- Mana me dá só água, por favor.
- O moço suava por todos os poros.
- Estás a “coloriar” assim
porquê? Não tem água.- Mana, me dá só água, você “és” minha professora no Mwa Cisenge. – Replicou o jovem pedinte, tentando buscar compaixão.
- Mas estás assim com tantos galos (hematomas) na cabeça porquê? - Voltou a questionar a dona de casa, por sinal, ex-professora do jovem.
- Estamos aqui, no soba, num “makoji” que estão a negar “na” família do indivíduo que lhe apanhamos. Já se experimentamos lá um bocado (lutamos um pouco).
A irmã da professora ainda tentou
acudir o diálogo entre o homem acossado pelo fogo da peleja e a ex-professora
que não queria ver sua casa inundada de gente atrás do líquido que mata a sede.
- Mana, “lhe dá” só uma caneca.
Isso é pecado. – Acudiu, dirigindo-se para a cozinha.
Assisti a luta que decorreu a
metros da casa onde me encontrava a petiscar funje com kizaka e kabwenha que
para os tucokwe é xima nyi ixi, nyi matamba.
As meninas presentes na festa de
aniversário duma lactente tanto dançavam ao “do cotovelo” como se esmeravam na
cyanda que é ritmo e dança local, aprimorando os toques e contornos eróticos
daquela balada. As que melhor executavam a dança eram agraciadas com elogios da
assistência ou mesmo alguma pecúnia. A maralha toda vibrava ao som da música
“Moyo” de Xavitu mwana Kakolu.
Perante o sofrimento e as
súplicas do jovem, ferido por fora e queimado por dentro, que precisava de
enviar algumas gotas de água boca adentro, decidi dar-lhe a minha garrafa que
fica de reserva que estava no carro. A água devia ter a temperatura ambiental,
a rondar os 33 graus célsius, mas ele tragou-a num piscar de olho.
- Obrigado, meu mano,
ngunasakwila cinji. - Replicou na língua que me pareceu dominar melhor.
Articulava os fonemas e as construções frásicas como um bagre nadando em águas
tropicais turbinadas pela chuva.
O bairro é Terra Nova. O
município Saurimo. A numeração indicava: AMS-TN-ZA-14… O falar alto de gente
exaltada despertava quem por lá passasse. Eram vozes e músculos a gritarem
altos. Enquanto na rua a razão da força imperava entre os partidários do
acusado de colheita em ceara alheia e dos acusadores, ao que se dizia, sem
provas materiais, lá dentro, na cyota do soba, era a força da razão,
fundamentada com adágios seculares da terra, quem mais vociferava.
Apesar de bairro periférico da
capital lunda-sulina, muitos habitantes preferem ainda recorrer à autoridade
tradicional e ao direito consuetudinário para dirimir as suas querelas. A
polícia e os órgãos vocacionados à administração da justiça andam a leste do
que se passa no interior do(s) bairro(s), ou melhor, ninguém se lembra deles
quando o assunto não atinge proporções irresolúveis no foro tradicional.
Primeiro os músculos, depois o
soba e a fixação de indemnizações aos ofendidos. É assim no interior dos
bairros e das aldeias nordestinas. Episódios sobre makoji (adultério), ofensas
e danos morais e ou materiais, acusações de práticas feiticistas, etc., fazem
parte do menu das queixas que chegam ao soba.
Às vezes, os músculos tentam resolver (sem o sucesso esperado) parte do problema ou medir a pulsação familiar. “Assim já, se você lhe dá uma boa surra, pode dizer no soba
para ficar já assim”, contou-me o amigo que suplicava por uma gota de água que
nem “Lázaro e o Rico”. É que quem não frequenta aqueles lugares, acha que todos
têm razão. Vociferam, ensaiam poses para peleja. Mangas normalmente arregaçadas
e calças com os joelhos enlameados por causa das “basulas”.
Lá dentro, porém, há ordem. A
autoridade e o juízo do soba são incontestáveis. Todos concordam com a eficácia
da justiça e justeza da lei e observam silêncio, entrecortado apenas pelo
desfilar de adágios não muito acessíveis ao entendimento dum jornalista
"mukwakwiza". O soba dita a sentença e todos batem palmas, os da parte do
queixoso e os da parte do queixado. Os que estão fora deixam de mandar vozes ao
vento e ficam expectantes. Espreitam pela porta de gradeamento mas nada
vislumbram. Não tarda, queixado e queixoso saem abraçados, como se de amigos de
longa data se tratassem. O soba recomendou paz e cumprimento da sentença para
que o mal não se reproduza entre a família. - Ides em paz e não voltem a lutar! – Terá ordenado a autoridade tradicional.
Quanto a mim, que precisava de matar
toda minha a curiosidade e ouvir as partes, recebi apenas um consolo do meu
primeiro interlocutor:
- Mano, obrigado pela água, mas o
soba disse que você não pode entrar para falar com ele. Tinha que ser família
das pessoas que se deram “mulambeno”!
O queixado promete cumprir a
indemnização para o makoji que entretanto jura não ter cometido. Mas cumpre.
Makoji não é só quando se chaga a vias de facto. Ter a intenção de passar o
outro pelas costelas dá, em termos de interpretação do direito consuetudinário,
no mesmo que adultério.
- É “catoqueiro”? Um milhão de
kwanzas! - Dizem que para esses o valor baixou, dado que trabalhar numa empresa
de “kamanga” já não rende tanto quando rendia há dez anos.
- É bancário? Um milhão e meio. -
Ninguém explica porquê, mas cogita-se que seja pela facilidade com que alguns
se fazem aos empréstimos ou juntam os cêntimos alheios.
Mas o “lavrador” era camponês e
ficou-se pelo cabrito, galinhas e kibutos de bombô. A garina permaneceu com o
esposo que viu sua “honra lavada”?!
Nota: Texto publicado no Semanário Angolense, edição de 07.03.2015.
Nota: Texto publicado no Semanário Angolense, edição de 07.03.2015.
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