Nasceu num sábado distante na memória,
numa aldeia enfiada na sombra da cordilheira que separa a região plana e
majestosamente servida de florestas entrecortadas por rios serpenteantes e a
outra, a plana e alta, prenhe de fontes d’água e onde a relva faz festa entre
árvores e arbustos preguiçosos. O dia de semana serviu-lhe de nome de baptismo.
Como havia tantos outros Sabalo, acrescentaram-lhe o apelido Soba, dado o facto
de ser filho de soba e passou a ser conhecido por Sabalo-a-Soba (Sabalo, o
filho do soba).
Kambondondo, seu pai, era numa aldeia
ribeirinha, ali nas encostas do Longa, uma das cinco pessoas mais influentes,
de onde despontavam, para além do regedor e soba, o soba o catequista, o
comerciante e o “sô kifiormeiro”. Professor ainda não havia e os que podiam
soletrar uma convocatória do chefe de posto do poder colonial contavam-se entre
dezenas de aldeias aos dedos de uma das mãos.
Kambondondo já tinha contactado o catequista
para alfabetiza-lo a fim de poder descodificar as convocatórias do Soba e
apresentar-se ao posto da data e hora certas ou mesmo se escapulir quando a
convocatória fosse simplesmente para as desprezíveis palmatoadas desferidas
impiedosamente pelos serventes cipaios.
- Nessa terra de ignorantes tenho de fazer da
minha prole a diferença. O Kakonda tem de ir estudar no Posto e ficar
professor. O Ngunza tem de seguir profissão de “karfaiate” e o Sabalo, quando
idade chegar, vai também no posto aprender com os irmãos que estão a subir na
escola. – Confidenciou kambondondo certa vez à mulher Nzumba Kanzenza.
E assim procedeu. Kakonda segui primeiro, já
na casa dos treze anos. O irmão do pai que oferecia força na roça do alemão de
origem judia recebeu-o como filho e com ele ficou até completar a quarta classe
e o curso de professor de posto. Kakonda voltaria à aldeia natal apenas para se
casar e fundar a primeira escola de Kuteka.
Seguiu-se Ngunza. Esse foi para a grande
cidade aprender a juntar e descodificar letras e alfaiataria que se tornara
profissão de eleição no tempo das camisas cintadas e calças boca-de-sino.
Mais dado ao segundo oficio do que ao
primeiro, Ngunza se governou até aos dias da tropa obrigatória instituídos no
pós-revolução. Regressou à aldeia de mãos preenchidas pela mulher, uma jovem
ambaquistas que transbordava beleza, e dois filhos. Ainda foi a tempo de fechar
umas classes e cumprir o sonho do pai “ser professor” também.
Chegou a vez de Sabalo. A idade escolar
coincidiu com os dias da revolução. O horizonte começava a abrir-se. Kuteka
começou a encolher, ante a migração para as grandes cidades que ofereciam
empregos e aprendizagem de profissões. Estava na moda “ir à capital trabalhar
para juntar a cama, a bicicleta, a louça, o rádio e a roupa para os dias de
noivado”. Os primeiros regressados da capital eram donos de estórias e
histórias inauditas e carregadas de curiosidades. Todos os jovens daquele tempo
pretendiam conhecer a capital e lá se “empregarem” em casa de gente da baixa
onde pudesse aprender a ler e escrever com os pioneiros de casa e amealhar uns
tostões para a roupa, o rádio, os talheres, e o vestuário que diferencia na
bwala o morador permanente e o regressado da cidade. Sabalo ainda sem idade
para trabalho, foi substituir o irmão Kakonda na casa do tio Kapitia e lá ficou
até completar a quarta classe. Era já tempo da “ditadura do proletariado” e o
diabólico chefe de posto tinha sido substituído pelo comissário comunal. Os
serventes cipaios, agora em desgraça e alguns a pagar pelos males que
infringiram a seus irmãos de pele, enfrentavam discriminação ou se refugiavam
em áreas longínquas onde o eco de suas acções tenebrosas no tempo doutra
senhora não tinha chegado. Os ce-pe-pe-as eram agora os auxiliares do
comissário na manutenção da ordem e caça aos contra-revolucionários. Os
o-de-pés e be-pe-vês, diferentes dos cipaios, fiscalizavam nas aldeias e
informavam aos ce-pe-pe-as quando não fossem os próprios a cuidar da manutenção
da nova ordem instituída.
Sabalo foi crescendo em paralelo com o poder
do comissário que não era como o chefe de posto que mandava capturar à força da
caçadeira trabalhadores para a construção das rodovias, mas era em quem
repousava a autoridade do Estado. O comissário era um mwata. Pessoa de muito
respeito, na comunidade e que tinha acima dele outros dois comissários, antes
do Ministro: o comissário municipal e o comissário provincial.
- Sabalo, agora que o kaputo já foi na sua
terra, estuda para chegar também na categoria de comissário. Fica na
organização e se entrega no estudo para ajudar os teus irmãos da aldeia. -
Orientou Kambondondo já na curva da vida.
Sabalo completou a quarta na comuna. Foi ao
município e fez a oitava. Os confrontos que se seguiram aos desentendimentos do
Alvor fizeram-no seguir à capital. Antes passou pelo “brigadismo professoral” e
foi destacado na Comandante Dangereux. Seguiu à capital onde para esquivar a
“vida kwemba” se alistou nas ce-pe-pe-as que o enviaram para fora. Quando os ventos
do Lesta derrubaram os muros foi devolvido à terra e cá à profissão o estudo.
Foi subindo. De grau a degrau como a galinha enche o papo grão a grão até
chegar a subcomissário.
Passava uma trintena de anos que o Kuteka não
se lembrava dele. Sabia-se ainda apenas que era homem grande em idade,
corpulência e estudos.
- Eh, o mano Sabalo agora é homem grande.
Pessoas que se vergam quando lhe cumprimentam são chefes do governo na capital.
- Comentavam os mais iluminados de Kuteka.
A sua fama já corria toda a savana e o
planalto. Os mais novos queriam conhecê-lo e os mais velhos revê-lo. Sua ida à
terra do cordão umbilical tardava. Todas as cartas que recebia apontavam a
saudade do seu povo: contemporâneos e conterrâneos que se tinham preparado para
recebê-lo como os súbditos da idade clássica recebiam seus imperadores, mas a
visita de Sabalo tardava. Falhava por falta de tempo. Ora por missões de
serviço que se sobrepunham às suas promessas, ora por razões climatéricas. A
picada que corta aquela serra montanhosa só permite circulação até de um jeep
em tempo seco.
Correram ansiedades e promessas durante cinco
anos, até que mãe de Sabalo adoeceu. A questão era emergencial. Levar a mãe
para um hospital de referência era uma obrigação. Já tinha construído na capital
uma casa para a progenitora, mas ela se recusara redondamente a deixar o seu
kikelé, apetecível peixe do Longa, e suas gentes que a tinham como matriarca da
aldeia.
Sabalo fez-se à estrada. Onde terminou o
asfalto, fez-se à picada. Para trás deixou a comodidade da cidade, os rios
caudalosos em tempo chuvoso, as montanhas cobertas de neve madrugadora, os
zigue-zagues da estrada escorregadia e chegou ao Kuteka. Fez-se festa em casa,
mesmo com a mae enferma. A alegria do povo era tanta enão se pôde proibir a
festa espontânea que assinalava o reencontro com o “homem grande” nascido na
aldeia de Kuteka.
- Mano Sabalo, desculpa, kota Naldo, assim
agora o mano lá no serviço é quê? – Indagou Kaphele, jovem iluminado para os
limites académicos da aldeia.
- Sou Comissário. - Respondeu.
- Comissário? Só comissário, tipo o chefe “papa-galinhas”?
- Sim, sou comissário da polícia nacional.
Mas explica-me ainda isso de “chefe papa-galinhas”.- Solicitou o polícia.
Sentiu-se um calar que levava quase desolação
dos jovens. Sabalo não percebeu e insistiu na pergunta: “vai jovem, explica-me
por favor, também quero aprender convosco”. Toda a volúpia inicial ase tinha
evaporado. “Come galinhas ou papa-galinhas” era o epíteto atribuído ao
comissário comunal, cuja regalia não passava de oferta de cabritos e galinhas
quando visitasse as aldeias. A frase “Sou comissário” levou-os a se lembrarem
das visitas do carente comissário comunal que mais não tinha senão galinhas no
seu quintal.
- Sim
Kaphele, sou comissário da polícia nacional. Um grau que se equipara ao general
de duas estrelas e café no ombro. – Voltou a explicou o para-militar, desta vez
mais elucidativo.
- Ah, assim é que está bem. Afinal, o nosso
mano não é “papa- galinhas”, é general da cê-pê-pê-â. Manda em todo o país e
está acima dos dois comissários da comuna e do município. - Rematou convencido
Kaphele que, de imediato, ordenou mais lenha na fogueira e força nos batuques.
E a festa prosseguiu noite adentro.
Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense, 31.01.2015.
E a festa prosseguiu noite adentro.
Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense, 31.01.2015.
Sem comentários:
Enviar um comentário