
A peça tinha terminado há pouco. Lúcia ainda estava com os olhos marejados — não pela encenação em si, mas pelo jogo que encerrava o espetáculo. Um jogo simples, mas brutal. À porta, transformada em ponto de partida, o pai e os três filhos alinhavam-se. A mãe, com voz firme e olhar distante, fazia perguntas sobre a infância. Cada resposta afirmativa exigia um passo à frente.
Somente os filhos avançaram.
— Quem tem mais do que um par de sapatos?
De novo, apenas os filhos.
— Quem frequentou colégio privado?
Os filhos marcaram mais um passo.
— Quem nunca foi a pé à escola? Quem sempre teve todo o material escolar? Quem toma todas as refeições diárias?
Somente os filhos marcaram passos. O pai, sozinho e sorridente, permanecia no ponto de partida. Feliz, não por ter ficado para trás, mas por ter conseguido proporcionar aos filhos aquilo que muitos meninos do seu tempo não tiveram — inclusive ele.
A distância entre o pai e os filhos crescia a cada pergunta. Até que uma das filhas, a mais sensível, não aguentou e pôs-se a chorar. Lúcia, que assistira a tudo com olhos atentos, sentiu um nó na garganta. Era como se o palco tivesse virado espelho. E naquele reflexo, ela viu o pai — o seu pai, de quem herdara o nome e a condição de filha derradeira — parado lá atrás, como quem nunca teve direito ao passo.
Mais tarde, quando o pai chegou do trabalho, Lúcia decidiu confrontá-lo. Não com raiva, mas com curiosidade. Queria entender o tempo dele. O tempo em que não havia chocolates em pacotes brilhantes, nem cantinas, nem mochilas com rodinhas.
Ele estava na sala de jantar, distraído com o cheiro do café e o chilrear dos pardais. Ela, no sofá da sala de visitas, cruzava os braços com ar sério.
— Papá, por que no teu tempo não havia carros, nem telemóveis, nem colégio privado?
O pai ajeitou os óculos e mergulhou no passado como quem folheia um álbum de memórias.
— Não havia mesmo. Andávamos a pé, mas éramos felizes. Os poucos carros que existiam davam boleia. E ninguém tinha medo de andar sozinho. A escola pública era boa. Não havia luxo, mas havia respeito.
Lúcia franziu o sobrolho.
— E chocolates?
— Havia pão nos depósitos. Às vezes, doce de goiaba. Cuscuz e leite só quando calhava.
— Então o teu pai não te dava dinheiro?
— Não. Só recebia mesada quando sobrava.
Ela olhou para ele com olhos de quem carrega o mundo inteiro na mochila da infância.
— Mas eu sou tua filha. E o Papá tem de me mimar com dinheiro para comprar chocolates.
O pai riu. Não da exigência, mas da lógica imbatível da infância.
— No meu tempo havia estórias à volta da fogueira. No teu tempo há chocolates. Vamos fazer um acordo: eu dou o dinheiro para os chocolates e tu contas-me estórias.
E assim nasceu um pacto. Cada tablete de chocolate vinha acompanhada de uma estória inventada por Lúcia: princesas que andavam de moto táxi, elefantes que dançavam em rodas e bonecas que ensinavam umbundu.
No fim, Lúcia ganhou chocolates. E o pai, estórias. Estórias que ela contaria aos colegas da segunda classe, nos intervalos da escola, como quem distribui passos à frente — não por posses, mas por imaginação.