Já tinha ouvido falar e visto nos
seus tempos de criança o “peixe catana” ou “cikolamwenho”. Tão duro, tão duro
que precisava de uma afiadíssima catana ou machado para o desfazer em bocados,
nem sempre ao gosto do retalhista/cozinheiro. Era o peixe que, em Kalulu, nos
anos oitenta do século XX, era vendido nas empresas cafeícolas Libolo I, II e Libolo
III. Tempos depois, com a fome que se seguiu aos dias do conflito pós-eleitoral
de 1992, surgiram dois tipos de feijão. Um era o “espera cunhado” e outro o ”afugenta
sogra”. O primeiro era de fácil cozedura, não demorando mais do que quarenta e cinco
minutos. O segundo era de uma dureza nunca vista e que, naqueles tempos de fome
e penúria, muito servia a algumas noras mal-educadas para afugentar as sogras.
- Mamã almoço hoje é feijão. Só
que está já há duas horas e meia e não está a cozer. O gás, essa é segunda
botija, e nada! - Diziam.
Quando pensava ter já ouvido e
assistido a muita coisa, Kitomangombe foi surpreendido com o feijão “afugenta
cliente”. Isso mesmo, “Afugenta cliente”. Não é beff.
Com antecipação de 24 horas e
reconfirmação de 4 horas, encomendou o almoço. Comida em instância turística
para o “magnata”, a digníssima e dois herdeiros do “trono sobático”. Gentil,
como sempre, a gestora, parecia encaminhar o assunto em boa praia. Trocaram
mensagens com as devidas cordialidades e formalidades. Drº Kitomangombe por lá,
seguido de um agradecimento, e Drª Beltrana, por cá, seguido igualmente de agradecimento
da praxe.
- Papá, onde é hoje o almoço? -
Perguntou Renato já acossado pela fome, ainda a meio do culto Metodista.
- Filho, ainda é cedo. Respondeu-lhe
com um vinco no rosto, dada a sua forma desconcertada de estar perante um local
de adoração.
-Mamã, o papá não está a falar
onde vamos comer. – Resmungou o rapaz, em busca de auxílio.
- Eu já disse que vamos almoçar
num lugar turístico. Por agora devem prestar atenção ao culto e depois partimos
para o almoço. – Emendou Kitomangombe, olhando para o filho no colo da mãe.
- Papá! Vamos comer “papuço”? -
Voltou a questionar, já mais alegre pela resposta recebida do progenitor.
- Sim. Vamos comer kakusu, se te
portares bem.
O sol corria para o meio centro.
As chapas que cobriam o local de cultos pareciam gritar. Estavam sendo
esticadas pela temperatura que atingia o seu ponto mais alto. No estômago, as
lombrigas brigavam descontentes e tudo fazia adivinhar outras perguntas sobre o
local e a hora do almoço.
- Mor, já confirmaste o almoço? -
Desta vez foi a esposa preocupada com a fome dos filhos (as mulheres têm essa
“mania” de pressentir a fome dos filhos) ou mesmo reclamando o seu quinhão.
- Sim, já enviei mensagem a
confirmar a nossa ida ao local e obtive a resposta, garantindo que tudo estaria
a ser preparado e pronto ao meio dia e trinta minutos.
Não tardou, o coro principal da
igreja entoou o hino derradeiro: “teu culto finda aqui. Despede-nos Senhor.
Dirija-nos até ao fim. Por teu excelso amor”! – Entoaram sorridentes os jovens
de becas esverdeadas.
Fez-se fila para saudar o pastor,
o liturgista e os coristas perfilados à saída do templo físico. Renato, o
filho, corria de lado a outro. Se tinha apossado da igreja, depois de duas
horas e meia de “prisão” no seu imaginário traquina. Os apressados dirigiram-se
aos veículos e motociclos e foram “rezar noutras freguesias”. Kitomangombe, a
mulher e os dois filhos seguiram-lhes o exemplo e procuraram por um ATM que
encontraram sem muita demora. – - Tem dinheiro! – Disse festivo aos que se
encontravam na viatura encostada à beira da estrada.
Fizeram-se a caminho do Centro Turístico
Kulikwasa que distava cerca de treze quilómetros da urbe.
- Papá olha praia! – Gritaram as
crianças.
- Mamã, não trouxeste o meu
fato-de-banho.- Reclamou a menina que obteve a pronta resposta da progenitora.
- Teu papá não nos avisou que viríamos
aqui. Fica para a próxima filha. Também o clima está a ameaçar chuva. – Rematou
para consolar a filha que trançava a boneca.
- Não é praia, filhos. É lagoa
natural. Aí não se nada. É perigoso.- Emendou Kitomangombe que, até aí, se
limitara a ouvir a conversa entre a mãe e os filhos.
- Papá, e só vamos comer mais
nada?- Insistiu a menina.
- Sim, Mara. Vamos comer e ir
descansar em casa. Amanhã é dia de trabalho.
Estacionada a viatura, a família
Kitomangombe passou pela cozinha que estava entregue às moscas.
- Nem uma brasa acesa. - Observou
o patriarca que começou a desconfiar das palavras amorosas da gestora que lhe garantira,
de pés quase juntos, “encontrarás tudo pronto”.
-Será que já está mesmo pronto e
só a espera que chegássemos?- Indagou desat vez em voz alta á mulher, por
instantes, se tinha distraído com a exuberância da lagoa.
- Boa tarde, jovens, podem
mostrar-me o “gerente”?- Indagou Kitomangombe.
- Os três moços, que jogavam à
dama, entreolharam-se e apontaram-lhe o caminho da sala onde estaria o
responsável.
- Boa tarde, jovem. É o gerente?
- Sim. Sou eu mesmo. – Respondeu meio
tímido o jovem que aparentava 22 anos e mal trajado para um serviço de atendimento
a clientes.
- A Drª Beltrana falou-lhe sobre quatro
pessoas que viriam cá almoçar? O prato é kakusu – Lembrou-lhe.
- Sim, boa tarde, mano. Ela
falou. Podem dirigir-se à mesa. Querem ficar na sala ou junto à lagoa? Também
há sombra e cadeiras.- Aconselhou o atendedor.
Kitomangombe, aconselhado pela
filha, escolheu o espaço aberto, com uma visão mais ampla para a nascente
natural barrada pela acção humana e que resulta numa majestosa lagoa com margem
betonada num dos lados. Os filhos andavam de um lado ao outro como felino que
demarca o seu espaço vital.
- Papá! Quero andar de canoa. – Interrompeu
Renato.
Antes mesmo que se preparasse
para ensaiar a resposta negativa, Renato voltou a disparar: - papá! Quero nadar
nessa piscina bem grande.
As águas estavam proibidas a mergulho
por causa da lama e de uns bichos que se pareciam a alforrecas. E, não tardou a
explicação de Mara, que já sabia ler, ao irmão que via no papá um empecilho à
sua vontade de mergulho.
- Mano, o papá tem razão. Aí está
escrito: “proibido tomar banho nesta lagoa”. É por isso que o papá não nos quer
deixar tomar banho nessa. – Explicou, recebendo aprovação dos pais que se
rejubilavam a cada vez que lesse um aviso ou outdoor e explicasse ao irmão mais
novo.
Sem nado, as atenções voltaram à
comida que demorava. A mulher, já impaciente, estava de pé, pronta a ir tirar
esclarecimentos, quando o “gerente” se apresentou para o que chamou de uma
pequena desculpa.
- Já está tudo pronto. Só falta o
feijão!
- Só falta o feijão? Preferia que
faltasse o kakusu, que pode ser pescado por mim, do que o feijão. Queres que
aguarde aqui três horas a espera do feijão? – Questionou Kitomangimbe, já com
um vinco visível no rosto.
- Não chefe. Já está a ferver,
mas vai levar ainda algum tempo. É só mesmo o feijão que está a faltar.-
Justificou-se, esfarrapado, o rapaz.
- Traz já o que tens e o feijão
vem mais tarde. - Ordenou a Senhora Kitomangombe, algo aborrecida.
Quatro peixes enxutos, bocadinho
de mandioca e batata-doce, um molheco de tomate e cebola picada e nada mais. Os
peixes pareciam ter sido conservados em geleira, depois de grelhados, e
aquecidos. Estavam secos e sem temperatura interior. O resto foram só
reclamações.
O feijão, ainda fervente, serviu
mesmo o seu papel de afugentar os clientes que reclamavam de mesa em mesa.
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