Desta
vez, transportado pelo António (nome do Tucson marron que me transporta),
desafiei a distância camuflado na cauda duma coluna com batedores de Luanda ao
Dondo. Os buracos evoluíram para crateras em quase toda extensão do troço
Zenda-Dondo, assistindo-se um tráfego lento e perigoso. Mas na carona da coluna
que levou um dos notáveis do governo central a inaugurar um centro de produção
de larvas e tilápia em “Massa Ngana” senti pouco o incómodo dos colegas
automobilistas que, fugindo dos buracos, volta e meia aparecem na faixa
contrária, repartindo os do sentido ascendente um só via da estrada cujos
sentidos estão separados por uma linha de betão armado. A impedir que a coluna
do chefe encontrasse dificuldades estavam dezenas ou mesmo centenas de polícias,
o que não deixava de criar estranheza a todos os que trafegavam entre Luanda e
Dondo num dia de Março.
Enquanto
os governantes cuidavam, em Massangano, de assuntos ligados à produção em larga
escala de choupas para amanhã, no Dondo, a conversa girava em torno daquela
coluna que se supunha ser do comandante geral da polícia nacional, dada a
prontidão com que os agentes se fizeram à estrada, e em torno do rio que gera
vida e felicidade para muitos.
Numa
barraca à marginal da “velha cidade de Dondo, local em que Paulo Dias de Novais
não mais pôde navegar, fundando ali mesmo uma cidade, Chiquito que era homem da estrada,
conhecedor de quase todas as províncias de Angola, começou por admirar o rio
Kwanza, engrandecido ao longo da caminhada e que se entregava ao deleite de centenas
de convivas.
-
Epá, estão a ver o rio, né? Vocês deviam ir ao Citembu, onde nasce. Lá o Kwanza
é apenas um fiozinho. É como um bebé que nem sabe ainda correr. É lento e
desajeitado. Sem personalidade. – Contou Chiquito, acompanhado atentamente
pelos companheiros de ocasião na barraca da dona Pascoalina.
-
É verdade. - Respondeu Rafael, nascido em Kalandula. – Fiz a tropa no Bié e
conheço a nascente. Às vezes, os rios se parecem a nós homens. Mais robustos e
trungungueiros enquanto jovens e mais calmos já a “vovoitar”. Quem vê o Kwanza
no seu médio curso bem imagina na meiguice próximo da nascente e dessa
mansidão, a caminho da foz. – Disse mostrando traços filosóficos o antigo
estudante da missão de Késwa.
E
o Kwanza estendia-se tranquilo, sem o rugir dos rápidos energéticos de Kapanda,
Lawka ou Kambambi. Entregava-se aos olhos contemplativos de visitantes e
apreciadores de kakusu na marginal do Dondo ou ainda às mãos límpidas dos
lavadores de roupa nas suas margens.
O
Kwanza é chamariz até para a idosa viet-kong que grita “amicó, amicó, sado,
sado. Compla balato, amicó”. E foi aqui que encontrei Pierre. Apenas Pierre,
porque disse não interessar outro nome ou sobrenome.
-
Eu me chamo Pierre. - Disse o lavadeiro que nasceu em Kibokolu com vivência no
Congo Brazzaville onde diz ter aprendido a fazer qualquer coisa que dê dinheiro
limpo.
E reforça
que o seu dinheiro é limpo como as águas do Kwanza a que junta força e sabão
para atender aos notáveis da cidade.
-
Comecei a lava roupa depois de ver um negócio igual no programa Jornal África,
da TPA. Na altura fazia biscates de malavu (maruvo) mas rendia pouco. – Contou
Pierre. – Aqui, o dinheiro só depende da força. Temos banheiras (bacias) de
cada dois mil, de mil e setecentos e cinquenta cada. Os clientes são mesmo
pessoas daqui da cidade ou pessoas que estão de passagem. Estes, enquanto comem
e bebem para repousar, entregam as suas roupas e nós cuidamos.- Diz Pierre,
orgulhoso do que faz. E nas águas meio turbinadas pela chuva que cai quase
todos os dias Pierre gana a companhia de senhoras e adolescentes. Uns cuidando
de roupas de casa e outros levando moedas ao mealheiro.
Na
barraca da dona Pascoalina, quatro passos da lavandaria colectiva, Chiquito,
Rafael e Pascoalina levam conversa desgovernada a porto nenhum. Falam sobre o
rio e seus mitos, sobre os lavadeiros, sobre os visitantes ébrios que se afogam
no Kwanza, dando comida aos kakusus que alimentam outros homens e sobre a vida
nas estradas.
- Essa é a minha última viagem. Da maneira
como estão as estradas, os custos com molas e pneus a rebentar aumentaram e os
acidentes também. – Atirou Chiquito.
-
E porque não escolhes uma rota que tenha poucos buracos?- Tentou acudir a dona
da barraca, enquanto apetrechava a mesa dos convivas com batata choupas, banana
pão, feijão, farinha museke e salada.
-
Já estive na rota de Mbanz-a-Kongu, os buracos me fizeram desistir. Aqui, na
Estrada Luanda-Huambo tive ganhos nos dois últimos anos, mas agora também
piorou. Vou encostar a carrinha para não arriscar nem a minha vida nem a vida
da viatura e procurar emprego de motorista na cidade.- Justificou-se Chiquito
que aguardava por Rafael aflito com a deposição de resíduos fisiológicos.
Estava a uns vinte minutos a bater de porta em porta para encontrar uma latrina
para se desanuviar ou, na pior das hipóteses, um esconderijo.
Perante
a aflição, Chiquito tentou, junto de Pascoalina encontrar um caminho.
-
Mamã grande, assim, se a pessoa depois de comer, ou mesmo antes, quiser
esvaziar um pouco a barriga vai aonde? – Atirou em provocação.
-
Meu mano, - responde Pascoalina, essa é a maka que estamos come ela.
É
mesmo uma grande Katuta. Depois de nos darem esse largo para montar as barracas
nos prometeram casas de banho públicas, mas até hoje só tem ainda aí atrás (e
mostrava ela uma latrinas escondidas atrás da tribuna que estavam fechadas).
-
Kota - prosseguiu Chiquito - isso é azar grande. Já viu comer sem lavar as mãos
com esse vosso Kwanza que dizem estar sempre furioso com os visitantes? Já viu
o quê partilhar o mesmo prato com a mosca que acabou de visitar o escape do
Rafael? Têm de fazer algo, mamã, senão as pessoas deixam de parar na marginal.
– Disse provocante Chiquito.
-
É verdade Chiquito. Se esta é a tua última viagem por causa da estrada
esburacada, também te digo que esta é a última vez que venho cá comer porque o
que vi naqueles arbustos (apontava para um sítio não muito distante do local
que se estavam postas as mesas e os manjares) não é coisa boa.
Pascoalina
apenas abanou a cabeça, em jeito de aprovação, mas aí era o se ganha-pão. Não
compactuando com a imundície arrumou as imabambas e dirigiu-se à administração
municipal para apresentar uma reclamação que no fundo era a de todos os
frequentadores da marginal do Dondo.
_
Camarada administrador, se queremos turismo tem de ser com higiene, senão os
turistas deixam de vir, as famílias padecem de fome e a cidade fica sem
movimento.
Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 02 de Maio de 2015.
Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 02 de Maio de 2015.
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