Nunca entendi por que razão Agostinho Neto escolhera Lucapa
como então "futura" capital da novel província criada em 1978 e por que a
nova centralidade foi erguida no Dundo, mais distante de Luanda, do que Lucapa.
Nem cheguei a descobri-lo nessa primeira entrada na "penúltima cidade do
nordeste". Apenas pude contemplar a exuberância da planura do espaço que
"mano António" quis como capital da "Lunda wa kusangu". Um
espaço que se estende de norte a sul e do leste a oeste afundando-se em
ribeiros que tanto supririam a cidade de água potável, como conduziriam as
descargas pluviais aos afluentes do Nzadi até chegarem ao grande "kalunga
lwiji".
- Bom dia, mano. A viagem está a correr bem? - Interpelou o
polícia de viação e trânsito ladeado por colegas da ordem pública e dos
Serviços de Migração e Estrangeiros.
- Bom dia chefia. A viagem corre sem sobressaltos e o
asfalto, tirando o troço do Luó, corresponde aos anseios do automobilista. -Respondi-lhe com atenção, mas ele se dirige ao lado
oposto e coloca as mesmas perguntas aos meus dois passageiros.
- O mano não abre a boca? Questionou o policia ao meu
acompanhante que ocupava o assento traseiro.
Lembrei-me que era um teste para se certificar se éramos nacionais
ou não, sem que fosse necessária a apresentação dos nossos bilhetes de identidade.
Provoquei uns gracejos e os meus dois passageiros abriram as bocas, ensaiando
um português sem sotaque afrancesado.
- Podem seguir. Boa viagem. -
Ordenou o polícia, três riscos em cada ombro, ao que obedeci.
Minutos depois atingiamos Lucapa. A presença de motorizadas
em serviço de táxi e um prédio alto, ainda em construção, indicia, a existência
de uma cidade lá adiante. Um cidadão, nos seus 30 anos faz da estrada seu
pousio e enfrenta os mototaxiastas e automobilistas. Afouxei a marcha. Buzinei.
Mas ele sempre no mesmo lugar. Nem pra frente nem pra trás. Contornei-o e
imobilizei a viatura mais adiante para perguntar aos que faziam o seu
“kadienge” junto à estrada se se tratava de um demente ou de alguém doente a
precisar de ajuda.
- Mano, é das pessoas que ficam a procura de azar na estrada
para dificultar a vida dos outros.- Respondeu-me a Dona Upite. Assim, mesmo, se
o mano lhe batesse só um kabucado, as famílias dele viriam para receber-lhe o
carro ou pedir multa para lhe tratar. O mano fez mbora bem de lhe esquivar. –
Acrescentou a Senhora que, ao que soube, não é daquelas paragens, estando aí
apenas em negócios e tendo, ela mesmo, enfrentado semelhantes provocações que
resultaram em prejuízos para a sua conta.
Segui a marcha, sem saber onde começava e terminava a urbe.
Era andar apenas para explorar o que podia ou não encontrar mais adiante.
Antes de atingir a urbe erguida
pela finada Diamang, três sucatas de pássaros aéreos atraem a nossa atenção.
- É o aeroporto. Viste a
aerogare? Se parece a uma garagem de fazenda abandonada embora! – Exclamou o
terceiro passageiro que não quis ser citado na crónica. Na verdade, o que
diferia uma fazenda abandonada, daquelas que abundavam o nosso país no tempo da
guerra, era a avioneta que emprestava a sua brancura à pista de terra batida.
Mais adiante, em direcção à urbe, um emaranhado de cabos entrelaçados
perigosamente entre postes metálicos desviam o olhar do visitante.
- Como estás, jovem? Perguntou
Nelembe, o meu acompanhante, a um cambiador de moeda e, ao que nos apercebemos,
também comprador de brilhantes.
- Boa tarde môs kotas. É para
cambiar ou brilhar? - Respondeu solícito.
- É apenas para saber se esses
cabos são de telefones ou energia. Já houve um debate entre nós, no carro: um
acha que, pela quantidade e entrelaçamento, só pode ser de telefones fixos que
transportam uma quantidade ínfima de energia eléctrica. O meu colega, que está
no banco da trás, entende que são mesmo de energia eléctrica. Podes nos dizer o
que é essa “engenharia”? – Explicou-se o Engº Nelembe, procurando obter a
confirmação.
- É energia da dona Teresa.
Esses fios, o interlocutor apontava para o lado direito da via que tinha postes
e linhas de transporte mais organizados, são da Ene mas ainda não dão luz. -
Explicou o jovem. A dona Teresa, segundo ainda o interlocutor "é uma mboa
visionaria. Uma empresária que sabendo das dificuldades energéticas da cidade
montou um gerador potente e vende energia aos moradores. Para evitar que haja
ligações "gatosas" todos os cabos partem directamente da central ao
domicílio.
Engatei a mudança e
prosseguimos. Apenas em viagem exploratória. Um andar sem rumo pois não
conhecíamos a urbe. Queríamos apenas saber o que estava adiante. O "largo
dos comícios" que dá vida a Avenida 11 de Novembro foi outro ponto de
paragem para as fotos de lembrança. As cores da tribuna e do monumento, no meio
do jardim, remetem-nos à bandeira nacional. As casas da vila, que devia já ter
sido elevada à categoria de cidade, se caputo atrasasse o regresso à metrópole,
têm jardins podados e muros baixos, reclamando apenas algum cimento para a
correcção das fissuras e corrosões e alguma tinta para restituir a beleza
roubada pelo tempo e pelos farfalhos do vento sem barreira às paredes
septuagenárias.
As ruas da vila original são
bem arrumadas e já contam com
"semaforização", relegando para planos secundários algumas cidades,
capitais de províncias, que ainda sonham com um ordenamento virtual do tráfego
automóvel. Quem também não se esqueceu de aplicar suas "impressões digitais"
à vila de Lucapa é o grupo que constrói os hotéis cor-de-rosa. O prédio mais
alto da região e que anuncia a existência de uma cidade naquela paisagem
verdejante tem a cor de camarão.
De novo no controlo da polícia,
as mesmas perguntas:
- Aonde vão agora?
- Vou levar os camaradas ao
Dundo. São novos na região. – Respondi, desta vez acompanhado pelos meus
passageiros.
- Gostaram de Lucapa? – Voltou
a inquirir o agente.
Sim. Eu, particularmente,
gostei. Mas voltarei, um dia, a Lucapa, com mais vagar, para explorar melhor a sede
municipal que tem o maior número de agências bancárias e cambiadores de dólares
e brilhantes. Procurarei com outros dados para encontrar os caminhos que me mostrem
por que o primeiro Presidente de Angola a tinha eleito como o ponto de partida
daquilo que viria a ser a capital da Lunda Norte. – Expliquei ao agente que
começava a demonstrar maior empatia e engodo para a conversa.
- Sim, meu camarada, vejo que é
um camarada. É uma pena que o sonho não tenha passado do sono! – Desabafou o
polícia em tom malicioso.
Já a sair, lancei uma pergunta
que já foi “palavra de ordem” nos tempos mais apertados da busca desenfreada
por kamanga e por dinheiro “fácil” acompanhado de muitas atrocidades:
- Ainda se “amarra" com ou sem
razão?!
- Isso já faz parte do passado,
meu camarada!
Nota: texto publicado pelo Semanário Angolense na sua edição de 05 de Junho de 2015.
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