Debaixo dum sol
abrasador, 12 horas dum verão equatorial, Mariano e André digladiavam-se com
duros palavrões inauditos na aldeia de Kasanji. O terreiro, local para os
encontros da aldeia, estava cheio de homens adultos, mulheres que reclamavam “mais
pudor” por parte dos contendores e crianças, algumas tapando os ouvidos para
que aquelas palavras carregadas de lixo verbal não atingissem seus cérebros,
afectando negativamente a ainda compacta educação que haviam recebido.
- A árvore é minha. Eu é que subo.
- Não pode ser. Cheguei primeiro. Eu é que a ocupei primeiro.
André e Mariano eram
enviados políticos saídos da pequena cidade, sede do município, para missões de
"caça ao voto" na região que abrangia 20 outras aldeias, até então
ainda virgens do ponto de vista politico-doutrinário. Nem os da situação nem os
da oposição tinham explorado aquele território que vivia a sua paz com a
naturalidade e a pureza dos tempos em que não se apelava ao viva nem ao abaixo.
Em Kasanji, apenas o soba fazia a sua política da administração comunitária e
sempre servindo-se da democracia participativa.
- Meus senhores, ponto
de ordem. - Interrompeu ngana Muryangu, o soba, recém-chegado de uma diligência
fora da aldeia. - O que é que se passa aqui, nas minhas barbas, sem o meu
conhecimento. Será que já me golpearam e o povo me escondeu o sucedido?
- Nada, ngana soba. São
esses manos que vieram do município que estão quase a se “porradar”. - Explicou
a secretária da aldeia que acompanhara o "faço não faz e meto não
mete" entre Mariano e André.
- Ei, meus senhores,
por favor. Parem ainda de se "pocalizar" e venham cá. Entrem e vamos
saber o quê que se passa. A minha aldeia é de paz e aqui tudo se resolve
debaixo da árvore, à sombra, e não aos gritos sob o sol ardente. - Convidou ngana
Muryangu.
Mariano e André
marcaram, em simultâneo, três passos à frente, disputando a estreita porta da
"zemba" do soba.
- Eu é que entro
primeiro. - Atirou Mariano que era do Partido.
- Isso não pode ser,
senhor Mariano. Eu chego sempre primeiro e o senhor quer tomar a dianteira? -
Ripostou André que procurava, a custo, introduzir o seu pesado corpo na
"libata" do régulo. Este, por sua vez, endireitava os assentos para
os contendores encalhados ainda na portinhola.
- Por favor, podem
entrar. - Chamou Kaxinda, a secretária, que tinha já a "wala de muxiri"
e dois copos na bandeja.
André fez força e
entrou, a contra gosto do seu oponente que tentou ainda aplicar-lhe uma “bassula”
mas sem sucesso, pois os aldeões estavam de olhos neles.
- Pois é, manos, bom
dia e bom assento. - Saudou o régulo.
- Obrigado paizinho. -
Responderam em coro, numa harmonia que contrastava com os minutos derradeiros.
- Manos, bebam ainda um
pouco de garapa antes de se explicarem. Aqui faz muito sol e a pessoa com sede
até palavra não sai bem da boca. - Kaxinda serviu a bebida, uma espécie de
sumo, feito a base de farinha de milho e adocicado com a seiva de uma raiz, o
dito "muxiri".
Enquanto os homens
aliviavam as gargantas ressequidas, ngana Muryangu manipulava as cinco
"pedrinhas da sabedoria", amuletos herdados dos seus ancestrais a
quem sempre evocava antes da resolução de qualquer querela na comunidade.
- Pronto, filhos. Bom
assento, outra vez. - Voltou a saudar o soba, ao que Mariano e André, agora
mais pacificados, quase irmanados, responderam com curta rajada de palmas.
- Filhos, vamos então
saber o que se meteu no meio dos irmãos. Kaxinda, escreve no livro o que eles
disserem para depois transmitir ao povo. - Ordenou a autoridade tradicional da
aldeia.
A secretária, diligente
como sempre, dirigiu-se à escrevaninha e começou a acta sem mais
questionamentos. Era já “pão de cada dia” para ela, embora tivesse apenas a
quarta classe do tempo de Agostinho Neto.
- Nosso pai, peço desculpas
pelo atrevimento. Sou do partido e vim aqui para falar ao povo sobre os
esforços da nossa formação que quer saber o que falta ao povo e tentar procurar
resolver os problemas. Mas quando queria colocar as nossas três bandeiras na
árvore, o André disse que não podia ser porque ele chegou primeiro e também
tinha três bandeiras da formação dele. - Explicou Mariano.
O soba apenas abanou a
cabeça, dirigindo o olhar para Kaxinda que, seguindo a velocidade do discurso
de Mariano, alimentava manualmente a acta.
- Aqui, o filho, pode
também se explicar. - Ngana Muryangu passou a palavra a André que rangia os
dentes de tanta vontade de falar.
- Sim pai. Obrigado
pela palavra. Conforme o pai ouviu, aqui o caso é só mesmo desentendimento mas
acho que está já a passar, não é isso irmão angolano? Eu cheguei às dez horas.
Vim aqui mesmo e não encontrei o pai. “Me” disseram que saiu um “kabocado”. Então,
falei com a mana Kaxinda que estava prestes a abordar o povo se concordava ou
não que eu deixasse nesta árvore, ao lado da escola, umas bandeiras da nossa
formação. O irmão aqui chegou às 11 horas e quando me viu a me preparar para
colocar as bandeiras disse que não pode ser porque ele já tinha ocupado a
árvore. Foi assim que os nervos se descontrolaram e começamos a "se"
desrespeitar. - Explicou-se André representante do Desunido.
O soba voltou a menear
a cabeça e, novamente, enviou o olhar à secretária que "actava" os
pronunciamentos.
- Ok, filhos. Já
ouvimos e registamos. Agora que estamos mais tranquilos, o que vocês fizeram em
frente dos jovens e das crianças, acham mesmo que está bem? - Atirou o régulo,
procurando uma autocritica dos até então desavindos que, se ficou a saber mais
tarde, até eram parentes próximos.
Mariano e André que
eram conhecedores dos costumes da região colocaram-se em pé, marcharam em
direcção ao soba, ajoelharam-se e se abraçaram de seguida.
Ngana Muryangu
reconheceu o arrependimento dos dois e prosseguiu a inquirição.
- Mostrem ainda as
bandeiras. Se forem aquelas que juntam o povo podemos coloca-las todas na mesma
árvore.
André apressou-se na
entrega. Mariano fê-lo também. Ngana Muryangu passou-as à secretária para as
conferir.
- São partidárias,
papá. - Disse Kaxinda. - Cada lado tem uma do partido, uma da juventude e outra
das mamãs. – Concluiu a secretária.
- Meus filhos, Mariano
e André, já viram o mastro da escola? Parece que a bandeira que estava lá já
não está. Rasgou-se há já muito tempo com o vento e nunca foi substituída.
Vocês podem voltar à vila pegar cada três unidades daquela bandeira que une o
bairro e aumenta o patriotismo das crianças? Quem chegar primeiro com a
bandeira da Republica e a colocar no mastro da escola pode ficar com parte da
árvore. - Ditou o soba pedagógico.
Mariano e André
arrumaram as suas “imbambas” e regressaram à procedência. Ainda não anunciaram
à Kaxinda, a quem deixaram os seus contactos telefónicos, quando voltam a
Kasanji com a bandeira da República solicitada pelo soba.
Obs: Publicado pelo Semanário Angolense 11.04.2015
Obs: Publicado pelo Semanário Angolense 11.04.2015
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