Mas, ó kota, assim mesmo está bem? – Bernardo
Njamba, meu companheiro de viagem do Cuito a Menongue é moto-taxista, vulgo
Kupapata e trabalha na capital do Cuando-Cubango. Apesar de a profissão que
exerce não ser das que exigem grandes níveis de escolaridade, Bernardo é bem
informado e diz que “ganha-se mais trabalhando em Menongue do que no Chitembo
ou Cachingues, sua terra natal, no Bié”.
Sem mesmo saber, antes, quais as minhas
habilitações, ramo de formação e interesse pela questão linguística e grafia
dos topónimos angolanos, Bernardo, como quem lê o pensamento alheio, atirou a
sua pergunta (mas, ó kota, assim mesmo está bem?) ao passarmos pela renascente
vila de Cachingues, cujo tabuleiro, no seu entender, devia estar escrito como
se pronuncia em umbundu.
Antes mesmo que obtivesse de mim algum
pronunciamento, Bernardo endireitou o tiro e falou sobre si.
- Nasci, ali mesmo naquela aldeia, onde o mano
parou para me levar. Estudei a oitava classe no Chitembo e “através” da guerra
fui rusgado duas vezes. Primeiro me levaram na tropa do governo e combatemos
nos lados de Camacupa. Quando vi que as mortes eram demais, fugi. Mas por azar,
também fui raptado pelas forças da Unita. Ali já era demais. Recuar era só
recuar. Todos os dias era só fugir da tropa do governo que estava bem equipada.
Txá, aquilo era demais! Nem mesmo comida ou fardamento tínhamos. Ração era milho
torrado e roupa que te apanham com ela é a mesma que serve de farda até
rasgar.- Contou, para depois perguntar se “o kota é daonde e combateu ainda aonde?”
- Sou do Libolo. Na tropa, apenas espreitei e
fugi antes de jurar a bandeira, pois era recruta menor e ninguém me perseguiu
quando entendi fugir dela. Depois fui a Luanda estudar e trabalhar. –
Expliquei-lhe.
- Siti, kota watanga (o mais velho estudou
mesmo). – Exprimiu-se em umbundu, Bernardo. – Mas, o kota estudou o quê? – Voltou
a questionar, tentando procurar um caminho para chegar ao assunto da grafia no
tabuleiro deixado na comuna de Cachingues.
Ele como um cavalheiro que aos poucos, sem
fazer-se perceber, esquarteja a sua dama, e eu na defensiva. O assunto era do
meu interesse mas pretendia saber até aonde Bernado Njamba chegaria com aquela
pergunta inicial. A nossa viagem consistia numa troca de favores: eu levá-lo-ia
até ao seu destino, Menongue, e ele mostrar-me-ia, em troca, a cidade a que me
dirigia pela primeira vez, e o Instituto Médio de Administração e Gestão, IMAG-
23.
- Sou jornalista. Meu nome é Soberano. Nas
universidades estudei História e Comunicação Social. Também gosto de estrada e
aprecio as coisas velhas e novas que vão surgindo pelo país. – Disse-lhe,
aguçando o seu desejo de prosear.
Bernardo sorriu de leve. Pegou em duas latas de
bebida energética que tinha no saco, ainda frias, e passou-me uma das latinhas.
- Kota Soberano, posso trata-lo assim?
Questionou, já com um à vontade nunca esboçado.
Apenas anui com a cabeça, procurando por uma
música que nos fizesse companhia. E ele prosseguiu:
- O kota que entende de História deve também entender
lá um kabocado de línguas nossas. Acha mesmo que a forma como escreveram os
nomes das aldeias, comunas e municípios, até mesmo os nomes das cidades está
correcto? É que nós, kupapateiros quando falamos, mesmo tendo razão, nos falam
você é burro.- Desabafou, algo aborrecido.
Meu amigo, sou um dos que se debatem contra a
forma como os topónimos estão escritos nos tabuleiros ou a forma como nos
habituamos a escrevê-los. O ideal seria que os topónimos e antropónimos fossem
escritos e registados de acordo com a estrutura gramatical da língua em que são
enunciados. Aqui, entre nós angolanos, o assunto da troca dos kapas pelos cês
na grafia de alguns topónimos bantu ou pre-bantu e a manutenção dos kapas
noutros vocábulos tem sido motivo de muita celeuma. Veja bem, amigo Bernardo,
abri o rosário, há meses, quando se fez o registo eleitoral o MAT mandou os
jornalistas escreverem os nomes como se escrevia no tempo do kaputu. Então, uns
ficaram “fulu”. Disserasm assim é regresso ao passado e não pode ser. – Recordei-o.
- Pois é mano. :Respondeu Bernardo. – Veja, por
exemplo que o rio, esse que nasce mesmo aqui perto, no Chitembo, é Cuanza mas a
moeda que ganhou o nome “através” do rio, é Kwanza com kapa e se justifica que
se atribuiu à moeda angolana o nome do maior rio que nasce e desagua em território nacional. Isso assim mesmo está correcto?
- Não acho correcto. Fui e sou ainda dos que mais discorreram tinta sobre o assunto que, afinal de contas, não é tão complexo nem confuso quanto os comunicadores do MAT o fizeram parecer. Aqueles "doutores" em vez de saírem de peito aberto para explicar em miúdos o que se passou com a remissão daquele instrutivo aos Meios de Difusão Massiva para, de um dia para outro, cortarem os kapas e os substituírem pelos cês, deviam é estudar o assunto e explica-lo não só aos MDM mas a todos os angolanos. Ontem mesmo, um meu amigo, já mais velho e doutor de verdade, explicou-me me que os nomes, mesmo os das pessoas, só se tornam oficiais quando cadastrados num livro de registo que lhes dá respaldo legal.
- Ai é? – Interrompeu
Bernardo que parecia gostar das explicações e de ter encontrado a pessoa certa
para o seu desabafo.
- Sim amigo Njamba.
Vejamos: o único registo existente quanto aos antropónimos angolanos é o que
foi deixado pelo colono. Não foi produzida uma lei que alterasse os nomes das
localidades, de acordo ao que alguns angolanos defendem, eu incluído, que é
redigir com kapa aí onde a estrutura da língua africana originária o exija.
- Mas o mano Soberano
me disse, na passagem pretérita, que era contra a forma como se escrevia
antigamente e como se escreve também agora. Assim então fica como?
- Pois é, Bernardo, aí
está o problema. Temos as localidades já antigas que foram mal registadas pelo
colono. Umas mudaram de nome depois da independência, mas ninguém fez o registo
em livros. Os nomes não foram oficializados nem escritos correctamente. Temos
também as novas localidades surgidas depois da independência, como a cidade de Kilamba
ou a moeda Kwanza. Essas estão bem escritas e fora de discussão. – Esclareci.
Bernardo Njamba parecia ter ainda algumas dúvidas embora
tenha por diversas vezes balançado a cabeça, em sinal de aprovação do discurso.
E não tardou a sua pergunta derradeira.
- Assim, mano Soberano, os nomes então devem se escrever
como? Cachingues, Mumbue, Chitembo, Catabola, Chicala-Choloanga, Babaera, Bié,
Cuito e Cachungo é mesmo assim que se escrevem ou devem levar kapa no
princípio?
- Olha, Bernardo, Mumbué, Babaera e Bié não levam kapas, mas
devem ser escritos de forma diferente. Devem passar para Mumbwe, Vava-Ayela e
Vye. É assim que se escreve em umbundu. De igual forma, para corrigir os
topónimos que enumeraste, deve escrever-se Kacingi, Citembu, Katabola,
Cikala-Colohanga, Kwitu, Kacungu, etc. É preciso que se escreva bem e se crie
uma nova lei do registo desses nomes bem escritos.
- Então é isso que o amigo do Kota explicou na conversa que tiveram ontem? - Voltou a questionar Bernardo, sempre interessado nas explicações, se calhar para lhe servirem de argumentos perante os debates com os colegas, na praça da Paz, em Menongue, onde presta serviço de moto-taxi.
- É mais ou menos isso.
Ele pediu para que todos aqueles que podem esclarecer aos outros aprendam e
façam-no para que o povo reclame com razão. Perante a douta explicação do meu
amigo, devemos é redireccionar a NOSSA "luta" ao mesmo MAT, já não para
repor os kapas que achávamos terem sido arbitrariamente cortados, mas para que
no mais curto espaço de tempo crie a lei que coloque, em definitivo e de jure,
os kapas, ipsilons e dablius nos topónimos como Kwanza, Kacinge, Mwmbwe,
Cikala-Colohanga, Kalulu, Kwitu, Katabola, Vav'ayela, etc. e se escreva
correctamente os nomes dos rios, das localidades e até das pessoas. O que peço
hoje, espero que você também seja parte desse esforço, não é a colocação
arbitrária de kapas, mas a grafia correcta dos hidropónimos, topónimos e
antropónimos conforme a estrutura morfológica das línguas locais.
- Ok, mano. Estou de acordo. Assim mesmo, quando chegar a Praça da Paz, vou já começar a explicar aos meus colegas. Não pedi antes, mas gravei as explicações do mano, para servir de testemunha. – Concluiu Bernardo que ao longo do percurso foi fazendo as correcções sobre como seria a grafia correcta, seguida de registo, das localidades que fomos encontrando.
- Kota, a província do
Kwandu-Kuvangu começa aqui e a cidade de Mwene Vunonge fica a cento e cinquenta
quilómetros. – Atirou, mostrando que domina já o assunto.
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