- Papá, papá!
O rapaz, cinco anos, mochila
vermelha às costas, calças enlameadas nos joelhos, irrompeu, sem licença, no
aposento privado dos progenitores que procuravam a lua num dia combinado para
ambos atrasarem aos locais de serviço e pagar o dízimo a quem de direito. A
correria da capital faz, ultimamente com que algumas pessoas usem os aposentos
apenas para descontar no sono.
- Há pessoas que nascem já com
quarta classe? – Questionou Arcádio, aparentemente aborrecido e, a soltar vapor
por todos os poros.
Nza Kutimbe ficou ainda a meditar,
antes de fornecer uma resposta que não deixasse ainda mais confuso o filho
“kasula”.
- Papá, e por que eu não nasci
com quarta classe? Não quero mais estudar a pré-kabunga-come-pão-com-salada! –
Sentenciou já com um dos pés fora do quarto.
- Arcádio, vem cá, filho. Vamos
conversar. Tudo tem uma explicação. – Nza Kutimbe tinha já ideias, ainda
retalhos mas davam para acalmar o puto que estava “fox” com aquela conversa dos
contínuos da Escola Cinco que, no dizer deles, tinham “nascido já com a quarta
classe” e, ainda por cima, do “tempo colonial”.
- Sim filho, há pessoas que dizem
que nasceram com a quarta classe mas isso tem uma explicação.
- Quer dizer, papá, nasceram já a
ler a fazer contas? E porquê que não me ensinaram já a fazer a-e-i-o-u e
ba-be-bi-bo-bu na barriga da mamã? – Voltou a disparar o infante.
Carlota estava cansada. Também
aborrecida, embora não o demonstrasse. Terça-feira era seu “dia da mãe”, o dia
de dispensa mensal para levar os filhos à consulta médica e vacinação. Era
também o dia em que Nza Kutimbe tinha de “fazer a manutenção” e partir mais
tarde para o serviço. A “borla” dada pelo professor, devido à chuva daquela
madrugada, tinha estragado tudo. O “kasula” chegou num momento inesperado e
tudo tinha sido abortado. Consertava as extensões de cabelo e teria de partir,
assim mesmo para a clínica.
Perante as intermináveis
perguntas do filho “kasula” Nza Kutimbe teve de buscar por outra estratégia:
- Arcádio, ouve bem o que o papá
te vai dizer. Antigamente, quando o papá ainda era criança, não havia muitas
escolas públicas, essas do Estado. Também não havia muitos colégios privados,
nem os africanos, os negros, tinham dinheiro suficiente para levar os filhos às
escolas privadas. Então, as pessoas do bairro que já sabiam ler e escrever
ensinavam os filhos daqueles que não tinham dinheiro suficiente para matricular
os filhos nas escolas públicas. Quando chegassem à quarta classe iam à escola
oficial apenas fazer o exame final. Como iam à escola só para fazer o exame final
da quarta classe, é por isso que ficaram conhecidos como pessoas que nasceram
com a quarta. Havia casas onde se davam essas aulas e eram chamadas por
“Explicação”. Aqui ao lado no “Ngongo”, no bairro Kaputu havia a explicação do
Senhor António, ainda nos anos noventa restavam esses exemplos. No antigo
Comité Njinga, alí, naquela curva da rua que vai à tua escola, havia uma
“explicação” muito concorrida e que já fez outros alunos da quarta classe do
tempo actual.
- E se o papá e a mamã sabem ler
e fazer e fazer contas por que não me ensinam aqui em casa para eu ir à escola
apenas fazer o tal exame da quarta classe?
- Filho, hoje há escola para
todos e algum dinheiro para você estudar na escola do povo ou no colégio. Em
casa vamos apenas acrescentar aquilo em que os professores tenham dificuldade
ou mostrar o método mais simples para conhecer as coisas.
- Papá eu não quero mais ir à
escola. Quero também ter a quarta classe do tempo colonial!
A pergunta inocente do rapaz fez
Carlota intervir pela primeira vez naquela conversa de pai e filho,
frente-a-frente.
- Arcádio, já não temos colonos.
Tempo colonial é o tempo dos teus avós quando os brancos é quem mandavam e os
pretos só cumpriam sem refilar.
- E hoje quando vos mandam “nos”
vossos chefes que são negros, a mamã refila? – Atirou Arcádio que já tinha
ouvido a mãe a reclamar variadíssimas vezes da forma menos urbana e cordata dos
seus superiores.
- Nza, termina a conversa com o
Arcádio que já tem o lanche a esfriar… - Despachou-se do rapaz.
- Papá, explica-me então o tempo
colonial e a quarta classe deles.
- Pois filho, no tempo em que
Angola era colónia quem mandavam, o presidente, os ministros, os directores,
eram todos portugueses que tinham saído de longe para nos dominarem ou mandarem
na nossa terra. As pessoas que fizeram a quarta classe naquele tempo gabam-se
de ter estudado bem. Sabiam mais coisas do que sabem hoje os nossos alunos. Há
mesmo doutores que sabem menos, sobretudo fazer as contas e resolver os
problemas matemáticos.
- Papá, a matemática é boa?
- Sim filho. É excelente.
- E porque não começa com “boa”
temática? Como é que uma coisa que já começa com “má” pode ser boa? O papá nem
precisa de me explicar essa parte. Eu já sei.
Sabes o quê, Arcádio? Sabes fazer
contas? Os teus manos fazem contas?
- Sim papá. Eles usam o telefone
e o computador.
- E a cabeça serve para quê,
filho?
- Para se lembrar do computador e
do telefone onde já têm tudo.
Nza Kutimbe sentiu que estava a
perder batalhas perante o filho que já se tinha apossado do seu ipad. Mas
preferiu rematar.
- Nenhuma máquina é mais
inteligente que o ser humano, filho. Você pode se encontrar numa situação em
que não tenha de fazer recurso a computador ou telefone. Há contas que temos de
fazer de forma mental. Pensar e dar resposta. O papá quando conduz faz contas
das distâncias para travar, para ultrapassar, do combustível que tem para
chegar à lavra da avó, etc. Se a avó der uma caixa com vinte abacates e tiver
de distribui-los pelas tuas três tias, o papá não precisa de máquina para achar
quantos cada uma das titis receberá.
- Ai é papá? Então ensina-me
matemática para ter também a quarta classe do tempo colonial!
E saíram abraçados para o
pequeno-almoço que já estava morno.
Já fim da
tarde, ao sair do serviço, Nza Kutimbe comprou um quadro branco, canetas de
feltro e um apagador. As manhãs de sábado passaram a ser “sagradas”.
Tornaram-se dias de exercitação. Com a ajuda de alguns amigos mais velhos, Nza
recuperou alguns livros já carcomidos pelo tempo. Manual de aritmética, da
quarta classe do tempo colonial, e livros de leitura e exercícios gramaticais.
Aos poucos, as novelas foram cedendo espaço à leitura e redacção e apenas as
principais novelas eram visionadas quer pela mãe quer pelos filhos que
preferiam as da disney. A má (temática) passou para “boa” temática de conversas
diárias com os primos e os colegas de Arcádio e irmãos mais velhos. Até “noves
fora” Arcádio já calcula de cor. Aconteceu mesmo.
Texto publicado pelo Semanário Angolense, em 2015.
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