Conheceram-se crianças ainda de tenra
idade. Seus pais eram vizinhos e, naquele tempo da dibinza, andavam e brincavam
juntos, improvisavam os mesmos brinquedos, apesar de ele ser rapaz e ela
menina.
A casa de uma tanto servia para o outro,
refugiando-se do sol intenso ou frio congelante, ou mesmo dormitando, depois de
cansativas brincadeiras no morro de terra deixado pelos homens do Ministério da
Construção e Habitação. A amizade voluntária e desinteressada acabava por
envolver também os pais que gozavam da alegria dos filhos e choravam a dor do
filho do vizinho.
Certo dia, quando Maria pisou um caco de
garrafa que quase lhe decepava o calcanhar, João foi o primeiro a chorar.
- João! Estás a chorar porquê se ferida é
minha. Ninguém vai te bater por estares comigo. Saí com minhas pernas.- Disse
Maria. Ela, corajosa como ninguém e apossado de compaixão.
- Maria, tua ferida também dói em mim. É
como se esse sangue saísse daqui. E batia ele no seu frágil peito.
Àqueles que assistiram ao diálogo
pareceu-lhe que havia envolvimento psico-afectivo que extravasava a simples
amizade pura. Mas eles eram crianças. Apenas sete e oito anos. Inocentes
naqueles dias em que contar estrelas à volta da lua completava o
lugar das telenovelas desse tempo.
E caminharam até à casa de Maria onde as
reprimendas e conselhos dos pais da menina serviram para os
dois.
Aos olhos dos maldizentes, a menina era
Maria rapaz e ele um João maria.
- Esse está perdido. Homem fica a andar
com miúda à procura de bonecas quando os outros fazem fisga e carros de lata?
- Hum! Essa está perdida. Mulher, em vez
de brincar de cozinha e costura fica a andar com rapazes, tipo homem, a querer
ser mecânico e bate-chapa? Vizinha Nela nem só genro vai ter. Alembamento e
panos de mabela azul é melhor esquecer!
Os falares das tias, vizinhas no Marçal,
sempre afáveis no trato mas atiradoras da primeira pedra, eram constantes
sempre que vissem aquela dupla. E as senhoras, na sua liberdade de exteriorizar
pensamentos, não guardavam palavras para amanhã.
Maria e João, apesar dos elogios e das
críticas, continuaram amigos na adolescência e juventude. Estudara na escola
Juventude em Luta e no fim lutaram para bolsas de estudo no estrangeiro.
Em Cuba calharam em ilhas diferentes,
João na Ilha da Juventude e Maria em Plaia Girón. Mas as cartas e as visitas se
mantiveram intensas.
Em Angola, próximo das férias, os pais de
Maria, sabendo do seu desinteresse em dar-lhes genro, decidiram surpreende-la
com um presente.
- João! Imagina o que ganhámos?
- Ganhámos o quê, Maria? Bolsa de
mestrado?
- Desperta, João. Primeiro é aplicar a
licença e depois agregar valor. Te esqueceste?
- Então diz o que foi que aconteceu de
transcendental que te faz ligar-me à meia-noite.
- Ouve, João. Os meus pais cederam-me um
apartamento. Já te disse que é todo nosso. Podes lá ir ler e descansar quando
quiseres.
Festejaram, à distância, aquela boa nova
plasmada na mukanda recebida ainda fresquinha. Maria passava o papel pelo nariz,
a ver se sentia o cheiro do pai misturado entre as letras manuscritas a
preceito, Bernardo Kixinga era de pena leve e fácil. Apenas o cheiro da caneta,
que se supunha ser uma Bic, resistia ao tempo.
Às cinco da manhã, João chegou com as
passagens para Angola. Era mês de férias. As suas viagens eram conjuntas.
Embora nunca alguém dos dois tivesse libertado os cachorros, Maria e João,
mesmo aos olhos dos companheiros africanos e sul-americanos, viviam uma vida de
casal, separado apenas pelo descompromisso.
João tinha outas amigas e até namorada
cubana, embora na sua vida nunca chegassem aos calcanhares de Maria. Maria
também tinha amizades masculinas. Até experiencia sexual teve. Mas, confessou a
João que apesar do momento singular proporcionado por aquela viagem espacial,
não era um João na conversa e no à vontade.
Viajaram para Luanda. De mãos dadas como
sempre. Ao segundo dia, Maria convidou João para ir conhecer seu apartamento na
nova cidade que se erguia pelos lados da Cuca.
- João, querido! Vai sem desconfiança
nenhuma. Leva livros e roupas, se quiseres. A chave de reserva, que passa a ser
tua, está com a vizinha da porta 21. O nome dela é Bela.
- E por que não te encontrarei em casa?
- Vou arranjar um Habana Club, João. Até
amanhã.
No dia combinado, Maria ligou manhã cedo
a confirmar a visita enquanto se aprumava como noiva de quem espera o altar.
- Vens, João? Tenho o coração aos pulos.
Quero comemorar contigo... Estás bem?
- Estou cansado, Maria. Tive uma noite
para esquecer.
- Foste à má vida e não me levaste? Já me
deste uma concorrente que vai desistir na primeira paragem? - Questionou
brincalhona.
- Oiça, Maria. Ontem fui à tua casa.
- E que aconteceu? Para que não nos
víssemos? Conta em detalhes que estou a asfixiar-me de curiosidade.
- Estava eu no teu quarto. Num quinto
andar. Quando me viste saltaste por cima de mim e nos amámos perdidamente.
Porém, ele chegou. – Fez pausa para ouvir a reacção.
- Ele quem, João? Conta rápido essa cena
que se parece ficção.- Pediu autoritária.
Pois é. Constou-me que há já bom tempo
que sentia o cheiro da intrusão em tua propriedade. Entrou de rompante. Abri a
janela e o chão era muito longe. Não me entreguei ao salto, embora me tivesse
passado pela cabeça o suicídio. Acobardei-me e supliquei de joelhos. Tu estavas
na cama sem saber a quem dar razão. Pegou-me pela goela até ao rés-do-chão.
- Ela atenta do outro lado da linha, sem
poder conter a respiração e o foco daquela conversa, mantinha-se calada,
lançando, de vez em quando, uns “e depois”?
- Depois levou-me à rua. Eu sempre
quieto. Como uma criança consciente da transgressão e que não reage. Quando ele
se aprumava para me esmurrar, peguei-lhe os martelos que balouçavam numas
calças de treino e sem protecção interior.
- E daí? – Questionou Maria ainda confusa
- O feitiço virou-se contra o feiticeiro.
Inverteram-se os papéis. Ele gritava e eu apertava enquanto procurava por folga
e me pôr a fresco. Depois meti-me no carro.
- E ele?
- Ele, recuperado, meteu-se no dele e
partiu em minha direcção. E fizemos uma corrida sem vencedor.
- Mas, como assim?- Maria começava a
entender e tinha a curiosidade mais cada vez mais aguçada para saber do fim, da
trama.
- Pois, Maria. Acordei com a entrada da tua
mensagem...
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