim do percurso que separa o Aeroporto a Vila Nova, um total de $400.00, valor dividido por 4 trechos de igual valor”.

_ Tenho que me meter mesmo neste carro da kandonga, que me vejam e comentem. _ Afivelou em voz baixa.

Umas vendedeiras da zunga que o ouviram a desabafar tentaram pôr conversa fiada, apenas para entreter.

_ Como é que um tio desses, assim com barriga tipo boss, vai andar no “conta novela” [1]?

_ Hum! Deve ser só barriga de mentira. _ Disse outra para depois troçar: _ Tio compra já mebendazol e num fica só com barriga tipo és boss, afinal é ‘mbora bichas.

Satula não deu importância à falácia e seguiu o seu caminho, trocando prosas com um companheiro de desgraça até à paragem mais próxima dos machimbombos.

_ Epá! _ Disse ele para o homem ao seu lado esquerdo _ Isso agora parece que está mais p’ro inferno do que para a urbanidade!

_ Sim, meu camarada! É só ver como andam as pessoas nos carros. Todos ensardinhados e a engolir cada vez mais poeira levantada pelos veículos...

_ É mesmo! Isso anda maluco! E nós que estamos mais no interior do que na capital sofremos mais ainda.

_ Pois é. _ Replicou Kitomangombe, o seu interlocutor, que vivia ininterruptamente na capital. Porém, a semana de ausência no Nordeste, também lhe causava estranhezas.

_ E como é que vais à casa? _Perguntou ainda Kitomangombe.

_ Epá! Eu me desenrasco... De qualquer meio que aparecer. Kupapata[2] ou mesmo “avó chegou” [3], tudo serve. _ Respondeu Satula, sempre irónico.

Kitomangombe seguiu o caminho do Roda Ponteiro e Satula dirigiu-se a uma agência bancária que ladeava a estrada da Revolução Bolchevique. Estava decidido em alugar uma viatura particular caso conseguisse dinheiro. Pretendia chegar cedo à casa, onde os filhos e a amada o aguardavam esperançosos. Afinal era Dia dos Namorados.

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[1] Nome atribuído aos autocarros devido à lentidão e demora que levava os frequentadores a contarem a novela apresentada na Tv para evitar a fadiga.

[2] Motocicleta.

[3] Motorizada de três rodas; vulgarmente usada pelas idosas provenientes das lavras ou dos mercados, transportando mercadorias.

=

Publicado pelo Jornal de Angola a 16.02.2025

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O "PROSTÍBULO" DO ANDRÉ

Durante os anos 90, no coração da regedoria de Kuteka, havia um gaveto discreto entre duas alas do edifício da Kuditemo Lda., o maior fornecedor de kuribotices da época. Nesse canto esquecido, funcionava um serviço público modesto, quase clandestino, onde reinava uma máquina Konica — a famigerada fotocopiadora que, com seus ruídos metálicos e cheiro de toner, parecia ter vida própria.

Ali trabalhava André Kitongo, jovem culturista de 25 anos, cuja presença era tão aguardada quanto o café da manhã. As secretárias e o pessoal do expediente dirigiam-se a ele com uma mistura de respeito e urgência. Na sua ausência, deixavam os documentos por fotocopiar sobre uma velha mesa de madeira, marcada pelo tempo e pelos cantos lascados, acompanhados de recados em post it de todas as formas e cores: corações, tiras estreitas, tons quentes e frios, verdes-alface e amarelos desbotados. Com o tempo, André desenvolveu uma habilidade quase mística de identificar o remetente e a urgência apenas pela cor e formato do papel.

Na sala, além da Konica e da mesa, havia um sofá gasto, de estofos cansados, que durante anos acolheu as horas de descanso de André. Era ali que ele repousava entre uma cópia e outra, sonhando talvez com músculos maiores ou com os mistérios por trás dos recados que recebia.

André não descartava os post it. Guardava-os com zelo numa caixinha de papelão, onde cada bilhete era uma peça de um puzzle que só ele parecia entender. Alguns eram memoráveis:

“André, quero frente e trás. Jéssica.”
“Querido André, hoje quero só de trás.” – Bela.
“Andrezinho, hoje tens de fazer rapidinho. Quero duas de trás.” – Rosa.
“André, sem demora, estou sem muito tempo. Quero de frente. Rápido...” – Andresa.

Com o tempo, o serviço foi transferido para outro local, por conta de obras de restauro. O gaveto ficou para trás, esquecido, como um segredo mal enterrado. A caixinha permaneceu ali, entre o pó e o silêncio, testemunha muda de uma rotina que já não existia.

Vieram os tempos de abandono. O edifício, outrora funcional, tornou-se abrigo de mendigos, vagabundos e mulheres da vida. O sofá, antes trono de André, virou leito de passagem. Alguns recados, curiosamente, foram materializados — não por André, mas por outros que ali encontraram refúgio e sentido nas palavras soltas.

Anos depois, chegaram os homens da empresa restauradora. Vasculhando os escombros, encontraram a velha mesa, o sofá desbotado e, por fim, a caixa de post it. Ao lerem os bilhetes, sem qualquer contexto, imaginaram histórias que não existiam, fantasias que não eram reais. E assim, entre risos e especulações, apelidaram aquele cubículo de “prostíbulo do André”.

Mal sabiam eles que ali se escondia apenas um capítulo singelo da burocracia de outrora — um lugar onde a rotina se escrevia em cores e onde cada recado era apenas um pedido de cópia, envolto em afecto, pressa e papel adesivo.