No
Belas, o kasula dos municípios da Ngwimbi, o momento era de festa e trabalho.
Festejavam-se os dados do censo que apontavam mais de um milhão de habitantes
destronando o Cazenga que afinal não tinha o milhão da fama de muito tempo.
Festejava-se com “lambula” e “maluvu” de bordão trazido da Barra do Kwanza, lá
pelas bandas onde o bordão e o “cisombe” abundam. Os pescadores vindos da faina
distribuíam as kabwenhas para seca e os peixes mais graúdos às tias do
“bijeéé-mbijééé” que de “tombwelavam” aí mesmo. As mais espertinhas passavam a
perna as caloiras no negócio madrugador do peixe fresco.
Só
no bairro Km 30 é que a conversa era outra, embora sobre o censo ainda. Em
quase todas as ruas e ruelas havia discussão sobre “roubo” de terrenos. Uns
tinham adquirido espaços de 20m x 20m e no dia da última medição para inicio
das obras as contas estavam a bater erradas. Só as dos vizinhos madrugadores na
construção é que batiam acima do talhão.
-
Porra, se “tombwelaste” o meu terreno, assim fica como, vizinho?! – Gaspar não
tinha dúvidas. Tinha medido tudo ao pormenor. Até GPS tinha usado.
-
Porra não, vizinho. Haja respeito. Eu cheguei primeiro e cuidei do teu terreno.
Deixou de ter capim e minhocas. Quarenta centímetros que o meu pedreiro te
descontou até foi favor. – Ripostou Kafuxi com a rabujice que lhe é reconhecida
no bairro.
Enquanto
os kotas trocavam ameaças, mas sem intenção de “gargantear” o pescoço do outro,
Sanuka, miúda do bairro que estuda no IGCA apareceu com o relatório do censo,
com as makas da extensão geográfica na boca.
-
Tios, estão se dar “kibeto” só porquê se ainda o Estado também se “tombwelou”
lá terreno dele?
-
Que conversa é essa, menina Sanuka, cuidado que num se brinca com assuntos de
Estado. - Alertaram, já amigados, Kafuxi e Gaspar, atentos às folhas que Sanuka
exibia. E pareciam autênticas, com carimbo e tudo.
-
Sim, vizinhos. Quando chegou a “dipanda” dos africanos, naquela pressa do
“tunda mindele”, Angola e seus vizinhos mariscos, zairenses, zambianos e mais
tarde os namibianos eram como o vizinho Gaspar e vizinho Kafuxi. Não
tinham colocado muro ainda nos seus quintais e começaram a viver só assim. Filho
de vizinho entra na caso do outro e galinha daqui esgravata ali, sem problema
nenhum. Até que um dia o vizinho Angola decidiu murar o seu espaço. Assim tipo
já o vizinho Kafuxi fez no seu quintal. Levantou o muro e foi fazendo um
“kadesconto” aqui, outro acolá. Desbastou a “kamunda” que estava no meio dos
dois terrenos e ficou tudo plano. No lado do buraco, meteu lá a terra que era
da “kamontanha” e o terreno dele ficou mais largo. Assim fez também o Estado.
Como os vizinhos do mar, do norte, do leste e do sukl estavam a demorar
pôr os muros, Angola fez depressa e cresceu mais 5445 km2.
-
Boquiabertos os vizinhos, não se deram conta da baba a cair, perante a
explicação pitoresca mas documentada da nova intelectual do Km30, ao Belas.
-
Mas ó Sanuka, não terá sido o GPS que aumentou o terreno do Estado? Não terá
sido o kaputu que se enganou nas contas da nossa geografia antiga? Não terá
sido fruto das dragagens no mar? Olha que temos portos e avenidas costeiras em
construção... – Gaspar, entendido em assuntos de GPS, acordou do sonho e
procurou entender melhor o assunto dos quilómetros de avanço.
-
Deixa, vizinho Gaspar, - ripostou Fafuxi - a população passou de sete para
vinte e quatro, querias que o terreno encolhesse?
Chamada
ao telefone, pelas colegas da escola, Sanuka se desfez dos vizinhos e foi fazer
a composição solicitada pelo Professor de cartografia.
«Camões
que em terra de “cawoyos” é rei escreveu “Os Lusíadas”, poesia épica ou epopeia,
em que narra factos notáveis, grandiosos de um povo. A literatura costuma
apresentar os factos, geralmente, atribuídos a um herói. Luis de Camões,
atribui a epopeia dos Lusíadas ao povo português, representado por Vasco da
Gama, o descobridor das Índias Orientais.
Enquanto
povo heróico e generoso, os angolanos têm muitas epopeias. Uma delas, e
novíssima, tem a ver com a conquista/resgate/recontagem/reconfirmação(?) da
extensão do nosso território nacional, onde estamos a fundar a “Pátria Nostra”.
Os dados, ainda fresquinhos, do resultado do censo geral da população e
habitação de 16 de Maio de 2014, apontam que a extensão de Angola passou dos
então conhecidos 1.246.700Km2 para os nada maus 1.252.145 km2, (pág. 07 do
Relatório do censo) mais 5445Km2.
Estranho
é que a minha festa continua a solo como se 5.445Km2 fossem nada. Já imaginou
um terreno desses para uma auto-construção dirigida? Dava até por ter bois,
cabritos, galinhas, gansos, patos, e exploração mineral autorizada caso
houvesse recursos no seu subsolo. Os vizinhos Gaspar e Kafuxi deixariam de
trocar ameaças de morte e praguejamento à família e descendentes.
E
continuo a festejar sozinho o aumento da nossa “geografia” ou a confirmação,
via GPS, distinta do metro-a-metro da contagem lus-e-tana do antigamente,
porque nos falta gente com olhos lince para nos explicar onde e como se
conseguiu tamanha proeza.
Senhor,
professor, atendendo ao facto de a extensão do nosso país estar figurada em
relatórios e documentos internacionais e ser objecto de estudo das nossas
crianças desde a 4ª classe, qualquer alteração desses números devia ser bem
explicada e documentada ,já que os novos dados sujeitarão as instituições de
ensino e afins a mudarem os manuais.
E,
enquanto festejo, vou também colocando perguntas a mim mesma?
-
Como foi mesmo que conseguimos os 5445 quilómetros quadrados?
-
Foi devido a dragagem do mar? Temos exemplos claros na baia de Luanda e noutros
sítios em que se projectam portos de águas profundas.
-
Terá sido por kasumbula a um vizinho distraído ou que se tinha dado de “viju”
quando nós engatinhávamos ainda na tomada das chaves da nossa Angola?
-
Terão sido os Tugas que nas pelejas com os Franceses, Belgas, Alemães e
Ingleses aceitaram um número que lhes era desproporcional?
Pronto.
O angolano é “viju” e, doravante, será assim. Se o meu país cresce, e ainda bem
que cresceu em terreno e população (essa duplicou a projecção mais pessimista
que havia dos 12 milhões), sempre que endireitar o muro do quintal dou uns
“kacentímetros” ao lado do vizinho “kimbonzado”, como fez o vizinho Kafuxi com
o terreno do vizinho Gaspar que está quase a lhe “gargantar”.
Como
o censo será de dez em dez anos ou distâncias ainda maiores, as contas serão
feitas pelos nossos filhos».
Sanuka
terminou a redacção e leu-a em voz alta para colocar as pausas correctas. Lá
fora Gaspar e Kafuxi que foram pedir copia da página sete do relatório
preliminar, ouviram a composição e não perderam terreno, brindando-a com uma
estrondosa salva de palmas.
ANGOLA, 20. 10.2014
Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense
Texto publicado pelo Semanário Angolense a 22.11.2014
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